Não sei como passei ao lado de "Make It New: A History of Silicon Valley Design", um livro já de 2015, mas é uma das maiores jóias sobre a História de Silicon Valley, sobre o nascimento das tecnologias multimédia, mas em particular sobre o modo como o design, e não o desenvolvimento, se tornou no centro da criação tecnológica. Li já dezenas de livros sobre esta história, mas este livro de Barry M. Katz, Professor de Design Industrial e Interação no California College of the Arts e Colaborador da IDEO, Inc., distingue-se por apresentar pela primeira vez uma perspectiva completa a partir do design. Foi, sem dúvida, uma das minhas leituras mais gratificantes de 2022.
Gostei do livro "Mapping Experiences Diagrams" (2016), mas não me será útil, ou seja, considero que aquilo que James Kalbach tenta aqui fazer, mapear as experiências de uso das aplicações, pelo menos do modo como foi feito, não funciona porque peca por um excesso de formalização do conhecimento. No fundo a intenção era excelente, ajudar os designers a criar mapas de experiência, num tempo em que a experiência se assumiu como o mais importante de qualquer aplicação, mas o caminho escolhido pelo autor acaba sendo algo despropositado.
Em termos mais concretos, Kalbach procura neste livro fundir o conhecimento do Design Gráfico, da Visualização de Informação, do Design de Interação e do Design Thinking para chegar a um documento único que representaria o objeto último do trabalho de UX. Considerando que o esforço foi feito, e que não faltam recursos a Kalbach, considero que o resultado é um conjunto de ferramentas complexas, que acabam a servir mais o registo do que o design. Ou seja, os mapas apresentados são interessantes visualmente, atraem o nosso interesse, mas a sua construção acaba sendo tão detalhada que facilmente roçará a frustração, aproximando-se muito daquele tipo de ferramentas a que nos fomos habituando nos últimos anos, criadas pelos gestores da qualidade, que servem para tudo formalizar, mas que têm impacto zero na melhoria do trabalho.
Bonito para olhar, mas muito pouco útil para quem desenha a experiência.
Polanyi discutiu há muitos anos a diferença entre conhecimento tácito e conhecimento explícito, O primeiro é aquele que não podemos passar por meios verbais ou textuais, não se pode formalizar, porque contém uma miríade de detalhes que só podem ser apreendidos pela experiência no tempo. O caso mais simples e que todos conhecem é o andar de bicicleta, mas no mundo das artes, a grande maioria do conhecimento relacionado com o ato de criação é deste tipo. Neste caso, não diria que o conhecimento do Design de Experiência e UX é todo tácito, muito é explícito e utiliza imensas metodologias do design mas também da psicologia e da sociologia para atingir os seus fins. Mas no meio deste, existe muito conhecimento que se constrói a partir da relação com os dados, as pessoas e os artefactos que não é simplesmente plasmável numa folha de excel ou num gráfico.
Sei bem que é custoso admitir tal, as razões prendem-se mais com o tipo de sociedade em que vivemos, que tudo quer quantificar. Ou seja, existe uma necessidade do Designer de Experiência justificar o seu trabalho perante os outros, e sendo este trabalho ainda secundarizado, porque não imediatamente visível, nada melhor do que ter ferramentas que possam dar a ver o que representa em concreto esse trabalho. Talvez por aqui aceite as propostas de Kalbach, é preciso que os restantes membros das equipas reconheçam o trabalho realizado pelos colegas de UX, mas sinto que o investimento que se está a fazer aqui, serviria melhor se fosse colocado ao serviço das pessoas e do design.
No meio de tudo isto, existem claramente ferramentas apresentadas por Kalbach que considero particularmente relevantes para o Design de Experiência, uma delas é o User Story Mapping (p.214), que é fundamental na modelação de modelos mentais no uso de aplicações. Não é uma ideia original sua, vem de trás, de Lucy e Larry Constantine ou Jeff Patton, e gosto particularmente da proposta aqui trazida de Steve Rogalsky (ver imagem abaixo) :
Este Story Map funciona muito bem no suporte do alinhamento das tarefas com a experiência que se pretende criar com a aplicação.
Passos para a criação do User Story Map:
Frame the idea: As a team, discuss why you are building the product. Identify and record the benefits and prob- lems it solves. Also decide on who you are building the product for. Write your responses down at the top of the map. Map the big picture: Illustrate the flow of the solution chronologically, including details about specific actions. If possible, include the pains and joys users have today to inform your development decisions. Explore: Use the map to facilitate conversations about desired outcomes and the intended experience. Describe the features to support users and record them as stories on the map. Sketch solutions as needed, and go back and interview customers as well. Create a release strategy: Break the user stories into different releases, starting with the minimum that’s necessary to reach the desired outcome. Build, measure, learn: As development progresses, track the team’s learning against the user story map. Keep it in a visible place and refer back to it often.
A construção em papel físico com quadro a que todos podem aceder e discutir é muito mais interessante do que a versão meramente digital.
Outra das mais valias apresentadas neste livro é a enorme defesa da figura de workshop para desenvolver o design, ou seja, a figura participativa e colaborativa do desenhar, criar e construir. Ao longo de todo o livro são expostos vários modelos para conceber oficinas e momentos de brainstorm e colaboração, algo que é fundamental no design de UX, já que não é algo que possa ficar ao alcance do mero designer isolado.
Workshop em que se promove um jogo com Journey Maps de uma aplicação com diferentes personas usadas por múltiplos designers.
Por outro lado, uma das demonstrações do falhanço da excessiva formalização proposta surge pela referência que o autor decide fazer à estrutura sintática de Evento, proposta por Philip Johnson-Laird, a propósito da desconstrução dos eventos narrativos (p.305), que só pode ter utilidade para uma máquina, ou seja implementação em inteligência artificial, já para o ser humano é irrelevante, já que não é possível para nós construir histórias a partir daquelas modelações narrativas, por estarem completamente arredadas do nosso modo de funcionamento cognitivo, capacitador da imaginação e da criação de histórias.
Útil para que uma máquina compreenda e desconstrua uma história, irrelevante para qualquer ser-humano que tente construir uma história.
