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janeiro 29, 2018

Projetual sim, mas não em modo exclusivo

"Lifelong Kindergarten" (2017) é o mais recente livro de Mitchel Resnick, professor do MIT Media Lab e criador do Scratch, sobre o qual devo começar por dizer que não é um livro de ciência, é um livro de divulgação de ciência. Neste sentido, e apesar de ter o selo da MIT Press, vem juntar-se ao livro “Whiplash” (2016) de Joi Ito (diretor do MIT Media Lab), que também se foca mais no dar a conhecer e menos nos fundamentos. Seguem ambos um mesmo padrão: escrita leve, escorreita, sintética, que podemos ler muito rapidamente para conhecer contornos gerais. Contudo, se tive críticas a apontar a Joi Ito, Resnick não passa incólume, não por seguir a mesma abordagem de divulgação, mas antes pela filosofia de base que suporta o que dizem, e que apresentam ambos, como se fossem caminhos únicos, sem alternativa, que todos deveríamos seguir. Também não será aqui, num texto de blog, que poderei desmontar e contra-argumentar, estou a escrever artigos mais longos ligados ao assunto, que mais tarde aqui darei conta, mas para já deixo algumas das linhas gerais suscitadas por esta leitura.


Começando pelo melhor, temos um sumário do trabalho de Resnick, daquilo que veio a dar-nos o Scratch, não apenas a ferramenta, mas a Comunidade Scratch, que é o culminar de um esforço iniciado por Papert há quase 40 anos, que Resnick soube muito bem continuar. Deste modo, talvez o mais importante do livro seja a apresentação e discussão, que perpassa todo o livro, sobre a criação e gestão das Computer Clubhouses, ou seja os clubes em que as crianças aprendem a programar, entre outras atividades ligadas às tecnologias. A filosofia de base é o melhor do livro, professa a visão de Resnick, que não sendo nova, pode e deve servir àqueles que desejem enveredar por este tipo de associações ou grupos de aprendizagem. Tenho sido um seguidor de Papert e Resnick desde sempre, e muito do meu fascínio com o seu trabalho está ligado à filosofia que suporta estas comunidades de crianças e que assenta no brincar, no aprender fazendo, no colaborativo e na partilha.

As "computer clubhouses" de que Resnick fala surgiram com as primeiras comunidades de hackers de informática, mas nunca desapareceram, antes se diversificaram, existindo hoje não apenas os clubes, mas também os eventos de congregação como as Hackathons, Codefests ou Game Jams.

Indo agora ao pior, ou o problema que tanto me incomodou: a monodirecionalidade da abordagem, que acaba parecendo-se mais com uma religião, com as suas crenças de que é possível fazer tudo com o mesmo “martelo”, mesmo quando se reconhece que as crianças são todas diferentes. Resnick reconhece as diferenças entre crianças mas não reconhece a diferença entre métodos de ensino, e isso é um problema grave. Não porque não os conheça, mas simplesmente opta por ignorar os mesmos, e defender o seu modelo como caminho único. O elefante no meio da sala de Resnick, é a defesa intransigente do construcionismo quando sabemos que nem todos os conteúdos são adaptáveis a essa abordagem de ensino. Quando sabemos que a forma e a estrutura é apenas uma parte de um todo, que tem de ter um conteúdo e um significado. Pensar que se pode ensinar tudo por meio de estratégias projetuais é no mínimo ingénuo.

Só que o problema agrava-se, e bastante, quando Resnick chega ao seu 4º e último “P”, o do “Play”. Para suportar a sua preferência pelo conceito de “playfulness” em vez de “play”, Resnick vai suportar-se nas vivências de Anne Frank durante o tempo em que esteve presa. Considero este momento marcante em toda a leitura, porque dá conta do paradoxo apresentado ao longo de todo o livro. Resnick diz-nos que aprendeu mais sobre o conceito de Play a partir da visita que fez à casa de Anne Frank, em Amesterdão, do que a partir da conferência sobre tecnologias de videojogos em que estava a participar nessa cidade. Pode parecer uma banalidade, e até pode parecer suportar a ideia que o autor quer defender, mas contém a essência da limitação da abordagem construcionista.

