dezembro 31, 2022

Cyberpunk 2077 (PS5, p1.6)

Há já algum tempo que não sentia tanta satisfação ao chegar ao final de uma história. Tudo perfeito, talvez perfeito demais, num sentido convencional em que se estimulam os sentimentos por via dos valores da família, dos amigos e claro do casal romântico. Ainda assim, no meio de uma distopia pós-apocalíptica tecnológica, o cyberpunk, soube muito bem reencontrar as dimensões do humano como prevalentes. Em "Cyberpunk 2077", a máxima de Pawel Sasko, diretor do Design de Missões, “story goes first with everything” é uma realidade. Podemos navegar o mundo, podemos explorar todas as funções da nossa personagem, das tecnologias, das armas, dos carros, podemos envolver-nos numa miríade de confusões e pequenas missões, mas a história está sempre lá, o nosso personagem está perfeitamente delineado e impacta e é impactado pelo que acontece ao longo da nossa experiência. Não é um RPG tradicional, mas também não é mero Ação-Aventura, é um verdadeiro Immersive Sim, capaz de morfosear RPG, FPS, Stealth, Racing, Cartas, Plataformas e muito Survival, tudo oferecido num mundo aberto deslumbrante. 



dezembro 30, 2022

Máquinas de contar histórias

"Story Machines: How Computers Have Become Creative Writers" foi publicado em julho 2022, mas os seus autores, Mike Sharples e Rafael Perez, académicos na área da aprendizagem e criatividade IA, dizem-nos que o livro começou a ser preparado em 2001, por isso não se espere aqui um tratado sobre o enorme potencial aberto pelos sistemas GPT, que apesar de serem abordados representam apenas uma pequena parte da discussão.

dezembro 26, 2022

A Mente e a Lua

Daniel Bergner realiza serviço público com este livro, “The Mind and the Moon” (2022), ao dar conta do modo como a medicina lida com a doença mental no século XXI. Bergner começa por relatar o horror de um passado não muito distante, dos primeiros hospícios às lobotomias de Egas Moniz, evidenciando que se muito mudou, mudou mais ainda com a secundarização de Freud e a atribuição total de primazia ao poder da química para alterar a biologia. Podemos pensar que tudo foi sendo feito em nome da evidência científica, os problemas começam quando essa não é tão evidente como a indústria farmaceutica quer fazer crer. Os problemas acontecem quando a evidência funciona apenas para uma parte da população, enquanto na outra não vai além de placebo. Os problemas acontecem quando parecendo que funciona acaba por ditar uma qualidade de vida pior do que aquela que existia na sua ausência. Senti por vezes algum receio em continuar a leitura por, em partes, o discurso roçar a teoria da conspiração. Mas, o facto de Bergner ter vários livros publicados, escrever para algumas revistas de referência internacional, e acima de tudo estar a dar conta, em parte, de memórias vividas ao lado de um irmão que passou os últimos 40 anos a lutar com a doença, faz com que nos disponhamos a continuar a ler. Bergner questiona tudo e todos sobre os tratamentos, quase exclusivamente assentes no químico, que oferecemos à doença mental, terminando apenas com uma certeza, a de que continuamos a saber muito pouco sobre o funcionamento da mente.

dezembro 25, 2022

Média Artificiais (artificial media)

2022 ficará na história como o ano em que a Inteligência Artificial foi reconhecida pelas suas capacidades criativas. 

No dia 30 de novembro a OpenAI colocou na rede, em acesso gratuito, um assistente de IA, o ChatGPT, que em apenas 5 dias conseguiu mais de um milhão de utilizadores, alimentados pela curiosidade de contactar com as suas capacidades extraordinárias de conversação. No meio dos muitos defeitos que lhe fomos encontrando —erros factuais, invenção de dados, excesso de confiança, ou falta de “voz” —, todos tivemos de reconhecer que nunca tínhamos visto nada igual. É possível entrar em diálogo com o assistente, conversar sobre a mais ampla gama de assuntos e gerar momentos de profunda partilha empática construída a partir da autoilusão com base na naturalidade, eloquência e compreensão discursiva do assistente.

Mas não foi apenas a conversação que foi tomada de assalto. Meses antes, a 12 de julho, tinha sido divulgado um outro assistente, o Midjourney, depois, a 22 de agosto, era também divulgado o Stable Diffusion da Ludwig Maximilian University de Munich, e ainda a 28 de setembro, a OpenAI disponibilizava a todos o Dall-E 2. Estes três assistentes de IA partilham as mesmas competências de desenho de imagens, com a particularidade de apresentarem resultados originais, simultaneamente muito humanos, como se tivessem sido criados por seres humanos. 

dezembro 24, 2022

A Torre dos Segredos (2022)

O título original — "A History of Water" — não faz muito sentido, porque não explicando do que trata, também não aproxima o leitor do sentimento geral da obra. Ainda que se possa dizer que a obra se foca em dois viajantes da era dourada das descobertas marítimas portuguesas: Luís de Camões (1524 - 1580) e Damião de Góis (1502-1574). Mas o sentimento é claramente melhor captado pelo título português — "A Torre dos Segredos" —, que não só evoca o relato das particularidades das vidas desses dois viajantes, mas denota também a presença central da Torre do Tombo, a torre onde desde 1378 a história de Portugal foi sendo escrita.

dezembro 21, 2022

Leituras recomendadas

Depois dos melhores livros publicados de 2022, deixo os 12 melhores de outros anos, 6 de não-ficção, e 6 de ficção. Leram-se bons livros, ainda assim não sinto que tenha sido um ano em cheio, na segunda metade do ano estive demasiado sobrecarregado e foi difícil aproveitar da melhor forma algumas obras. Do que li, as 6 de ficção são obras que me marcaram, e que não esquecerei. Já as de não ficção, abriram-me novos horizontes de conhecimento, seja na história, design ou psicologia.