No fundo, e isso mesmo surge em alguns exemplos dados, mais parece que o autor está a tentar apresentar modelos para gestão de complexidade de informação, e não para a criação de UX. E escrito isto, fui rever a introdução do livro, e obrigo-me aqui a alguma mea culpa, aí o autor acaba por dizer que o livro era mais para gestores e responsáveis pela organização. Só não sei se assim era, se foi assim que os editores decidiram promover o livro depois de analisar o que vinha lá dentro. Por isso, designers, especialmente designers de experiência atraídos pelo título do livro, abstenham-se.
"Hooked" (2014) é mais um livro que procura o santo Graal do design de experiência: um modelo capaz de criar engajamento ótimo com qualquer aplicação, processo, serviço ou produto. O livro é interessante, dando conta de muito do que se vai fazendo na área, embora não aprofunde nada de novo (mesmo tendo em conta o ano de publicação, 2014), para quem já esteja dentro do UX ou IxD e tenha lido as referências da área. Recupera um conjunto de teorias e modelos, e tenta o seu mix. É mais uma proposta modelo, e como tal merece a nossa atenção, pois pode servir a determinados grupos ou para determinadas situações.
O modelo proposto por Eyal é designado de "Hook Model" (Modelo do Gancho, que agarra os utilizadores), e de uma forma genérica bebe nas mais elementares teorias da psicologia e persuasão, desde os condicionadores de B.F. Skinner aos princípios de influência de Cialdini, passando pelos vieses cognitivos de Daniel Kahneman ou Ariely. O modelo proposto é circular e procura induzir hábito, ou seja, não se limita ao engajamento, quer criar hábitos nos consumidores, para o que propõe 4 elementos em sucessão: Estímulo, Ação, Recompensa Variada e Investimento.
"Hook Model" de Nir Eyal
Funcionamento: O utilizador recebe um estímulo (trigger) que o conduz até ao produto. O produto sendo de fácil compreensão leva a que o utilizador o utilize (action). O utilizador recebe uma recompensa por o ter usado, de preferência não esperada (variable reward). O utilizador acaba por investir no produto, realizando tarefas (investment). Tudo junto cria um ciclo que acaba por trazer o utilizador de volta. O livro centra-se em desmontar os 4 elementos.
Triggers (estímulos)
São aquilo que fazem despontar o produto do meio dos outros. Podem ser Externos ou Internos. Os primeiros respondem pela normal publicidade ou presença em locais de grande ou fácil acesso, ou pela pressão de grupo de amigos ou familiar, ou ainda status. Os segundos, vão diretos às emoções e necessidades da pessoas. O Google responde à nossa necessidade de informação, o facebook à necessidade de mexerico, o telemóvel à necessidade de estar em contacto com os outros em qualquer lugar, etc. Estes acabam por ser mais desenvolvidas no elemento seguinte, por via da "motivação".
Actions (ações)
Respondem por um dos aspetos centrais do design de interação, que é aquilo que leva alguém a agir, já que sem ação do utilizador não existe interação. Para este ponto Eyal vai buscar Deci, Fogg e Kahneman, embora com pena minha praticamente não use Deci, apesar de ser um dos maiores especialistas em motivação, ainda assim usa uma citação dele que não posso deixar de colar aqui: "motivation (is) the energy for action". Baseia depois todo a sua proposta no Modelo de Comportamento de Fogg que defende a ação como desencadeada a partir da correta correlação entre dois elementos: Motivação e Capacidade. Ou seja, para que o utilizador aja é necessário estar munido de motivação para a ação, mas é ainda necessário possuir as capacidades requeridas pela ação. A correlação permite então fazer variar a presença de distintos níveis de motivação e capacidades, uma em função da outra.
Modelo de Comportamento de BJ Fogg. Fogg foi um dos primeiros investigadores a estudar a persuasão pelas tecnologias da comunicação, tendo começado nos anos 1990 em Stanford, sob orientação de investigadores de relevo, tais como Clifford Nass, Philip Zimbardo, Terry Winograd e Byron Reeves.
Assim para o eixo da Motivação, Fogg dá-nos o que chama de "core motivators": "seeking pleasure and avoiding pain"; "seeking hope and avoiding fear"; "seeking social acceptance while avoiding social rejection”. Mas estes se analisados em detalhe e profundidade acabam por não ser mais do que aquilo que Deci propõe na sua teoria da auto-determinação em 3 vectores: autonomia, competência e relacionamento. Para o eixo da Capacidade, Fogg propõe 6 Elementos da Simplicidade. A ideia desta abordagem passa por tentar identificar nos utilizadores, por parte do designer, qual é o elemento que está a criar dificuldade à ação do utilizador:
Time — how long it takes to complete an action. Money — the fiscal cost of taking an action. Physical effort — the amount of labor involved in taking the action. Brain cycles — the level of mental effort and focus required to take an action. Social deviance — how accepted the behavior is by others. Non-routine — How much the action matches or disrupts existing routines.
No fundo se atentarmos no trabalho de Fogg, vemos como segue Deci em toda a linha, acabando por eleger para o seu conceito de "design persuasivo" o segundo elemento, "competência", como o mais relevante. No entanto, Eyal não se fica por Fogg, porque aponta os seus elementos como racionais, juntando-lhes então os vieses cognitivos de Daniel Kahneman, por, segundo ele, oferecerem uma dimensão emocional. Não concordando com esta divisão, e referindo que alguns destes princípios surgem como fundamentais no trabalho de Roberto Cialdini, não posso deixar de referir que são imensamente válidos e claramente contribuem para ação: "The Scarcity Effect", "The Framing Effect", "The Anchoring Effect", "The Endowed Progress Effect". Para saber mais sobre estes efeitos e desvios cognitivos recomendo, quase com sentido de obrigatoriedade para designers, a leitura do livro "Thinking, Fast and Slow" de Kahneman.