Ou seja, Resnick não chega à compreensão do conceito abstrato de Play por meio da construção de projetos, mas por meio da leitura que fez do livro de Anne Frank, por meio da exposição aos sentires, preocupações, enfados, e essencialmente pela descrições que ela realiza nesse livro e nos permitem ficar a conhecer a sua personalidade. Mas é ainda mais grave, porque Resnick foge à essência da base educativa fornecida pelos pais de Anne Frank. Resnick foca-se no modo como Anne passava o tempo encetando projetos para entreter o tempo, a sua atitude brincalhona, e em nenhum momento faz referência às centenas de livros que Anne Frank, a irmã e os pais liam. Sim, porque Anne Frank só escreveu o livro que escreveu, porque lia muito, muito mesmo. E se tinha uma imaginação fértil, era porque esta era alimentada com o mundo que lhe entrava pelas janelas dessas páginas. Se Anne Frank tivesse sido educada na base do método aqui apresentado por Resnick, exclusivamente assente na realização de projetos, nunca se teria tornado na escritora que ainda conseguiu ser antes de desaparecer prematuramente.

Eu faço referência a isto porque já tinha acontecido alguns capítulos antes, quando se compara o Scratch com uma caneta que permite expressar ideias (a comparação é boa, o problema é a base). Resnick fala na necessidade de treinar a escrita, de treinar a comunicação, mas nunca refere a necessidade de ler, ler para conhecer factos, conhecer mundo, para poder expressar algo significativo. Porque essa é a essência dos problemas de muito daquilo que se pretende rotular de criativo. Criar não é apenas estrutura, dar forma, “pôr a funcionar” ou “pôr bonito”, criar é dar sentido à realidade. Basta olhar para os primórdios do Cinema e ver os filmes feitos por engenheiros, ou uma boa parte dos jogos digitais ainda hoje criados por equipas constituídas exclusivamente por informáticos, para compreender que não chega ser capaz de fazer, nem fazer bem. Até mesmo na literatura, basta ver o que fazem autores como Pedro Chagas Freitas, que escrevem centenas de livros e ainda dão workshops de escrita criativa. Se não existe conteúdo para colocar dentro, não existe comunicação. Quem não é exposto e confrontado com os sentires do mundo, quem não consome, analisa, discute e critica, não cria verdadeiramente.

Dito tudo isto, deixei o texto parado para refletir sobre o que tinha escrito, o que me obrigou a repensar o que tinha escrito, dado o enquadramento geral da área da Educação. Na realidade, a discussão em redor da aprendizagem é um território terrível no qual as trincheiras estão muito bem definidas, e não existe muito espaço para o meio-termo. Se Resnick discursa desta maneira não é por acaso, ele tem razão na maior parte do que diz, e não diz nada de errado, apenas omite o outro lado. E omite porque nesse outro lado, existe um conjunto de ideólogos prontos a disparar a todo o momento. Em Portugal isto é bem conhecido, apresentam-se como demonizadores daquilo que eles definem como “Eduquês”, o seu maior expoente, Nuno Crato, chegou mesmo a Ministro da Educação, e vimos no que deu. No entanto, depois de quase escorraçado, e ter passado por um pequeno período de silêncio, ainda por estes dias voltou a dar um ar da sua graça, lançando fel no texto: “Eles hoje aprendem de maneira diferente… Ah é?!”.

Para fechar. Sou grande defensor da abordagem projetual, e continuarei a ser, só não quero é que esse caminho seja visto como exclusivo. Esta abordagem para funcionar plenamente, e permitir a criatividade brotar com sentido, precisa de ser suportada por muita exposição e confrontação de ideias. No fundo é aquilo que já hoje usamos nas nossas universidades, que distingue aulas teóricas de teórico-praticas e laboratoriais. O trabalho projetual é essencial para que o aluno cresça, ganhe autonomia, colabore com os pares e desenvolva competências, mas antes disso acontecer tem de ser exposto aos múltiplos conceitos teórico-abstractos do domínio.

março 13, 2016

Momentos criativos em família

O fim-de-semana é por norma dedicado à família, ainda que se aproveitem os momentos mais parados para avançar trabalho, por isso ao longo do ano as atividades que se realizam variam bastante, desde passear de bicicleta a ir a casa dos avós, realizar alguma visita mais distante ou apenas descansar por casa, e pelo meio vai-se encontrando também alguma vontade de criar.