Ficção

1. Shuggie Bain (2020) de Douglas Stuart (Análise

2. De Noite Todo o Sangue É Negro (2018) de David Diop (Análise)

3. O Clã do Urso das Cavernas (1980) de Jean M. Auel (Análise)

4. Na Terra Somos Brevemente Magníficos (2019) de Ocean Vuong (Análise)

5. A Oeste Nada de Novo (1928) de Erich Maria Remarque (Análise)

6. Aristóteles e Alexandre (2009) de Annabel Lyon (Análise)


Não Ficção

1. Make it New: A History of Silicon Valley Design (2015) de Barry M. Katz (Análise)

2. Syllabus: Notes from an Accidental Professor (2014) de Barry Lynda (Análise)

3. Projections: A Story of Human Emotions (2021) de Karl Deisseroth (Análise)

4. The Rape of Nanking (1997) de Iris Chang (Análise)

5. An Internet in Your Head (2021) de Daniel Graham (Análise)

6. A Brief History of Equality (2021) de Thomas Piketty (Análise)


dezembro 18, 2022

"O Simpatizante" (2015)

"O Simpatizante" é o primeiro livro de Viet Thanh Nguyen, e conta-nos a história de um espião duplo durante a Guerra do Vietname que tanto atua pelo Vietname do Norte como pelos Estados Unidos. O personagem realiza estudos nos Estados Unidos, e mais tarde acaba sendo evacuado do Vietname para os EUA, onde continua a trabalhar como simpatizante do Norte do Vietname, mas não deixando de trabalhar como espião para ambos os lados da guerra. O livro foca-se no seu relato sobre os anos em que viveu dividido entre duas visões do mundo.

dezembro 11, 2022

Livros de 2022

Mais um ano, mais uma enorme quantidade de livros publicados. Muitos serão esquecidos rapidamente, juntamente com muita música, cinema e videojogos que podem até servir bons momentos de entretém, mas pouco possuem que lhes permita perdurar na memória. Dos livros de 2022 que li, escolhi 5 de não ficção e 4 de ficção, que deverão continuar relevantes por mais alguns anos.


Duas brilhantes biografias, "The Brain in Search of Itself" sobre Santiago Ramon Y Cajal, e "Pessoa" sobre Fernando Pessoa. A primeira, escrita como um romance, a segunda com uma escrita quase tão bela como a do próprio Pessoa. Dois livros de divulgação de ciência: "The Language Game", que lança uma nova hipótese sobre o modo como terá surgido a linguagem nos humanos; e "How the World Really Works", sobre o que efetivamente estamos a fazer com os recursos fósseis, e os impactos reais das alterações drásticas que andamos a discutir, nomeadamente em países em desenvolvimento. Por fim, um livro de história, "A Torre dos Segredos", com base em duas das mais importantes personalidades de Portugal, Camões e DeGóis, escrito como aventura, com algumas fragilidades na escrita, mas ainda assim muito relevante. 

Na ficção, temos três livros muito comtemporâneos: uma belíssima aventura sobre a nova profissão dos criadores de videojogos, "Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow"; um muito lúcido olhar sobre a vida académica em tempo de MeToo e cancelamentos, "Vladimir"; e uma distopia portuguesa, "Cadernos da Água", sobre os potenciais efeitos das alterações climáticas na presença de água na península ibérica. Por fim, temos o regresso de McCarthy, que por si marca o ano literário, com "O Passageiro". 

Exceptuando "Pessoa", que foi publicado primeiro em inglês, em 2021, tendo a nossa tradução chegado apenas neste verão, são tudo livros publicados em 2022 que vão valer a pena continuar a ler nos próximos anos. Entretanto, espero deixar por aqui as melhores leituras de não-ficção e ficção relativas a anos passados.

dezembro 10, 2022

Como funciona o mundo

"How the World Really Works: The Science Behind How We Got Here and Where We're Going" saiu este ano e tem sido imensamente discutido pela crítica, o que não diria dever-se, apesar de também, a Bill Gates, mas essencialmente ao longo percurso científico de Vaclav Smil (78 anos) a discutir estas matérias o que lhe confere um grau de autoridade e confiança muito elevados. No imediato, e apesar do livro se focar na questão ambiental, nomeadamente no aquecimento global, compararia este a "Factfullness" (2018) de Hans Rosling, pelo modo como desfia números e factos sobre a energia que sustenta o nosso modo de vida, desconstruindo teias de histórias que têm vindo a moldar a nossa visão do mundo.

dezembro 06, 2022

O mundo de “Control”

Joguei “Control” (2019) pela primeira vez no final do verão, na sua versão Ultimate (2021), o que me permitiu aceder à melhor renderização de todo o seu esplendor visual. É um jogo que se enquadra no género bem conhecido de ação-aventura em terceira-pessoa, com uma jogabilidade próxima de séries de jogos como "Infamous" (2011-2014) ou "Dishonored" (2012-2016). No campo da história, a influência imediata que podemos observar é do universo “X-files” (1993-2018), e em parte do mundo de “Annihilation” (2014/2018), com alguma aproximação a “Death Stranding” (2019) e também em parte “Beyond: Two Souls” (2013). Muito diferente destas influências temos duas coisas: a dificuldade e o ambiente visual. 

dezembro 01, 2022

Make It New: A History of Silicon Valley Design

Não sei como passei ao lado de "Make It New: A History of Silicon Valley Design", um livro já de 2015, mas é uma das maiores jóias sobre a História de Silicon Valley, sobre o nascimento das tecnologias multimédia, mas em particular sobre o modo como o design, e não o desenvolvimento, se tornou no centro da criação tecnológica. Li já dezenas de livros sobre esta história, mas este livro de Barry M. Katz, Professor de Design Industrial e Interação no California College of the Arts e Colaborador da IDEO, Inc., distingue-se por apresentar pela primeira vez uma perspectiva completa a partir do design. Foi, sem dúvida, uma das minhas leituras mais gratificantes de 2022.