Variable Reward (Recompensa Variada)
Se o utilizador executa a ação pretendida, o sistema tem de oferecer feedback, e para Eyal, o melhor feedback é uma recompensa, que pode ser ainda melhor se for variável, ou seja, não for esperada nem for sempre igual. Aqui entramos na fase do Cão de Pavlov (condicionamento clássico) e dos Ratos e Pombos de Skinner (Condicionamento operante), que daria origem à primeira grande corrente da psicologia, o Behaviorismo, mais tarde posto em causa pela sua excessiva simplificação do comportamento humano. Basicamente, o que todos estes experimentos nos dizem é que a recompensa de comportamento ativa o neurotransmissor de dopamina que desencadeia o prazer e nos faz sentir imensamente satisfeitos. Eyal agarra-se aos experimentos de recompensa variável por estes demonstrarem maior efeito no tempo, já que a recompensa igual ou previsível rapidamente satura fazendo cair o nível de dopamina, o que é um problema na criação de hábito que requer tempo.
Neste campo Eyal não cita qualquer trabalho, mas trabalha claramente ao nível da Hierarquia das Necessidades de Maslow, ao propor uma abordagem de recompensas com 3 vectores: "the hunt", "the tribe" e "the self". A necessidade coletora como fundamental para saciar as necessidades fisiológicas; a necessidade do outro, para saciar a gregariedade inerente ao humano; e o Eu, para saciar as necessidade de auto-realização. Os exemplos que Eyal retira da paisagem tecnológica atual são imensamente ilustrativos. Para a caça e coleção, apresenta o conhecido efeito de "infinite scroll" usado pelo Facebook, Instagram, Twitter etc. que colam os utilizadores ao produto quase de forma hipnótica, na ânsia por querer saber que imagem ou notícia vai vir a seguir. No caso da tribo, Eyal cita Bandura, e a sua teoria de aprendizagem social, para explicar o "Like" do Facebook e todos os mecanismos desenvolvidos por este para criar teia social e assim ganhar em engajamento . Por fim, para o Eu, Eyal vai buscar os videojogos e todo o seu design de progresso e reconhecimento de competências pela experiência, que em muitos jogos é mesmo definido por "experience points".
Investment (Investimento)
Este é o último nível do modelo Hook e é um dos menos referenciados noutros modelos, embora seja um dos mais populares em termos do design atual, e um dos mais antigos no que toca à persuasão embora com designações distintas. Basicamente falamos do envolvimento do utilizador ao ponto deste começar a investir tempo ou esforço (Exemplos: começar a fazer uma lista de filmes de que gosta numa App; começar a fazer lista de amigos; começar a jogar um jogo, etc.) que o leva para um nível engajamento com a aplicação do qual ele depois dificilmente se consegue desligar. Este modo funciona tanto do ponto de vista do esforço per se, como pelo efeito de grupo que nos questiona se mudamos de opinião. Cialdini define isto como coerência e comprometimento, quando estabelecido a pessoa tem dificuldade em sair do mesmo. Já Dan Ariely fala do "Efeito Ikea", em que o contributo do nosso trabalho para a construção final do produto o torna mais nosso, e nos dá mais prazer. E Chris Anderson fala do "freemium", que nos anos recentes ficou conhecido no mundo dos jogos como "free-to-play", e que terá nascido no início do século XX com a oferta de livros de receitas que exigiam Jell-O, gelatina em pó, e levavam as pessoas a comprar a mesma para poderem experimentar a receita. Eyal defende assim que esta etapa final no ciclo do Hook, permite gerar a cola necessária — tanto interna pelo esforço, como externa pelo que os outros pensam de nós — para que o hábito se instale e permaneça.
Isto é a essência do livro resumida e sem exemplos, o resto do livro são casos e exemplos, um dos quais tem um capítulo dedicado com imenso detalhe, e que diferencia a experiência da Bíblia em papel da experiência via app. O mais interessante deste caso são as interpretações dos comportamentos que podem ser lidos via app que debita dados em tempo real daquilo que os utilizadores fazem com a mesma. Eyal usa toda essas leituras para colocar em evidência o modo como o seu modelo Hook surge na base do engajamento produzido pela app.
Nota: Todas estas teorizações apontam para aquilo que na gíria se define como "dark side" das ciências de comunicação, como tal devem ser utilizadas tendo por base os mais elementares princípios éticos. Mais, a não observação desses princípios, que tem acontecido quando nas mãos dos menos escrupulosos, acaba por não trazer grandes benefícios por todo o efeito negativo que acaba por gerar no médio-prazo para a instituição ou marca.
Fogg, B. J. (2009, April). A behavior model for persuasive design. In Proceedings of the 4th international Conference on Persuasive Technology (p. 40). ACM.
Kahneman, D., & Egan, P. (2011). Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux. Cialdini, R. B. (1987). Influence. Port Harcourt: A. Michel.
Celia Hodent é doutorada em psicologia e foi directora de UX (User Experience) da Epic Games (produtora de "Fortnite") entre 2013 e 2017. Autora de um dos livros mais relevantes sobre o uso das metodologias de UX em jogos, "The Gamer's Brain: How Neuroscience and UX Can Impact Video Game Design" (2017), e editora do blog Brains, UX & Games. Com esta breve introdução fica claro que Hodent sabe do que fala e que neste vídeo, "10 things you might not have noticed in Fortnite" para a Ars Technica, o que ela tem para nos contar sobre o UX e o Design de Experiência é algo que foi largamente estudado e testado, como o sucesso do próprio jogo atesta.
"Fortnite" transformou-se da noite para o dia num dos maiores sucessos internacionais no mundo dos videojogos, para o que o "free-to-play" e o multi/cross plataforma contribuíram bastante, assim como a inovação de juntar a um género já de mescla, o battle royal (survival e exploração com batalhas multiplayer online), o Sandbox Criativo (que permite criar e construir dentro do próprio jogo contribuindo para atrair os jogadores de "Minecraft"). Por outro lado, o design do jogo funciona de forma tão intuitiva e envolvente que o jogador se sente em casa jogando, cria-se uma sensação de conforto e prazer tão intensa que o jogador acaba por, quando fora do jogo, recordar o bom que é estar ali e desejar lá voltar. Hodent explica neste vídeo a psicologia por detrás de vários itens do design, assentes em muitos dos princípios daquilo que define o trabalho da UX, desde o HUD, feedback e acessibilidade à performance de atividades específicas no jogo assim como aos modos de scaffolding (progresso e aprendizagem das regras do jogo). O desenho emocional é chave, mas como podemos ver nesta pequena desconstrução de Hodent, muito do que contribui para o design é feito ao nível ainda da mera usabilidade, ou seja, do peso do esforço cognitivo exigido ao jogador.
