Daniel Bergner realiza serviço público com este livro, “The Mind and the Moon” (2022), ao dar conta do modo como a medicina lida com a doença mental no século XXI. Bergner começa por relatar o horror de um passado não muito distante, dos primeiros hospícios às lobotomias de Egas Moniz, evidenciando que se muito mudou, mudou mais ainda com a secundarização de Freud e a atribuição total de primazia ao poder da química para alterar a biologia. Podemos pensar que tudo foi sendo feito em nome da evidência científica, os problemas começam quando essa não é tão evidente como a indústria farmaceutica quer fazer crer. Os problemas acontecem quando a evidência funciona apenas para uma parte da população, enquanto na outra não vai além de placebo. Os problemas acontecem quando parecendo que funciona acaba por ditar uma qualidade de vida pior do que aquela que existia na sua ausência. Senti por vezes algum receio em continuar a leitura por, em partes, o discurso roçar a teoria da conspiração. Mas, o facto de Bergner ter vários livros publicados, escrever para algumas revistas de referência internacional, e acima de tudo estar a dar conta, em parte, de memórias vividas ao lado de um irmão que passou os últimos 40 anos a lutar com a doença, faz com que nos disponhamos a continuar a ler. Bergner questiona tudo e todos sobre os tratamentos, quase exclusivamente assentes no químico, que oferecemos à doença mental, terminando apenas com uma certeza, a de que continuamos a saber muito pouco sobre o funcionamento da mente.
“The Mind and the Moon: My Brother's Story, the Science of Our Brains, and the Search for Our Psyches” apresenta uma fusão de géneros ao misturar memórias com a história da psiquiatria, e ainda a reportagem sobre as vidas de três sujeitos que lidam com doenças mentais — Caroline, David e Bob (o irmão do autor). O título é a síntese da razão para a escrita do livro e assenta em dois sonhos distintos de John F. Kennedy, que transcrevo abaixo:
"I believe that this nation should commit itself to achieving the goal, before this decade is out, of landing a man on the moon and returning him safely to the earth. No single space project in this period will be more impressive to mankind, or more important for the long-range exploration of space; and none will be so difficult or expensive to accomplish." JFK, 1961
“Today, under present conditions of scientific achievement, it will be possible for a nation as rich in human and material resources as ours to make the remote reaches of the mind accessible. The mentally ill and the mentally retarded need no longer be alien to our affections or beyond the help of our communities.” JFK, 1963.
Como demonstra o autor com todo este seu trabalho, chegar à lua foi bastante fácil, mas chegar ao "extremo recôndito da mente" continua fora do nosso alcance após 60 anos. São muitos os estudos discutidos, nomeadamente os trabalhos de Irving Kirsch que colocaram a nu o poder dos antidepressivos, que estão longe de serem capazes de oferecer aquilo que as farmacêuticas apregoam, com resultados que superando o placebo estão longe de impressionar. Por outro lado, continuamos sem saber o que realmente fazem estes medicamentos ao nosso cérebro, uma vez que as múltiplas teorias explicativas sobre o "desequilíbrio químico" por vezes parecem indistinguíveis das teorias das purgas de sangue do tempo de Hipócrates. Nada que nos devesse surpreender, se pensarmos que sobre a droga mais tomada por todos nós para as dores, o paracetamol, pouco sabemos sobre "como funciona".
Sendo o livro tão frontal, podemos pensar, como cheguei a pensar a meio, que está a prestar um mau serviço já que está a dar lenha aos descrentes da ciência. Mas questionar e exigir mais da ciência não deve ser censurado, deve antes ser enaltecido. Sabemos que o placebo por mais interessante que seja, está longe de poder funcionar como alternativa aos antipsicóticos ou antidepressivos, e também sabemos que não queremos voltar ao passado em que a exclusão social era a norma para estas pessoas. Mas sabemos que podemos, e temos, de fazer mais. Se existe área em que a farmácia tem de avançar para a personalização do medicamente é esta. Não podemos continuar a oferecer medicamentos iguais a milhões de pessoas que padecem de uma tão grande variabilidade de sintomas. Mas também não podemos continuar a acreditar que tudo se resolve, ou apenas se resolve, por via química. A doença mental tem uma relação demasiado forte com o meio envolvente para podermos simplesmente ignorar a importância das terapias comportamentais.
1) Na realidade Freud tem sido muito maltratado pela Medicina, embora na dicotomia clássica neurose/psicose, as neuroses, por estarem mais ligadas a situações externas na vida dos pacientes, têm encontrado especial acolhimento na psicanálise. A mim o que me aflige mais na psicanálise é a duração dos "tratamentos", pois pelo que tenho lido, chegam a durar vários anos.
ResponderEliminar2) Relativamente à primazia do poder do químico que o Nelson fala, parece-me que hoje em dia a terapêutica aplica um modelo integrado, constituído por terapia individual e em grupo, hipnose, medicamentos e ainda estimulação magnética (palavra que me faz lembrar o filme Voando Sobre um Ninho de Cucos). Pessoalmente não tenho nada contra o uso do medicamento, mas desconfio dos lobbies das farmacêuticas.
3) Por fim, o seu artigo fez-me lembrar o grande Coimbra de Matos quando dizia: "Fiz-me psiquiatra, para não ter de ir ao psiquiatra; psicanalista, na procura de me entender; professor, com a finalidade de aprender”.
Boa noite Joaquim,
EliminarNão pretendeo aqui defender a psicanálise, aliás tenho sido um grande detrator da mesma, contudo à medida que vamos sabendo mais sobre o alcance da química devemos questionar-nos sobre tudo, e a verdade é que a psicanálise ataca uma frente importante da doença.
Quanto à terapia, sei que existem tratamentos diversos, mas acontecem para casos mais complicados, provavelmente de internamento, com os restantes milhões de pessoas a sobreviver sozinhos à custa das caixas compram na farmácia todos os meses.
Obrigado pela belíssima citação de Coimbra de Matos, muito boa!