O livro está editado pela MIT Press

novembro 30, 2022

"Twelve Minutes" (2021)

Acaba de ser publicado um pequeno texto com uma leitura sobre o modo como funciona o pensamento crítico a partir de uma análise do videojogo "Twelve Minutes" (2021), no nº2 do journal Hipothesis Historia Periodical. Neste texto dou conta do modo como criamos significado do mundo a partir de processos de comparação e depois aplico esses processos cognitivos ao modo como interpretamos e trabalhamos a resolução do videojogo. Está em acesso aberto.



Zagalo, N. (2022). “Twelve Minutes”: alternative as critical, in Hipothesis Historia Periodical, n.2, Casa Comum of the Rectorate, University of Porto [PDF]


novembro 28, 2022

O Passageiro (2022)

16 anos depois de “A Estrada” (2006), e agora com 89 anos, Cormac McCarthy regressa com uma "portentosa" força narrativa. No campo da história pode haver alguma desilusão porque o enredo avoluma-se, mas nunca se chega a desenrolar. Contudo para um autor que chega a esta idade no ativo, mais importante do que ter algo para dizer, será a forma de o dizer, e nesse campo Cormac impressiona. Temos uma estrutura modular que se vai afirmando por meio de pedaços soltos de exposição que aos poucos vão desdobrando o espaço e o tempo, permitindo-nos reconstruir o mundo-história. Nada disto é novo, o que é novo é a particularidade do método de exposição que é maioritariamente feito por via da conversação. Praticamente tudo o que sabemos, sabemo-lo através das infinitas conversas de Bobby Western com todos aqueles com quem se cruza. Para alguns leitores, são um excesso divagante, contudo são estas conversas o cerne do livro, sem elas não seria possível todo este fluxo narrativo a acontecer sem enredo a desvelar-se. Vamos passando de conversa para conversa, seguindo o protagonista e as suas predileções, e é nelas que a nossa atenção se foca, são elas que nos fazem virar página atrás de página, que nos fazem não só descobrir quem é Western, mas especialmente quem era a o seu pai e a sua irmã. 

novembro 19, 2022

Imersão, literatura e videojogos

"A Oeste Nada de Novo" (1928) é uma leitura obrigatória sobre a I Grande Guerra (1914-1918), é um clássico. A particularidade do livro assenta numa escrita direta, a partir de uma primeira pessoa no interior da guerra; num tom quase confessional e em jeito de memórias que  apesar da passagem pela guerra do autor não o são; ao que se junta por fim uma perspectiva imparcial sobre o conflito. Esta abordagem oferece-nos assim uma experiência extremamente imersiva, pelo modo como se relata a partir do teatro de guerra, mas sem nos guiar ou procurar conduzir a qualquer tomada de posição sobre os diferentes lados do conflito. Em nenhum momento Erich Maria Remarque dá conta do que conduziu ao conflito, não fala das razões nem motivações de qualquer lado das trincheiras, nem se queixa ou culpa quem para ali o atirou. A imersão produzida coloca-nos em plena guerra, oferecendo-nos um olhar, o mais natural e inocente possível, sobre o estado das coisas por forma a obrigar-nos a questionar o fundamento de tudo aquilo que se vive na Guerra, algo que é profundamente contaminado pela força emocional contida em vários dos episódios experienciados pelo narrador.

novembro 12, 2022

Histórias que não fazem um livro

Strout demonstra algumas competências muito interessantes, nomeadamente no contar de pequenas histórias, mas apresenta imensas fragilidades quando sai do micro-conto. Mesmo que seja capaz de a largas passadas interligar os pontos, e criar boas recompensas, mais ainda inter-livros, não chega para atenuar o que falta no todo. "O meu nome é Lucy Barton" é de 2016 e "Oh, William!" de 2021, os pequenos momentos oferecidos pelo interior psicológico da personagem, acabam por não contribuir para qualquer ideia maior, nem em cada livro, nem em ambos lidos em sucessão. Talvez não ajude o facto dos livros sere imensamente pequenos, e claro não contarem uma história, mas apenas pequenas historias. Quando lemos o primeiro livro, e partimos para o seguinte, nada muda, continuamos no exato mesmo universo, a mesma escrita, a mesma personagem, o mesmo de tudo em mais páginas. Isto faz lembrar a academia atual, que pega na sua investigação e retalha em bocados para dar mais artigos, números mais elevados na contabilidade métrica. Apesar disso, não faltam louvores ao trabalho da autora, e agora mais recente à sua proficuidade. Mas todos estes livros na verdade não o são, são antes secções de mesmos livros que a autora, por alguma razão, preferiu ir publicando à medida que os foi terminando. Diga-se que para a sua editora é muito melhor assim. 

novembro 01, 2022

"Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio" (2021)

A história do livro é relevante, não só por tratar dos efeitos de famílias disfuncionais sobre menores, mas em particular porque a autora é especialista na jurisdição de família e menores. Contudo a estrutura criada para dar conta dessa mensagem perde-se no meio de um excesso de camadas simbólicas que acabam por ocultar aquilo que se pretende dizer.

A autora não se limitou a criar uma estrutura em que os 21 dias se movem ao revés, do final para o princípio. Acrescentou-lhe ainda todo um museu, o Rijksmuseum de Amsterdão, a partir do qual utiliza um conjunto de telas, desde "A Ronda da Noite" de Reembrandt a "Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" de Thérèse Schwartze, a partir das quais vai realizando leituras e colocando em ação alguns dos seus elementos. E por fim, comete o pecado original português, do embelezamento do discurso com constantes figuras de estilo que contribuem para ofuscar ainda mais todo o significado do texto.