"10 things you might not have noticed in Fortnite" (2018) com Celia Hodent
A trilogia Mass Effect (2007-2012) é um dos maiores legados culturais dos videojogos, pela força da sua história mas acima de tudo pela inovação operada através da singularidade do meio, a interatividade narrativa. Se o cinema nos deu algumas das maiores epopeias da ficção científica, a literatura e a banda desenhada não lhe ficaram atrás, mas nenhum destes meios podia ter oferecido aquilo que apenas está ao alcance das artes narrativas interativas, agência, ou a responsabilização do recetor pelo desenrolar do imaginário ficcional. Por tudo isto, criar um quarto videojogo foi sempre um grande risco, a Bioware, ao contrário da Valve, resolveu arriscar. O resultado é um trabalho menor, ainda que tecnicamente mais evoluído.
O tema de “Mass Effect: Andromeda” (ME:A) não traz nada de novo, antes aproveita um dos imaginários mais presentes na atualidade da ficção-científica como trampolim para os seus desenvolvimentos. Num espaço tão curto de anos foram várias as obras a socorrer-se da ideia de largada de grandes naves carregadas de seres-humanos criogenados em busca dos chamados “Golden Worlds”, ou seja planetas semelhantes à Terra, em que possamos refazer a vida enquanto espécie humana.
No cinema, tivemos um romance FC com “Passengers” (2016) de Morten Tyldum, poucos anos antes tínhamos tido um dos mais eficazes filmes de FC desta recente geração, “Interstellar” (2014) de Christopher Nolan, e até a própria série Alien se socorreu do tema para este seu último tomo, “Alien: Covenant” (2017) de Ridley Scott. Na literatura tivemos também uma trilogia, “The Wayward Pines” (2012-2014) de Blake Crouch, entretanto convertida numa série de televisão homónima, de imenso sucesso. Este imaginário não é alheio à realidade que nos circunda: a superpopulação e consequente drenagem de recursos do planeta; as alterações climáticas e a potencial destruição do ecossistema que possibilita a vida na Terra; a visão apocalíptica providenciada pelos receios dos avanços da inteligência artificial ou a recuperação dos receios do nuclear; ou ainda, os avanços na compreensão da física quântica e as teorias dos mundos possíveis e paralelos, que nos colocam a sonhar com alternativas ao planeta.
Apesar do tema não ser novo, o tema é vasto e de potencial praticamente inesgotável, como se vai vendo pelas obras que vão surgindo. Contudo, é preciso não esquecer que um tema não é uma história, é apenas um pano de fundo, e é desde logo aqui que ME:A começa mal. A história, ou conflito escolhido para ser representado, assenta numa luta entre espécies, com vilões e super-vilões, que apesar de esforçado nunca chega a gerar conexão com os jogadores. O cruzamento com alguns dos grandes temas da trilogia até são aflorados, chegando a criar-se pontos que nos agarram, como a descoberta da origem da espécie Angara, mas nunca chegam a ser devidamente explorados, e por isso perdem-se no meio de tudo o resto.
O problema dos nós narrativos relevantes em ME:A é talvez o maior demonstrador da incompetência da obra. O universo representado é enorme e muito detalhado, criando no jogador uma completa dispersão da atenção, que não apenas se perde entre missões mas nunca se chega a realizar. No final do jogo, ou melhor da realização da main quest, que engloba apenas as missões “Priority Ops”, fiquei a pensar o quanto desse falhanço não se deve também a uma má estruturação entre missões obrigatórias e opcionais, nomeadamente lendo várias recomendações online. Para quem jogar de modo tradicional, seguindo a linha de obrigatoriedades criadas pelas missões Priority Ops, tem 16 missões pela frente, mas o que fica de fora, a julgar pelos números, é imensamente maior: “Allies and Relationships”, 33 missões, “Others” 12 missões, “Heleus Assignments” 98 missões, e “Additional Tasks” 61 pequenas missões.
Os mundos abertos são a norma atual nos grandes jogos de ação-aventura RPG, mas são também imensamente complexos por tudo o que necessitam de produzir para serem considerados enquanto tal, e acima de tudo pelo balanceamento entre o que deve ser considerado obrigatório e aquilo que deve ser secundário, ou opcional para que o jogador possa sentir um verdadeiro efeito de liberdade e autonomia durante o jogo. Se todas as missões consideradas relevantes para o jogo forem consideradas obrigatórias, e rodeadas de precedências, fica complicado fazer sentir ao jogador que está num mundo verdadeiramente aberto, que se dá à sua agência. Por outro lado, se não se colocam obstáculos ou freios que guiem o jogador ao longo das missões, o mais certo é a narrativa nunca se chegar a erguer. Por fim, mesmo quando se garante que as missões principais estão alinhadas e elas trabalham para o desenvolvimento de um arco narrativo delineado, é preciso não esquecer que missões menores, nomeadamente de desenvolvimento dos personagens são fundamentais para criar o imaginário, e acima de tudo aproximar o jogador da “vida” do jogo.
Neste sentido, considero que a maior falha de ME:A acaba por estar no subdesenvolvimento dos seus personagens e seus conflitos, ou então no modo inarticulado como foi desenhada a estrutura de missões, a julgar pela existência de uma enorme quantidade de missões secundárias a realizar com os personagens que circundam o protagonista. A main quest está apenas focada num objetivo narrativo, e os personagens servem quase de meros peões. Não há espaço para o desenvolvimento dos personagens, e mesmo as pequenas sequências que nos vão sendo oferecidas, até de conflitos hierárquicos, são sempre a correr, com medo de perder o ritmo do enredo. Interessa apenas chegar ao “golden world” e para tal é preciso ultrapassar os obstáculos, ou seja, os vilões que surgem por todo o lado.
