agosto 26, 2022

A moral depende dos incentivos

O "Arquipélago Gulag" (1973) é um livro-monumento de homenagem aos cerca de 20 milhões que por lá passaram e aos 2 milhões que ali pereceram. GULAG é acrónimo da agência governamental soviética "Administração Geral dos Campos de Concentração", campos mandados criar por Vladimir Lenine, com o início da revolução em 1918, e que atingiriam o seu expoente com Estaline, entre 1930 e 1950. O livro é baseado em mais de 200 testemunhos diretos, tendo surgido como resposta às tentativas de desacreditação de que Aleksandr Solzhenitsyn foi alvo após a revelação da sua experiência do GULAG no livro “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” (1962). Solzhenitsyn foi enviado para o campos de concentração em 1944, tinha apenas 26 anos e era um crente na revolução comunista, mas teve o azar da censura interceptar uma carta que escreveu a um amigo de escola, na qual se referia a Estaline como o Cabecilha da traição da revolução. Por esse "crime" teve direito a passar 8 anos no GULAG.

A imagem é da primeira edição da Harper Collins de 1974. Eu li o livro na versão audiobook, narrado por Ignat Solzhenitsyn, filho de Aleksandr Solzhenitsyn

Este texto é um documento vivo sobre todo o sistema dos GULAG, desde a sua instituição e enumeração das distintas grandes vagas de prisioneiros enviados para lá, à conversão em indústria prisional com retorno financeiro para o Estado. Dá conta ainda dos alegados delitos usados pelos tribunais apoiados em leis escritas que nunca suportaram as penas atribuídas — 10 ou 25 anos atribuídos de modo avulso por simples suspeitas de não seguir os ideias comunistas, enquanto um ladrão de carteiras poderia apanhar seis meses a um ano. Toda a descrição do funcionamento da indústria — dos comboios de carregamento de prisioneiros à vida nos campos e trabalhos forçados para construir grandeosas obras — torna impossível não perceber o GULAG como o sistema que deu origem aos muito mais conhecidos campos de concentração nazis. 

"Pelo sentido e pelo espírito da revolução, é fácil adivinhar que durante os seus primeiros meses as prisões de Kresti, de Butirki e muitas outras prisões provinciais aparentadas – se encheram de grandes ricaços; de personalidades políticas destacadas, de generais e oficiais; e ainda dos funcionários dos ministérios e de todo o aparelho do Estado que não cumpriam as disposições do novo poder.

No entanto, V. I. Lenine definira objetivos ainda mais vastos. No artigo «Como organizar a emulação» (7-10 de janeiro de 1918)4, proclamava como objetivo único comum «limpar a terra russa de todos os insetos nocivos». E por insetos entendia não apenas todos os estranhos à classe operária, mas também os «operários que se esquivam ao trabalho» (...) É verdade que as formas de limpeza previstas por Lenine nesse artigo eram variadas: nuns casos metê-los na prisão, noutros pô-los a limpar as latrinas, noutros ainda «depois de saírem da prisão dar-lhes bilhetes de identidade amarelos», noutros fuzilar o parasita.

Insetos eram, naturalmente, os membros dos zemstvos (administração local do czar). Eram insetos os cooperativistas. Todos os proprietários de imóveis. Havia também muitos insetos entre os professores de liceu. Eram insetos todos os sacerdotes, e mais ainda todos os frades e as freiras. Muitos insetos escondiam-se sob o uniforme dos ferroviários, era necessário extirpá-los, e alguns deles, açoitá-los (...) 

E quantos malditos intelectuais de todo o género, estudantes turbulentos, excêntricos vários, buscadores da verdade e alienados, dos quais já Pedro I se ufanava de ter limpo a Rússia e que sempre atrapalham um Regime harmonioso e severo?

E teria sido impossível levar a cabo essa limpeza sanitária, ainda por cima, nas condições da guerra, usando as antiquadas formas processuais e normas jurídicas. Mas adotou-se uma forma completamente nova: a repressão extrajudicial, trabalho ingrato que foi abnegadamente assumido pela Tcheka, Comissão Extraordinária de toda a Rússia – Sentinela da Revolução –, único órgão de repressão na história da humanidade a acumular nas suas mãos: a vigilância, a detenção, a instrução do processo, a acusação, o julgamento e a execução da sentença.

(...)

Isto era assim explicado abertamente (Latsis, jornal Terror Vermelho, de 1 de novembro de 1918): «Não fazemos guerra contra indivíduos. Exterminamos a burguesia como classe. Não busquem provas materiais de que o acusado agiu contra os Sovietes por actos ou por palavras. A primeira pergunta que lhe devem fazer é a que classe ele pertence, qual é a sua origem social, a educação, a instrução ou a profissão. Estas questões é que devem determinar o destino do acusado. É nisso que está o sentido e a essência do terror vermelho.»"