"A Ronda da Noite" (1642) de Reembrandt no Rijksmuseum

Faltou aconselhamento ou reflexão sobre os impactos desta estrutura. Os autores são livres, mas os autores não podem deixar de se colocar no lugar dos leitores, e tentar compreender como é que eles vão reconstruir a mensagem das suas obras. A liberdade artística não é total, o trabalho de um artista é um trabalho de comunicação, por mais que alguns artistas teimem em dizer que não criam para um público. Naturalmente espera-se que os artistas quebrem as regras, inventem, surpreendam, mas espera-se que o façam juntamente com todo um trabalho de ir ao encontro do seu público.

"Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" (1879-1885) de Thérèse Schwartze

outubro 30, 2022

"Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow” (2022)

Em "Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow” de Gabrielle Zevin, dois adolescentes, Sam e Sadie, conhecem-se num hospital onde formam uma ligação de amizade jogando centenas de horas numa consola Nintendo. O resto do livro conta a sua história desde dos anos 1980 aos dias de hoje, desfiando desde o momento em que resolvem criar o primeiro jogo juntos até ao momento em que criam a sua empresa de jogos e começam a contratar pessoas. A história fala-nos da relação entre duas pessoas criativas, unidas pelo amor aos videojogos e um profundo sentimento de amizade. Ao longo das 400 páginas, que passam a voar, vários momentos complicados acontecem, muitas angústias são vividas, mas a compreensão do mundo e da vida à luz do design de videojogos é o que mantém toda o universo coerente e as personagens plenas de substrato.

Regular o capitalismo

Shoshana Zuboff é um nome que surge amiúde sempre que se fala dos impactos problemáticos das atuais tecnologias de comunicação, nomeadamente as produzidas pelas 4 grandes tecnológicas — GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon). Tendo lido uma enorme quantidade de coisas boas sobre a autora, que vem com o pedigree da Ivy League, não fiquei depois muito impressionado com o modo como discute a técnica por detrás da tecnologia, parecendo ficar muitas vezes à porta da complexidade desta, focando-se mais nos quadros de impactos macro, muitas vezes desligados da efetiva capacidade das tecnologias. E assim, talvez não seja surpreedente não ter gostado particularmente do seu livro "The Age of Surveillance Capitalism" (2019).

outubro 29, 2022

O foco desfocado

Cheguei a "Stolen Focus: Why You Can't Pay Attention- and How to Think Deeply Again" (2022) por meio de um excerto do mesmo que discutia as questões do multitasking, tendo logo ganho o meu interesse pelos resultados dos estudos que citava. Quando procurei mais pelo autor, percebi que vinha atrelado a acusações de plágio e consequente despedimento de um jornal britânico. Acreditando que as pessoas têm direito a reabilitação, decidi avançar para a leitura do livro, ainda que munido de algumas cautelas extra. A experiência final não foi das melhores, mas ainda me interrogo se foi por causa do seu passado, ou pela sua incapacidade de manter o foco, exatamente aquilo que no título diz pretender explicar a quem o lê. 

Do escurecimento provocado pelo cristianismo

Tivesse eu lido este livro há alguns anos, teria ficado chocado com o que aqui se escreve sobre a vasta destruição dos pagãos pelos cristãos. Contudo, nada disto pode ser apresentado desta forma leve, desde logo porque a destruição apresentada ocorreu ao longo de séculos, sendo aqui apresentada como uma sucessão narrativa de causas e efeitos imediatos, o que retira alguma credibilidade ao relato. Os clássicos têm dois mil anos, as evidências que temos do que aconteceu são fragmentos de fragmentos. Não podemos a partir dos mesmos, pegar em momentos avulso no tempo, escolhidos pela sua intensidade, e criar um fio condutor que explica tudo com uma única dimensão ou causalidade. Claro que num pequeno livro, tal como num documentário, sobre assuntos complexos, não se pode entrar pelo detalhe dos múltiplos pontos-de-vista, arriscando a fragmentar o discurso, perdendo o foco e a atenção do leitor/espectador. Mas a simplificação do complexo, por mais ressalvas de imparcialidade que se façam, tende demasiadas vezes a criar viéses marcados pelo que se escolhe apresentar e não apresentar.

outubro 23, 2022

"Cadernos da Água" de João Reis

A escrita muito direta, sem floreados nem simbolismos, mas elaborada e centrada no que está a acontecer, torna a leitura de "Cadernos da Água" (2022) próxima da experiência audiovisual. O mundo apresentado é distópico. Sofrem-se os efeitos das alterações climáticas que obrigam populações a deslocarem-se para zonas onde ainda existem recursos hídricos. O tom imprimido é particular, cruza a ação americana com a frieza escandinava, colocando-nos no lugar de portugueses refugiados fugidos de um país que já não existe. A particularidade da experiência estética criada só tem par em "Station Eleven" (2014) de Emily St. John Mandel.

setembro 19, 2022

Facebook e a Saúde Mental

O estudo, "Social Media and Mental Health" (2022) (publicado em preprint na SSRN, em breve disponível no American Economic Review) que retrata os efeitos do Facebook na saúde mental dos seus utilizadores foi tornado público por estes dias e os dados são pouco animadores. O estudo foi feito a partir de dados empíricos de: a) momento em que o Facebook foi tornado a acessível em cada universidade americana no ano de 2014, que permitiu perceber o exato momento em que cada aluno começou a aceder à ferramenta; e b) os questionários semi-anuais da National College Health Assessment, que chegam a mais de 430,000 respondentes, inquirindo sobre saúde mental e bem-estar nas universidades americanas. Os resultados: a introdução do Facebook nas universidades levou a um aumento da depressão grave em 7% e do distúrbio da ansiedade em 20%. Para além destes resultados, uma percentagem de estudantes iniciaram tratamento com psicoterapia e/ou antidepressivos. "O efeito negativo do Facebook é comparável, em magnitude, a cerca de 22% do efeito da perda de emprego na saúde mental". Os investigadores apontam como principal razão o facto do Facebook promover "comparações sociais desfavoráveis".

setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

setembro 17, 2022

Da psicologia de uma herança

O livro, "Herança" de Vigdis Hjorth, abre com um casal, nos seus 80, que resolve proceder às partilhas, deixando as duas casas de verão às duas filhas mais novas, criando assim a impressão clara de favoritismo nos dois filhos mais velhos. A partir daqui, enquanto leitores, só queremos saber porquê, e isso mantém-nos agarrados a virar páginas. Mas se fosse só isto, seria apenas uma história interessante. O que temos é a narrativa em primeira-pessoa a partir da filha mais velha, que nos dá acesso ao seu mundo interior, e como a partir desse concebe o tear de relações e implicações familiares para construir sentido desta decisão. 

"Herança" publicado em 2016 na Noruega, traduzido para português em 2021

setembro 07, 2022

Uma Internet na sua Cabeça

Daniel Graham é professor de Psicologia, especializado no estudo do cérebro humano e mamífero. Neste livro, "An Internet in Your Head: A New Paradigm for How the Brain Works" (2021), apresenta uma nova metáfora para a compreendermos o cérebro: e se este funcionasse como a internet? Graham propõe uma autêntica revolução na compreensão do funcionamento do nosso cérebro que até aqui se tem servido do computador como metáfora, deixando para trás a ideia do funcionamento cerebral como um processo de Computação, para passar a interpretar o mesmo como um processo de Comunicação. A ideia base passa por interpretar menos o cérebro como um processador central de informação, e mais como uma estrutura de interconexões entre secções especializadas, usando protocolos de roteamento partilhados. Ou seja, assumir o cérebro menos como um sistema de computação rígido, e mais como uma estrutura flexível e dinâmica, capaz de se adaptar e transformar ao que se lhe vai exigindo.

setembro 04, 2022

O lago existencial

"Lake" (2021) é um videojogo despretensioso sobre questões existenciais, em particular a relação entre a ambição material e a felicidade pessoal. Jogamos na pele de Kate, uma programadora de topo, 44 anos, nos anos 1980, que decide voltar por duas semanas à vila em que cresceu, o que a vai obrigar a questionar-se sobre tudo o que conseguiu, assim como tudo o que perdeu. Tudo é feito usando a linguagem dos videojogos, sem recurso a grandes monólogos interiores ou filmes explicativos. Durante 15 dias, somos a carteira da vila, em substituição do pai, e temos de distribuir o correio todos os dias, reencontrando assim as pessoas que deixámos para trás. Tudo isto acontece num lugar sereno, junto da natureza e um belíssimo grande lago que contribui para a criação da atmosfera propícia à reflexão na meia-idade.


"Lake" foi desenvolvido, em Unity, pela empresa holandesa Gamious

setembro 01, 2022

O reino de narciso

Cheguei a "O Reino" (2014), não por ter sido um enorme sucesso em França quando saiu, mas por ser apresentado como um ficcionar dos primeiros anos do cristianismo, focado nas vidas de Paulo e Lucas. Tenho-me interessado cada vez mais pelos chamados romances históricos, pelo modo como facilitam o nosso acesso ao conhecimento da História. Mas não foi nada disso que aqui encontrei. Carrère reconta e parafraseia a partir de dezenas de textos históricos e teológicos, oferecendo-nos a sua interpretação sobre os mesmos. Existe ficção nessa sua interpretação, na interpretação das ideias, mas não existe propriamente dramatização, ou seja, recriação das ações dos personagens. Carrère segue um discurso colado ao registo dos documentários de televisão, em que vai comentando os escritos e teorias, algo que poderia até funcionar como não-ficção, mas que se esfuma porque muito do que vai dizendo é pura especulação. Por isso, perde também aquilo que afirma ser a sua forma de escrever quando nos diz que nunca conseguiu acabar de ler as “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, por não se rever no ato de ficcionar, dada a impossibilidade de imparcialidade das histórias. Mas estes seu discurso, mesmo estando sempre colado ao real, com reparos de dúvida constante, é o da sua pessoa e das suas memórias, por isso mesmo não deixa de estar pejado dessa parcialidade. Mais, não há aqui qualquer método para tentar diminuir esse viés, existe antes uma aceitação tácita que, segundo ele, lhe dá liberdade para dizer o que quiser, alardeando que o que diz pode mesmo ter acontecido assim, em certa medida colocando-se no lugar dos autores dos próprios Evangelhos.

agosto 30, 2022

Em Memória da Memória

Maria Stepanova é uma poeta russa, recipiente do prémio russo literário mais antigo, o Andrei Bely, e da bolsa Joseph Brodsky, com poemas traduzidos em múltiplas línguas. Este seu livro, "In Memory of Memory" (2017/2021), foi nomeado para a pequena lista do International Booker Prize de 2021. Não é poesia, mas é lírico; não é ensaio, mas argumenta sobre arte e o humano; não é romance, mas conta histórias de gerações; não é uma autobiografia, mas centra-se sobre os membros da sua família; sendo tudo isto. Sai em Portugal em setembro pela Relógio d'Água.