Ao seguir este caminho ME:A acaba por perder o bem mais preciso que tinha sido desenvolvido pela trilogia, as tomadas de decisão narrativas. Ao contrário do que acontece em todos os anteriores três jogos, não existem momentos intensos em que tenhamos de tomar decisões, não que eles não surjam, o problema é que o jogo não desenvolve suficientemente as nossas ligações afectivas com os personagens para garantir impacto. Na verdade, isto não tem que ver apenas com a falha na estrutura das missões, já que ao longo de toda a main quest, nunca chega a existir um conflito, digno do nome, entre personagens. Mesmo quando os superiores estão chateados connosco, ou algum personagem está preocupado com algo, tudo parece seguir um rumo meramente declarativo, pejado de neutralidade, como se nos estivessem a testar, a ver se queremos ou não deixar-nos enredar por aqueles sentimentos.
Isto leva-me a questionar o novo sistema de conversação desenvolvido para este jogo. Se na trilogia tínhamos o modelo — Paragon / Renegade — em parte criticado pela suposta binariedade emocional e moral, agora temos quatro polos — Emocional / Lógico / Profissional / Casual. Em teoria enriquece-se as relações entre os personagens, amplia-se o escopo de tomada de decisão, mas na prática não funcionou. Digo mesmo que funcionou mal, já que raramente, ou nunca se vê ou sente o impacto dessas escolhas, ficando a dúvida se têm verdadeira relevância. Por outro lado, acabam por gerar todo um tipo de questionamento sobre as decisões que retira espaço ao pensar sobre o que verdadeiramente está acontecer no jogo, já que nos focamos mais na forma do que no conteúdo. Não tenho uma opinião completamente negativa sobre o sistema, julgo que ele pode até funcionar, desde que a narrativa, em especial a escrita seja boa, já que não raras vezes me senti decepcionado com a trivialidade de algumas respostas. Contudo, não me parece que tenha sido a decisão de design correta, já que o sistema desenvolvido para a trilogia era muito bom, exatamente por não ser binário como alguma má crítica apontou, ou seja, apesar de dual o sistema tratava as nossas decisões num plano dimensional e não discreto.
O melhor do jogo é, sem dúvida, os ambientes criados por onde podemos viajar. Os cenários, o espaço, a possibilidade de aí construir, criar, lançar colonos, e avançar com novas civilizações. Em termos de ações, podemos agora dar saltos impulsionados pelo fato, temos um novo veículo ágil e rápido que nos oferece uma boa perspectiva dos mundos por onde viajamos. A colonização pode ser diferenciada entre desenvolvimento de ciência ou militar. Mas é a fluidez audiovisual que envolve tudo isto que nos faz sentir em harmonia com os lugares e vontade de continuar a voltar ao jogo, ainda que todo o sistema de crafting acabe sendo desnecessariamente complexo, e de difícil gestão.
Em jeito de conclusão, findada a main quest, existe tanto ainda por explorar e fazer no jogo que acredito poder fazer as delícias de quem resolver dedicar-lhe esse tempo, ainda que estejamos já no domínio dos fãs hard-core do jogo, nomeadamente por todas as potencialidades técnicas adicionadas ao que se conhecia da trilogia. Contudo, para quem vem à procura de uma experiência Mass Effect, ligação a personagens, tomada de decisões, perplexidade e dilemas narrativos, não a vai encontrar, e por isso não admira a fraca receção que o jogo teve. Ainda que muita da crítica se tenha focado em problemas técnicos como as expressões faciais, entretanto completamente refeitas nos novos patches, nada nessas transformações consegue disfarçar os vários problemas de escrita e narrativa apontados ao longo deste texto.
Adam Alter é doutorado em psicologia social e é professor de Marketing na NYU, o que só por si já nos diz um pouco sobre aquilo que podemos esperar encontrar nas páginas do seu mais recente livro “Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked” (2017). Ou seja, um trabalho de análise social e psicológica sobre as mais recentes estratégias de marketing e de design, utilizadas pelas grandes empresas tecnológicas, para agarrar os seus consumidores e mantê-los entretidos a ponto de os tornar viciados nos seus produtos. É um livro que toca sobre vários assuntos centrais do meu trabalho em design de interação e design de jogos.
O livro inicia-se com uma alargada discussão sobre a conceito do vício, sobre o modo como surgiu na história, como ganhou carga pejorativa, e como mais recentemente se veio a dividir em dois grandes ramos: comportamental e baseado em drogas. Enquanto o vício baseado em drogas está completamente estabilizado e é descrito pelos manuais de diagnóstico da psiquiatria, o vício comportamental (behavioural addiction) é ainda visto ainda como a necessitar de mais estudos. Ainda assim a variante de jogos de azar a dinheiro (gambling) foi uma das primeiras categorias a entrar nos manuais, tendo nos anos mais recentes surgido algumas evidências que levam a considerar casos como o vício: na internet, em sexo, em pornografia, comida, exercício, compras, computadores ou videojogos.
Apesar da clara separação entre o uso de drogas e os comportamentos, Alter escreve de forma um apouco atabalhoada, acabando por a certa altura parecer estar a defender que são a mesma coisa, ou seja, que em termos de efeitos e problemas poderão conduzir às mesmas situações. Isto porque Alter defende aqui que o problema da viciação, a dependência, é antes de mais um problema de contexto e auto-determinação, e menos da droga, o que me levanta muitas dúvidas. Para reforçar esta ideia avança com uma ideia, baseada num medo, que eu também tinha quando era pequeno: “As a kid I was terrified of drugs, I had a recurring nightmare that someone would force me to take heroin and that I’d become addicted”. Ao dizer isto Alter acaba por dizer que tal nunca aconteceria, porque a heroína precisa de um contexto para se tornar um vício. Para tal dá o exemplo dos combatentes do Vietname, altamente viciados em heroína e que facilmente abandonaram o vício ao chegar aos EUA, ou seja, pela drástica mudança de contexto. Contudo, isto está longe poder ser assim simplificado. Não conheço o caso da heroína, mas conheço de outras drogas mais recentes, que são capazes de produzir dependência independentemente da vontade dos sujeitos. Sendo verdade que as mudanças de ambiente, de contexto, contribuem imenso para atenuação destes seus efeitos.