As crianças cá em casa (7 e 10) adoram atividades criativas, adoram experimentar, mexer, trocar, mudar, transformar em busca da melhor conjugação, da melhor composição, em busca da replicação de conceitos e representações anteriormente vistas e sentidas num qualquer filme ou videojogo. É verdade que por terem acesso a todo um mundo de conteúdos se tornam bastante exigentes com o que criam, frustrando-se muito por não conseguirem chegar rapidamente, ou tão bem, à imitação do que já conhecem. A impaciência reina e cabe-nos a nós ser capazes de a domar, para tal é crucial definir objetivos curtos, que possam ser atingidos rapidamente e com esforço reduzido para que possam começar a percepcionar o caminho, sentindo que apesar de não poderem chegar ao que viram na televisão, estão a conseguir construir algo, sentindo progressão.


Há umas semanas foi a vez da mais velha pegar na caixa "Estúdio de Animação" e na máquina fotográfica que recebeu no Natal e começar um projeto que já tinha sido discutido noutros fins-de-semana sem consequência. Assim, depois das fotografias tiradas pela própria (54), ajudei-a a construir o resto do filme no After Effects. Mais do que aquilo que possa ter aprendido, em termos de competências técnicas, retiro a enorme satisfação na forma de realização pessoal que ela sentiu na finalização do projeto, quando percebeu que tinha na sua frente um pequeno filme com princípio, meio e fim, criado praticamente por si apenas, intitulado por ela como "O irmão sério e o irmão brincalhão".

"O irmão sério e o irmão brincalhão" (2016)

Já este fim-de-semana foi a vez do mais novo, que não se interessou muito pelo projeto de animação da irmã, tendo no entanto ficado deslumbrado há algumas semanas quando lhe disse que poderia construir o seu próprio videojogo no Scratch. Esta história tem um aparte delicioso que dá bem conta daquilo que frisava acima sobre a impaciência das crianças de hoje, já que quando lhe disse que o jogo não poderia ser jogado nem na Nintendo 3DS nem na Playstation da sala ficou "possesso", dizendo-me mesmo que sendo assim já não queria fazer jogo nenhum! Foi preciso algum trabalho de desmontagem das ilusões construídas na sua cabeça, e tempo, tendo feito com que o projeto se arrastasse por três fins-de-semana. Começámos então por digitalizar as dezenas de personagens que ele se vai dedicando a desenhar (ver as duas imagens no topo deste texto), baseadas em universos ficcionais como os Invizimals ou o Pokémon, mas foi um desenho mais recente que acabou por apresentar todos os ingredientes necessários à construção do primeiro jogo, ou melhor dizendo, ilustração interativa, tendo assim chegado-se ao resultado final que ele intitulou de "Fogo na palha"!

Não sendo nenhum dos trabalhos excepcional, dou aqui conta destes não pela sua qualidade ou diferença, mas apenas pelo modo como servem na produção de interesse e motivação pelas diferentes artes, ajudando as crianças a compreender os processos de construção por detrás de objetos culturais do seu quotidiano que tanto gostam, reconhecendo assim o trabalho e dedicação necessárias à sua construção. Acima de tudo, espero que estas experiências desenvolvam neles o gosto por continuar a experimentar e criar.

"Fogo na palha" (2016) [usar setas e espaço]

novembro 20, 2013

análise do uso de LEGO no ensino da Matemática

Encontrei um artigo sobre o uso de LEGO que é extremamente interessante pela análise que faz, e pela meta-análise que proporciona do LEGO. A análise centra-se sobre a importância do LEGO para o ensino da matemática. A meta-análise surge no modo como Alycia Zimmerman enquadra o LEGO no seu crescimento, contando-nos que em pequena não conseguia perceber o encantamento que essas pequenas peças tinham sobre os seu irmãos, para ela não passavam de "blocos rígidos". Alycia vai mais longe ainda e refere que a grande maioria dos professores de hoje são mulheres e que por isso existe uma grande probabilidade de estas não terem brincado suficientemente com LEGO.



Nesta constatação de Alycia verificamos apenas o velho paradigma, já bem enunciado por Baron-Cohen, de que o cérebro masculino está mais orientado aos sistemas, e o feminino à empatia (ver post anterior). Apesar destas abordagens não poderem assumir-se como absolutas, tal como não podemos assumir que todo o ser humano é heterosexual, sabemos que serve numa análise de médias gerais. Dos meus estudos à volta deste assunto, venho concluindo que a generalidade dos homens, por possuírem maiores níveis de testosterona, agem mais sobre o mundo exterior e para isso precisam de o sistematizar, estruturar e quantificar. Já as mulheres, maiores produtoras de ocitocina, têm uma maior tendência para a proximidade e intimidade com o outro, tornando-se melhores na gestão de relações humanas.