agosto 28, 2022

A necessidade de ficcionar a vida

"Monogamy" (2020) não é o tipo de livro que leria, mas algumas resenhas trouxeram-me até ele. Sue Miller tem mais de uma dezena de romances publicados, mas nunca tinha ouvido falar da mesma. É uma autora focada no romance de família, entre os romances de amor da seleção da Oprah e o romance mais psicológico. Assim que comecei a ouvir o audiobook fiquei colado, ainda mais assim que percebi que era a própria autora a narradora. Os seus 78 anos emprestam à voz um tom de experiência profundo, tornando a declamação imensamente emocional, particularmente tranquila, capaz de criar paisagens ficcionais totalmente credíveis para onde apenas desejamos evadir-nos. 

agosto 27, 2022

A Idade Brilhante, entre 476 e 1320

Nos últimos anos temos assistido ao redescobrir da Europa Medieval por meio de muitos académicos historiadores que nos têm vindo a alertar para o facto das ideias do senso comum sobre a idade média não estarem corretas. É corrente encontrar na literatura, cinema ou jogos a idade média representada como um tempo de escuridão, sujidade e podridão assim como falta de educação, superstição e ignorância. Ora isto parece não encontrar paralelo na história real, aquela que tem vindo a ser estudada e aprofundada. "The Bright Ages: A New History of Medieval Europe" (2022) é apenas o mais recente exemplo deste trabalho de elucidação histórica a ser publicado. Ajudou-me a compreender melhor as motivações e a necessidade desta revisão da História, e ainda que tenha ficado com dúvidas sobre os avanços cultural e científico desta época, fiquei com poucas dúvidas sobre a hipérbole de trevas como temos representado este período em termos populares.

agosto 26, 2022

A moral depende dos incentivos

O "Arquipélago Gulag" (1973) é um livro-monumento de homenagem aos cerca de 20 milhões que por lá passaram e aos 2 milhões que ali pereceram. GULAG é acrónimo da agência governamental soviética "Administração Geral dos Campos de Concentração", campos mandados criar por Vladimir Lenine, com o início da revolução em 1918, e que atingiriam o seu expoente com Estaline, entre 1930 e 1950. O livro é baseado em mais de 200 testemunhos diretos, tendo surgido como resposta às tentativas de desacreditação de que Aleksandr Solzhenitsyn foi alvo após a revelação da sua experiência do GULAG no livro “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” (1962). Solzhenitsyn foi enviado para o campos de concentração em 1944, tinha apenas 26 anos e era um crente na revolução comunista, mas teve o azar da censura interceptar uma carta que escreveu a um amigo de escola, na qual se referia a Estaline como o Cabecilha da traição da revolução. Por esse "crime" teve direito a passar 8 anos no GULAG.

A imagem é da primeira edição da Harper Collins de 1974. Eu li o livro na versão audiobook, narrado por Ignat Solzhenitsyn, filho de Aleksandr Solzhenitsyn

agosto 25, 2022

"Mar da Tranquilidade" (2022), Emily St. John Mandel

Gostei muito de "Station Eleven" (2014) por apresentar um olhar novo sobre as distopias, assente na calma e tranquilidade. Depois em "O Hotel de Vidro" (2020) Mandel, seguindo o mesmo tom, acaba por mudar para uma linha contemporânea e mais mundana, focando-se na crise económica de 2008, usando personagens que se socorrem do absurdo para gerar interrogações que ficam sem explicação. Neste terceiro livro, em que o título encaixa totalmente na sua forma de escrita, "Mar da Tranquilidade" (2022), já pouco parece existir de novo para nos oferecer. Temos um livro que sintetiza as distopias do primeiro, juntando-lhe as questões estranho-absurdas do segundo, alargando ambos os universos e unindo-os num só. É interessante, porque somos recompensados por ter lido os anteriores, mas ao mesmo tempo sentimos falta de mundo, sentimos que a autora esgotou aquilo que pesquisou sobre os temas e não consegue sair do ciclo em que se fechou.

agosto 24, 2022

A Promessa

"A Promessa" (2021) apresenta dois enormes atributos: o envolvente contar de história e a subversão da forma. Para o primeiro, Galgut usa os métodos de criação de interesse que mantém os leitores suspensos à espera do que vai acontecer a seguir. Fá-lo bem, porque não conseguimos parar de ler. Mas é na forma que nos deslumbra, sendo a história que se conta importante, o modo como Galgut o faz é tudo menos tradicional, quebra todas as regras, desde o ponto de vista, com a voz do narrador a mudar entre personagens, e entre pessoas, dirigindo-se mesmo ao leitor. Não raras vezes temos de voltar atrás porque o personagem que relatava o assunto mudou, e agora a perspectiva é distinta, permitindo-nos perceber de outro modo o que aconteceu, está a acontecer. Pode causar alguma confusão, mas está tão bem cosido que ao fim de algumas dezenas de páginas já entrámos dentro do fluxo criado por Galgut.

Vencedor do Booker Prize 2021

agosto 21, 2022

O Impossível

Depois de ver o filme o filme "Treza Vidas" (2022) de Ron Howard, na Amazon, resolvi ver o documentário "Operação: Resgate na Tailândia" (2021), no Disney+, e posso dizer que o documentário consegue ser melhor do que o filme. O filme saiu este mês, o documentário saiu no final de 2021. Se não fosse real, nunca acreditaríamos que o resgate apresentado seria algo verdadeiramente possível. Só de pensar no número de horas debaixo de água, juntando a escuridão, os espaços apertados e ainda as correntes com detritos. Completamente impossível. Ambos, filme e documentário, dão conta do resgate da equipa de futebol de 12 crianças — entre os 11 e os 16 — e 1 treinador, que ficaram presos numa gruta, na Tailândia em julho 2018, tendo sobrevivido 10 dias apenas com água!


julho 24, 2022

Inacreditável (2019)