O problema do texto de Alter é que está claramente à procura de audiências. Aliás, não é por acaso que abre o livro com a discussão, já esgotada, de que os criadores de tecnologias de Silicon Valley, focando-se sobre o icónico Steve Jobs, proíbem o uso das próprias tecnologias aos seus filhos. Alter chega mesmo a dizer, o que me parece de mau tom, que os criadores de tecnologias no que toca aos seus filhos seguem a máxima dos traficantes: “never get high on your own supply”. De mau gosto, não só por brincar com as pessoas identificadas, mas porque ao esticar as ideias desta forma, acaba por ultrapassar a fronteira entre o informativo e o alarme. Se muitos dos criadores de tecnologias não colocam os filhos nas escolas mais avançadas em tecnologia, não é com certeza pelo medo de que estes desenvolvam dependências, mas é antes, e aqui sim recorrendo ao seu conhecimento tecnológico, por saberem que as crianças aprendem muito mais efetivamente com outros seres humanos do que com qualquer tecnologia.
Contudo, não é do meu interesse alongar-me aqui sobre esta discussão, já que o que me levou à leitura deste livro foi o modo como o design produz engajamento. Para tal aceitarei a definição de que o vício comportamental consiste numa compulsão para se envolver em comportamentos gratificantes, de tipo repetitivo, não relacionados com drogas, deixando de lado as questões de definição de dependência. Com isto não estou a minorar os seus efeitos, eles podem ocorrer, contudo, e tal como se pode ver pelas reticências da comunidade psiquiátrica, estão longe de se poderem considerar universais. Por outro lado, a auto-determinação terá maior eficácia quando utilizada contra um vício comportamental, como o sexo ou os jogos, do que num caso de vício numa droga, como muitos dos antidepressivos que são hoje amplamente utilizados. Mais, se assim não fosse, teríamos de esquecer tudo aquilo que escreve Alter ao longo do seu livro, já que no final do livro, esquecendo e minorando grandemente os efeitos ou capacidades da tecnologia e sua viciação, apresenta o uso controlado da Gamificação como uma potencial forma de combate dessa viciação!
Apesar de tudo isto, não quero esquecer o trabalho de Alter, e por isso mesmo me alongo a falar dele, porque julgo que a parte central do seu contributo é válido, e esse sustenta-se nos padrões, encontrados por ele na análise das tecnologias, que têm servido as grandes empresas para nos manter focados (ou viciados) nos seus produtos. E é sobre esses que me deterei agora aqui, e que são no fundo aquilo porque vale imenso a pena ler este livro. Porque tenho de concordar quando Tristan Harris, um especialista em ética do design, diz que o problema não está na falta de força de vontade das pessoas mas no facto de “there are a thousand people on the other side of the screen whose job it is to break down the self-regulation you have.”
Alter apresenta então seis padrões que definem no fundo seis grandes estratégias de design: 1 - Goals, 2 -Feedback, 3 - Progress, 4 - Escalation, 5 - Cliffhanger, 6 - Social Interaction. Para complementar este trabalho aconselho vivamente a leitura de “Contagious: Why Things Catch On” (2013) Jonah Berger, no qual Berger apresenta também seis padrões, no caso de potenciação de partilha online, mas que se aproximam bastante do que aqui se discute: Moeda Social, Gatilhos, Emoção, Público, Valor Prático, Histórias. Muito provavelmente, aqui ou noutro lado, procurarei em breve estabelecer paralelos entre os padrões de Alter e Berger. Vejamos então cada uma das estratégias encontradas por Alter:
Estratégia 1 - Goals / Metas
As metas são, provavelmente, o mais eficaz modo de garantir a motivação humana em termos extrínsecos, já que recorrem a um elemento constituinte da nossa biologia, o factor de competição. Ou seja, a primeira condição do estabelecimento de uma meta assenta na comparação com os outros. Somos seres profundamente sociais, e necessitamos constantemente de nos comparar aos demais, para compreender se somos seres humanos completos. Como tal, as metas não são meros indicadores abstratos, elas representam todos os outros, e no fundo o grupo desses outros em que nós nos encaixamos. O melhor exemplo disto é dado por Alter com a análise dos comportamentos de maratonistas não se regulam apenas pelo completar dos 42 km, mas utilizam como motivador para conseguir tal feito metas de tempos. No gráfico abaixo podemos ver como as metas de 3h, 3h30, ou 4h, são usadas massivamente pelas pessoas para terminar as suas corridas. Tendo tomado a decisão de correr a maratona e preparando-se para entrar nesse grupo, começa a preocupação com saber em que sub-grupo me incluo. As metas permitem assim aos corredores, quantificar e dosear o investimento, conseguindo perto das metas ir buscar energia em si próprios que já não acreditavam existir, mas que despoletado pela adrenalina do objetivo constituído pela meta consegue chegar lá. Isso explica porque no gráfico temos tantas pessoas a terminar imediatamente antes de cada intervalo, e tão poucos imediatamente a seguir.
Tempos agregados de milhares de corredores que correram os 42km da maratona
Este pequeno exemplo, quando aplicado às tecnologias sociais que nos rodeiam, e aos videojogos, rapidamente nos fazem lembrar miríades de aplicações. Se no passado as metas serviram ao ser-humano como fundamento de sobrevivência (subir uma montanha com a meta de encontrar comida ou um novo abrigo), hoje as metas são a coroa da sociedade capitalista, que ao puxar por essas raízes biológicas de obter mais e mais, acabou por criar a sociedade mais competitiva que alguma vez conhecemos, algo que foi radicalmente acentuado com o surgimento das Tecnologias de Informação, que permitiram a criação e desenho de métricas em absolutamente tudo aquilo que hoje fazemos. Repare-se no modo obtuso como se passou a quantificar o número de amigos através do Facebook, o número de seguidores através do Twitter, o número de gostos através do Instagram, o número de passos no pedómetro da Nike. A gamificação não inventou nada, apenas libertou e descomplexificou o mundo para aceitarmos que a tecnologia passasse a controlar a nossa biologia.