E foi isso que mais me interessou neste texto de Alycia Zimmerman, além da sua contribuição com exercícios para a aprendizagem de matemática. O modo como ela concebe que o LEGO é à partida algo mais atractivo para os rapazes do que para as meninas. Mas é também algo que não afasta as meninas, já que se torna também muito interessante para estas, não pelo seu lado de sistema, mas pela sua componente estética.

No fundo, o diferente da sua abordagem ao ensino está no modo como ela realiza o esforço de captação da atenção dos seus alunos. Alycia criou exercícios com LEGO para o ensino da matemática, sabendo que deste modo estaria a criar pontes de empatia com os seus alunos. A questão não é o LEGO ser a melhor ferramenta para o caso. A grande questão, e no fundo o que revela a inteligência social feminina desta professora a funcionar, é ela ter ido buscar elementos do mundo das crianças para através destes metaforizar o mundo abstracto da matemática. Isto é ensinar Matemática de um modo que só um cérebro feminino conseguiria fazer. Porque só a sua necessidade de gerar empatia no receptor, o aluno, a levaria a desenhar ideias a partir do mundo dos seus interlocutores.


Para todos os que ensinam matemática, professores ou pais que têm de ajudar os seus filhos, aconselho vivamente a leitura do texto e o download das fichas de exercícios com LEGO.

fevereiro 10, 2013

a história de uma criança de 6 anos

The Scared is Scared (2012) é um filme de fim de curso criado por Bianca Giaever com um guião elaborado por Asa Baker-Rouse, um menino de 6 anos. Entretanto descobri que na internet existe já um nicho de pessoas que se dedicam a criar pequenos filmes baseados em histórias de crianças. Vejam as séries Written by a Kid, e Kid History. Apesar disso continuo a acreditar que The Scared is Scared não é apenas mais um episódio deste género. Não porque é um trabalho de estudante, mas porque a autora conseguiu extrair de toda aquela fantasia um fio condutor, uma lógica narrativa e um sentido complexo que toca o espectador além do mero fascínio com as fantasias da mente de uma criança.



Olhando para o currículo de Bianca Giaever percebe-se muito rapidamente como é que ela conseguiu obter esta pérola do seu "guionista". Bianca realizou este filme como trabalho de fim de curso na área de Estudos Narrativos sendo que o seu domínio preferencial é o Rádio. A forma como ela se descreve é especialmente importante para compreendermos este filme,
"I obsessively record the conversations I have with people. I've made radio pieces on topics such as strangers who have dinner, veterans, poetry teams, my little brother coming out, private prisons, and Tibetan immigrants among others. I'm happiest when I'm making films out of radio stories."
Analisando mais alguns dos seus trabalhos de rádio, percebemos que Bianca se especializou em captar essências humanas a partir de narrativas pessoais contadas meramente de forma oral. E é isto que ela faz aqui, capta o interior do menino, e depois recria-o visualmente para nos aproximar dele. Mas que não restem dúvidas de que o guião é uma construção partilhada, a história evolui e assume um carácter mais comovente quando Bianca introduz o seu receio de finalizar o seu curso sem ter plano algum para o seu futuro. Aqui a criança brilha, porque é apenas uma criança, mas ao mesmo tempo porque dá uma lição de vida do alto dos 6 anos, a todos nós, dizendo apenas "The scared is scared of things you like".


O filme comove-me ainda mais como docente destas áreas. Nos últimos tempos temos lido tanta coisa sobre o ensino superior, em que se generaliza, e se assume muito erradamente nos EUA, que o único ensino de qualidade está na Ivy League (Harvard's, Stanford's, etc.). E que a solução passa por criar os chamados MOOCs, em que os chamados grandes professores podem ensinar milhares de alunos através de uma câmara de vídeo e uma ligação à internet. Pois aqui fica uma demonstração de que uma Universidade média americana consegue produzir trabalhos criativos brilhantes. Mais do que isso, demonstra algo que venho dizendo desde há muito, uma grande Universidade, em termos de ensino, depende mais dos grandes alunos que consegue atrair, do que dos grandes professores que tem nos seus quadros.

The Scared is Scared (2012) de Bianca Giaever