"Unbelievable" (2019), série da Netflix, trabalha em profundidade questões empáticas e éticas no trabalho de investigação policial, com particular ênfase na relação com vítimas de violação. Vai ao fundo de um problema social complexo, não só do crime, mas em particular das vítimas e do modo como as instituições as tratam, começando pela polícia, passando pelos tribunais, mas também pela saúde. Fá-lo de uma forma totalmente original, ao contrastar o olhar do polícia masculino com o polícia feminino, algo que noutros crimes pode não fazer grande diferença, mas neste, e com as detetives aqui representadas, se torna nuclear. É uma série intensa, dura de ver, em que se dá conta da enorme importância que a comunicação empática tem, aqui com particular relevância, mas que nos faz refletir a todos os que têm de trabalhar no dia-a-dia com o outro.

julho 23, 2022

The Staircase (2022)

Não sabia que era baseada num caso real, menos ainda que tinha sido feito um documentário enquanto os julgamentos duraram sobre o caso. Vi a série como se tratasse de ficção e não realidade. Vi as voltas e reviravoltas como um guião que tenta construir uma nova forma de narrar os eventos. No final percebi que tudo era real, mas dada toda a incapacidade para se determinar a verdade, na série e fora dela, tudo ficou comigo como uma grande história, montada e preparada para nos questionar. 


O trabalho técnico é soberbo, do guião à cinematografia, passando pelos múltiplos atores de relevo — Colin Firth, Toni Collette, Sophie Turner, Odessa Young, Juliette Binoche, Parker Posey. 

 O 3º episódio foi o ponto alto, um verdadeiro filme, pelo modo como discute a verdade e ficção e depois conduz o espectador entre passado e presente, sem informar nem confundir, brilhante. O resto da série não segue ao mesmo nível, ainda assim bastante boa, apesar de me ficar, agora que sei que é baseada em realidade, algum sentimento estranho de voyeurismo.

O Hotel de Vidro (2020)

“O Hotel de Vidro” surgiu depois do enorme sucesso conseguido com “Station Eleven (2015)”, transformado em série para a HBO. Neste sucessor, Emily St John Mandel continua a oferecer-nos excelência no contar de histórias, ligando personagens, lugares, tempos e eventos numa sucessão que nos agarra e faz virar página atrás de página. Se não existe relação entre as premissas de ambas as obras, o contar de histórias, no tom e ritmo, de emocionalidades suaves, distantes e pausadas aproxima-as tremendamente. Por sua vez, as premissas de ambos tratam temas fortes, no primeiro o pós-apocalipse, neste o colapso financeiro de 2008. Mandel cruza assim um sentimento na forma, do tipo cinema independente — de Hal Hartley ou Jim Jarmusch —, com premissas intensas tipo hollywoodescas, criando uma voz muito própria. Os seus livros não trazem grandes mensagens, não nos comovem em cada página, mas simultaneamente não nos abandonam nem deixam de nos fazer refletir, ficando connosco depois do final. Como se Mandel falasse a partir de uma posição que lhe permite dar a compreender os problemas, mas sentindo não deter qualquer poder para lhes responder. Este sentir surge como parte de uma certa melancolia que olha o mundo como um emaranhado de acontecimentos que se ligam e desligam pelo acaso, sem intenção nem desígnio.



julho 18, 2022

Na Minha Pele, uma série TV

Como se cresce e vai à escola com uma mãe que sofre de desordem bipolar tipo 1 (a mais grave) e um pai alcoólico que não trabalha, em Inglaterra, quando se tem 16 anos? É esta a premissa da série "In My Skin" que cruza comédia-negra com tragédia, e nos obriga a mudar de humor múltiplas vezes ao longo de cada episódio de 30 minutos dos 5 que constituem a série, sem contudo nos darmos conta disso. Esta abordagem narrativa cria um espelho da doença mental e aproxima-nos do interior da personagem principal, que é baseada na vida da criadora da série, Kayleigh Llewellyn.


julho 17, 2022

Biografia de von Neumann (2021)

Ao chegar ao fim de "The Man from the Future: The Visionary Life of John von Neumann" (2021), e tendo em conta a enorme particularidade do intelecto de Von Neumann — aos 6 conseguia fazer divisões com 8 dígitos de cabeça e conversar em grego antigo e latim, aos 8 trabalhava com cálculo diferencial e integral e falava Francês, Inglês e Alemão além do Húngaro, no entretanto leu uma história mundial em 45 volumes e conseguia recitar capítulos inteiros décadas mais tarde —, não consigo deixar de pensar que por mais que endeusemos alguns humanos em particular pelos seus aparentes enormes feitos, o certo de tudo é que estes nada fizeram sozinhos. Ananyo Bhattacharya esquiva-se a falar da pessoa de Von Neumann, centrando-se exclusivamente sobre os seus contributos teóricos. Para esse efeito, trabalha os contributos de Von Neumann para as múltiplas ciências — mecânica quântica, teoria dos jogos, implosão nuclear, arquitetura de computadores e a teoria dos autómatos—, e como esses conduziram no futuro outros a saltos aplicados na história da ciência e tecnologia do século XX. Deste modo Bhattacharya espera demonstrar que Von Neumann previa ou viajava no futuro, contudo, Bhattacharya esquece-se de fazer o mesmo trabalho olhando para o passado, e mais em particular para o lado. Sendo o trabalho de Von Neumann de grande valor, ele não teria existido sem todas as restantes mentes brilhantes com quem se cruzou, de Claude Shannon a Alan Turing, de Einstein a Kurt Gödel, de Erwin Schrödinger a Werner Heisenberg. Este endeusamento pela abstração de ideias pode ser interessante para os colegas das ciências duras, mas eu senti imensa falta do factor humano. Gostaria de ter aprendido mais sobre a pessoa por detrás do modelo usado por Stanley Kubrick para criar Dr. Strangelove, não só pelas profundas contradições morais, mas também para compreender melhor a base dos seus processos criativos.