As Universidades hoje vivem para atingir Metas
Repare-se como as universidades passaram a viver obcecadas por Rankings, que dependem do números de artigos que cada investigador publica, colocando pressão na publicação apenas para atingir metas completamente artificiais. Não surge inovação, nem qualquer melhoria para a sociedade através do cumprimento destas metas. Isso já foi amplamente debatido e discutido, inclusive com vários experimentos. Contudo, sem qualquer consciência dos seus efeitos secundários, as administrações universitárias em conjunto com os administradores políticos, continuam a colocar toda a sua ênfase governativa nestes indicadores. A razão é simples, é muito mais fácil vender a ideia de que estamos a subir a montanha para encontrar uma ilusão no topo, do que vender a subida da montanha porque faz parte da nossa caminhada.
Deste modo, as metas tornaram-se na estratégia número do design de qualquer atividade. As metas produzem um efeito visceral nos seres-humanos, e por isso o simples explicitar da mesma é suficiente para garantir o interesse dos sujeitos e colocá-los no caminho da sua obtenção. Claro que as metas só se tornam efetivas quando complementadas pelos devidos quadros comparativos, aquilo que nos jogos chamamos de 'quadros de honra'. Por isso, e com a entrada da gamificação, criou-se uma estratégia de design, que ficou conhecida como PBL (Points, Badges and Leaderboards), que já eram usada nas escolas, mas passou a ser utilizada um pouco por todo o lado como fundamento de motivação.
O lado negativo das metas, e no fundo de todos os sistemas de métricas, é que não funcionam como motivação intrínseca. São meros despoletadores externos que desaparecem no momento em que desaparece a sua quantificação. Ninguém vai passar a correr mais por usar o quantificador de passos da Nike, já que apenas o fará enquanto o quantificador de passos estiver ativo. No momento em que desaparecer, desaparece a motivação do corredor. O que não é mau de todo, já que explica porque dizia acima que a capacidade de criar verdadeira viciação ou dependência é residual. Mas afeta, quando se acredita que para mudar culturas basta a simples introdução de métricas para o transformar das pessoas.
Estratégia 2 - Feedback / Reação
As lógicas de feedback não se distinguem muito das metas, já que estão intrinsecamente conectadas, no sentido em que elas dependem do estabelecimento de metas para ocorrer. Ou seja, o Facebook só me pode dar feedback de um novo pedido de amigo porque quantificamos os amigos, ou do surgimento de uma nova mensagem porque quantificamos o número de mensagens. Como tal, o feedback funciona como amplificador do objeto de meta. Mais ainda, quando os estudos demonstram, que psicologicamente somos muito mais afetados, ou seja recompensados emocionalmente, pelo facto de estarmos quase a atingir uma meta, do que pelo facto de a atingir. A razão é simples, o estar quase, implica ainda investimento emocional, enquanto o atingimento da meta, corta abruptamente as sensações dessa atividade.
Da próxima vez que abrirem a página do facebook no vosso computador ou telemóvel, reparem como o vosso coração palpita no aguardo pelo carregamento dos dados até que verificam que os balões vermelhos de notificações estão acesos. E como no caso de estarem sentem um alívio, a recompensa, que pode ser aumentada no caso de estar não apenas um balão, mais dois, ou mesmo três ligados (notificações+mensagens+novos pedidos de amizade). O feedback é talvez o elemento mais importante do Design de Interação. Ou seja, é o garante da organicidade do sistema, da sua capacidade de se dar a quem com ele interage. No fundo, porque são sistemas que simplesmente emulam a comunicação humana. Reparem como nos damos mal com alguém que falha o feedback; se dizemos algo, esperamos sempre reação do outro lado, quanto mais não seja, um grunhido, dando conta da recepção daquilo que dissemos.
Por outro lado, se as metas se energizam pela necessidade de competição, o feedback energiza-se pela necessidade de colaboração. O feedback garante que não estamos sozinhos, e é por isso que tantas tecnologias se têm esforçado por encontrar formas de estarmos constantemente a debitar feedback, e tanto estudo tem sido dedicado a tentar compreender os melhores tipos de feedback (Like vs. +1, Reações do Facebook). Tudo isto explica também o crescimento insano nos últimos anos dos sistemas de notificações. Aliás, por reconhecer este poder invisível dos sistemas de notificação, na maior parte das tecnologias que uso — do telemóvel ao computador — só permito notificações do meu calendário pessoal e do alarme do relógio. O meu telemóvel tem todos os serviços de push desligados, e todas as aplicações têm as notificações inativas. No computador igual, nenhuma aplicação social me pode enviar e-mails, ou apresentar feedback nos ecrãs fora do âmbito da própria aplicação.
Estratégia 3 - Progress/o
Tendo em conta que já vai bastante longo este texto, não me vou alongar tanto nos próximos padrões, pela simples razão de que não são propriamente uma novidade para quem vai acompanhado este blog. No caso do padrão de progresso já aqui foi discutido várias vezes, nomeadamente aquando da recensão do livro "The Progress Principle" (2011) de Teresa Amabile.
O progresso diz respeito ao recortar do caminho para a meta em etapas (por exemplo os capítulos de um livro). A ideia passa por criar metas intermédias que funcionam como feedback em relação à meta final, deste modo desenvolve-se no sujeito a sensação de progresso. Este progresso é assim responsável por conferir motivação para se manter no caminho através das recompensas despoletadas pelo antingimento das metas intermédias. Um exemplo dado por Alter que é excelente, é o do “Dollar Auction Game”, que vale a pena analisarem no pequeno video da National Geographic (abaixo).
O experimento “Dollar Auction”.