Se os nazis enviavam para os campos pessoas pela suposta pertença étnica — tinham sistemas de contabilização do número de gerações a partir do qual se poderiam considerar "limpos" —, os soviéticos enviavam pela simples suspeita de pertença ideológica. Podemos pensar que os nazis inventaram a Solução Final, foram aonde nunca ninguém tinha ido, mas a diferença reside mais na abordagem pragmática alemão de resolução do problema do que na consciência. Isto porque quem era enviado para o GULAG era esquecido, ou seja, assumido como morto, pois não se esperava que realmente alguém pudesse voltar de um lugar em que se atingiam temperaturs de -50º, vivendo sem aquecimento, sem roupas próprias para o efeito, e apenas um pedaço de pão por dia.

"Não é necessário repetir aqui tudo o que já foi amplamente escrito e ainda será muitas vezes repetido sobre o ano de 1937 (...)

Eis um pequeno quadro do que acontecia naqueles anos. Uma conferência distrital (na região de Moscovo) da organização do partido. Dirige-a o novo secretário do comité distrital, em substituição daquele que foi recentemente detido. No final da conferência adota-se uma mensagem de fidelidade ao camarada Estaline. É claro, todos se levantam (como durante a conferência todos se levantavam de um salto de cada vez que o nome dele era referido). Na pequena sala eclode «uma tempestade de aplausos, que se transforma em ovação». Três minutos, quatro minutos, cinco minutos, os aplausos continuam tempestuosos e a transformar-se em ovação. Mas já doem as palmas das mãos. Já os braços levantados entorpecem. Já as pessoas de mais idade começam a ofegar. E já isto começa a tornar-se insuportavelmente estúpido até para aqueles que sinceramente adoram Estaline. Contudo: quem se atreve a ser o primeiro a interromper? Porque aqui, na sala, estão também a aplaudir de pé alguns membros do NKVD, e espreitam a ver quem será o primeiro que se atreve a parar!… E os aplausos na pequena sala desconhecida, ignorada pelo chefe, prolongam-se por seis minutos, sete minutos, oito minutos!… Eles sucumbem! Estão perdidos! Já não conseguem parar, enquanto não caírem de coração rebentado! O diretor de uma fábrica de papel local, homem sólido e independente, está na presidência e aplaude! – nono minuto! Décimo minuto! Olha com tristeza para o secretário do comité distrital, mas este não se atreve a parar. Loucura geral! E o diretor da fábrica de papel, ao 11.° minuto, assume o ar de homem prático e senta-se no seu lugar à mesa da presidência. E então – ó milagre! – onde foi parar o irresistível e indescritível entusiasmo geral? Todos pararam no mesmo aplauso e se sentaram ao mesmo tempo. Estavam salvos! O esquilo lembrou-se de saltar para fora da roda!…

Contudo, é precisamente assim que se descobrem os espíritos independentes. E é assim que os extirpam. Nessa mesma noite o diretor da fábrica foi detido. Facilmente acham outro motivo para lhe aplicar dez anos. Mas depois da assinatura do 206.° (conclusão das investigações), o instrutor do processo lembra-lhe:

– E nunca seja o primeiro a parar de aplaudir!

(Mas que fazer? Como havemos de parar?…)

É isto a seleção segundo Darwin. É isto o esgotamento pela estupidez."

O GULAG não desapareceu com Estaline, apesar da estrutura legal ter sido desmantelada e de terem sido fortemente diminuídos os abusos nas sentenças. Os campos prisionais permaneceram ativos muito depois deste livro ser publicado, até pelo menos 1987, e ter sido lido em todo o mundo graças ao impacto do Prémio Nobel que lhe foi atribuído em 1970. 

Li este livro agora, 50 anos após a sua publicação, mas tinha lido muita outra coisa sobre o tema por isso não esperava encontrar nada aqui de novo, mas encontrei. A leitura foi de um ponto de vista humano muito difícil, mas foi por isso mesmo imensamente esclarecedora sobre aquilo que faz de nós humanos. Tanto somos capazes de fazer o maior bem, como o maior mal. É completamente indiferente, basta que a bússola moral mude a agulha. Criem-se os incentivos ao comportamento necessário e a sociedade seguirá. O sistema nazi não inventou nada. Já estava em nós. Aquilo de novo que os algozes — Lenine, Estaline, Mao, Hitler, ... — inventaram no século passado, foram apenas estratégias de comunicação para fazer acreditar milhões de pessoas que o que faziam era correto. Nós estamos certos, os outros estão errados, e para que o nosso certo funcione esses outros precisam de ser subtraídos, se necessário eliminados.

"All you freedom-loving “left-wing” thinkers in the West! You left laborites! You progressive American, German, and French students! As far as you are concerned, none of this amounts to much. As far as you are concerned, this whole book of mine is a waste of effort. You may suddenly understand it all someday — but only when you yourselves hear “hands behind your backs there!” and step ashore on our Archipelago." -- este parágrafo não se encontra na edição portuguesa da Sextante, por isso trancrevo-o aqui em inglês.


1 comentário:

  1. Difíl entender como seres humanos são capazes de urdir tamanha maldade com outros, só porque pensam e agem de forma diferente, independente e livre!

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