GoodReads

julho 16, 2022

O Jogo da Linguagem (2022)

“The Language Game” (2022) é mais um importante contributo para a abordagem comportamental da linguagem em detrimento da abordagem inata. Já aqui tinha trazido o trabalho de Daniel L. Everett, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017), assim como "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamim Bergen, ou ainda “Origins of Human Communication” (2008) de Michael Tomasello. A abordagem de Morten H. Christiansen, da U. Cornell e Nick Charter, da U. Warwick, é inovadora, apresentando uma teorização, com base em estudos empíricos, que defende a interação humana como base da linguagem humana, propondo que a produção de linguagem ocorre a partir de jogos de charadas. Cada um de nós procura compreender o outro e pela improvisação fazer-se compreender da melhor forma possível. Quando em face de alguém com quem não partilhamos a mesma língua, partimos para o uso de sons, expressões, gestos, poses, desenhos, construindo charadas que o outro possa chegar a compreender. 

julho 11, 2022

Ouistreham (2022)

"Ouistreham" (2022) (Between Two Worlds) é um filme muito na linha do trabalho de Stéphane Brizé sobre as condições do mercado de trabalho na Europa, em particular em França, mas Emmanuel Carrére adiciona uma variável nova, que é o olhar de quem está acima e que se assume como defensor dessas classes, sem conhecer efetivamente o que é viver nessas condições. 


julho 03, 2022

A vida de Montaigne, segundo Bakewell

Adoro Montaigne, mas soube-me a pouco o livro de Sarah Bakewell, "How to Live, or a life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer" (2010) de quem tinha adorado "At the Existentialist Cafe: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), talvez porque sabia menos sobre Sartre, Beauvoir e Heidegger. Já me tinha acontecido com o livro de Stefan Zweig, "Montaigne" (1942), sobre o qual disse "não se pode chamar a um texto que aglutina um conjunto solto de ideias sobre alguém uma biografia". E agora com Bakewell, voltei a sentir um pouco disto mesmo. Contudo, refletindo, talvez o problema não esteja nos biógrafos, nem tão pouco no biografado, mas na obra principal deste. O brilho dos "Ensaios" (1580) está no modo como nos dá acesso ao modo de ver do próprio Montaigne. Lendo os Ensaios conseguimos em vários momentos calçar as suas botas e viajar pelo seu mundo. Uma viagem que segue pelo meio dos seus pensamentos, sem inícios nem fins, já que é de um modo associativo que cada ensaio se vai desenvolvendo e nos oferecendo acessos ao seu mundo interior e ao passado. Tentar transformar este mundo rizomaticamente livre num encadeado fixo de momentos temporais parece estar destinado à decepção.

julho 02, 2022

“Ethos” (2020), a jóia turca do Netflix

“Ethos” (2020) é uma série dramática turca e uma das jóias escondidas do Netflix. Partindo da telenovela turca faz o caminho inverso da nossa “Pôr do Sol” (2021), optando por usar os tropos não para gozo, mas para os maximizar em qualidade técnica e estética. No final, temos cinema sublime, com a câmara a contar a história e não as bocas dos atores, algo pouco visto em séries, mas não só, toda a composição visual dos cenários e guarda-roupa junto com atores de excelência deslumbrando-nos cena atrás de cena. A estrutura narrativa é também um prazer tremendo, seguindo uma lógica em rede (tipo “Magnólia” (1999)) muito bem desenhada capaz de nos surpreender e recompensar ao longo dos 8 episódios. Mas o que mais me marcou foi sem dúvida o tema do choque de classes e de valores, os cidadãos turcos seculares versus os cidadãos agarrados aos costumes da religião, e o modo como as crenças e os preconceitos corroem a identidade das mulheres, mas não só elas, e tudo com muito Jung à mistura.

junho 26, 2022

Despedida Boémia

"Adieu Bohème" é uma curta com uma premissa brilhante, ainda que não inteiramente nova, mas que se torna especial pelo modo como foi criada: uma performance ao vivo, gravada e transmitida em direto na web, com a banda sonora a ser criada noutro estúdio também em direto. A espontaneidade com algum humor no tratamento de uma questão íntima aparentemente insanável do exterior — o fim de uma relação — acaba por nos tocar e obrigar a pensar sobre o que somos e do que somos feitos neste nosso mundo feito de imagens.

"Adieu Bohème" (2017) de Jeanne Frenkel & Cosme Castro, Opéra National de Paris

junho 25, 2022

"Jerusalém", edição atualizada (2021)

Quis ler “Jerusalém” (2011/2021) de Simon Sebag Montefiore para tentar compreender um pouco melhor um fascínio que desconheço. Queria perceber como é que uma cidade que não contribuiu com qualquer ideia para o avanço da humanidade conseguiu manter-se sempre presente nas agendas do mundo ao longo de mais de 3 mil anos. A leitura, apesar de muito boa, deixou-me ainda mais perplexo. Montefiore faz um trabalho brilhante de inclusão que se sintetiza numa frase: "Naquele momento, o conceito de santidade no mundo judaico-cristão-islâmico encontrou o seu lar eterno". E assim podemos perceber que todo o fascínio da humanidade por esta cidade assenta numa fábula de Origem. A eterna indagação interior, “quem somos e de onde vimos?”, fez rumar ali, ao longo de milhares de anos, das mais altas personalidades de todas as três grandes religiões — reis, imperadores, califas, imãs, rabinos, papas. Muitos levaram consigo os seus exércitos, tendo Jerusalém sido sitiada, atacada e capturada dezenas e dezenas de vezes, incluindo duas vezes em que foi completamente arrasada, não restando pedra sobre pedra. Jerusalém nunca foi além do punhado de pedras num deserto, mas a sua resiliência demonstra o poder humano do contar de histórias.