Como se percebe, este jogo demonstra muitos dos problemas criados pelas metas e feedbacks, e pela noção de progresso, e como podem ser usadas contra nós. Muitas das atuais apps sociais aproveitam-se de tudo isto, e alguns dos sistemas que mais têm tirado vantagem deste design são os jogos “free-to-play”, daí que no meio dos estudos de game design, se tenha começado a definir muitos destes jogos como jogos predadores. Ainda assim o jogo que mais efetivamente soube rentabilizar todas estas técnicas foi “World of Warcraft”, acima de tudo pela sua forte componente social, tendo-se tornado num dos jogos que mais pessoas obrigou a recorrer a centros de ajuda na luta contra a dependência. Ou seja, apesar de continuar a defender os videojogos como pouco capazes de criar dependências reais, o cenário muda de figura quando falamos de jogos online, principalmente jogos massivos online. Nesses casos, não temos apenas sistemas desenhados para engajar jogadores, temos os jogadores incluídos num sistema em que se influenciam uns aos outros, criando sistemas de pressão social que vão muito além daquilo que a tecnologia consegue fazer per se.
Estratégia 4 - Escalation / Escalar
Provavelmente se utilizar a palavra que é utilizada no mundo da Educação e dos Videojogos, Scaffolding, reconhecerão mais facilmente do que trata este padrão. A discussão deste ponto realizei-a já bastante em detalhe no artigo académico "Elementos do design de videojogos que fomentam o interesse dos jogadores".
De forma resumida, o scaffolding consiste no desenho de “andaimes” por forma a ajudar os sujeitos no processo de escalada. Ou seja, toda a atividade tem as suas dificuldades, contudo os seres-humanos são mais facilmente motivados para a sua realização, quando o nível de dificuldade está ao seu alcance. Deste modo, o design deve levar em conta as necessidades dos utilizadores, e providenciar ajuda, garantindo contudo que não torna tudo demasiado fácil. Isto foi primeiramente definido por Vygotsky num modelo que ficou conhecido por Zona Proximal de Desenvolvimento.
Ao desenhar as atividades por meio de andaimes, garante-se a criação de flow (uma área em que a satisfação é otimizada) criando-se o desejo nos sujeitos de permanecerem envolvidos com as criações indefinidamente.
Estratégia 5 - Cliffhanger / Ganchos
Neste ponto Alter vai evocar o efeito de Zeigarnik, assente na Gestalt, para desconstruir a magia do envolvimento com as narrativas, dedicando assim grande parte da sua discussão às séries televisivas. Este efeito diz-nos que as experiências incompletas nos envolvem mais do que as completas, algo que já aqui tinha falado a propósito do livro de Cialdini "Pre-Suasion" (2016). Ou seja, enquanto não atingimos a completude do sentido de uma história somos envolvidos por esta, deixando-nos levar pela tensão e suspense, até que a resolução se dê, tudo se explique, e a tensão desapareça.
Um gancho é na gíria do audiovisual um elemento narrativo que se apresenta para prender o espetador. Por exemplo, numa história surge uma mãe num supermercado que rouba um pacote de bolos para os filhos que esperam lá fora. A seguir passamos para os miúdos e enquanto a mãe não sai da loja, o espetador fica agarrado sem saber se ela será apanhada ou não, se ela conseguirá trazer a comida às crianças. Os ganchos são utilizados sempre que se fecha um episódio de uma série, por forma a manter o interesse do espetador em procurar o episódio seguinte para responder ao gancho que ficou aberto. No fundo, um gancho é um elemento narrativo que se abre mas não se fecha no imediato, impedindo as pessoas de se libertarem da história enquanto não souberem como se resolve o conflito aberto.
O efeito de "Closure" da Gestalt diz-nos que o nosso cérebro não consegue evitar dar sentido ao que vê, por isso procura fechar o que está aberto.
Neste padrão encontra-se o fundamento da recente descoberta, por parte de uma grande fatia da sociedade, do storytelling, que passou a ser visto como a arma número um para garantir o interesse das pessoas, dos colaboradores, dos alunos, dos pacientes, etc. etc. A quantidade de livros que saíram nos últimos anos a defender a aplicação dos princípios do storytelling a praticamente toda a atividade humana é impressionante. Nesse sentido, é natural que muitas das tecnologias que nos rodeiam, tenham de algum modo procurado aqui também alguma da sua força. Não foram apenas os videojogos que se obrigaram a incluir histórias até nos jogos de lutas, carros e futebol, foram ferramentas como o Instagram que passaram a incluir modos de história para a partilha de fotografias, assim como o surgimento de dezenas e dezenas de aplicações para ajudar as pessoas a contar histórias.
Os ganchos são profundamente viciantes e explicam como as séries de televisão se tornaram no produto audiovisual mais influente da era atual, fazendo com que empresas como a Netflix se tenham transformado em colossos multinacionais.
Estratégia 6 - Social Interaction / Interação Social
Não há muito a dizer sobre este tema, ou melhor há mas implicaria todo um artigo completo, já que é de todas, a estratégia mais complexa, no sentido em que não se resume a uma componente, mas antes enquadra toda uma área. Enquanto Alter na estratégia anterior elegeu dentro da Narrativa apenas os Ganchos, aqui optou por apresentar todo o domínio da interação social como parte do padrão. Sobre este mesmo tópico escrevi já bastante no artigo "Social interaction design in MMOs" (2014).
Assim o que está aqui em questão, em essência, é a web social, uma web na qual as aplicações já não existem sem uma camada de Interação Social. Ou seja, o Instagram nunca se teria tornado o monopólio da fotografia digital se não viesse integrado com uma rede social. O Bookings ou o Trip Advisor nunca se teriam tornado nos centros de marcação de hotéis e viagens sem a interação social dos seus utilizadores. Os jornais que não foram capazes de desenvolver as suas próprias redes sociais, viram-se obrigados a despejar os seus artigos no Facebook para que estes pudessem ganhar tração. Tendo o próprio Facebook assumindo proporções inimagináveis para um simples site de internet, possuindo neste momento nas suas base de dados, informação relativa a mais de mil milhões de utilizadores, ou seja mais do que os EUA, Europa e Brasil juntos.
A interação social toca em vários pontos daquilo que nos define como seres humanos, e é por isso que se tornou numa espécie de 'santo graal' do engajamento na internet. Um desses pontos é a necessidade de comparação com os outros, outro é de colaboração, outro é de partilha, outro de competição, outro de compreensão, no fundo tudo aquilo que nos define, e que podemos simplesmente ir buscar ao Interacionismo Simbólico de Mead, quando diz que nos definimos a partir do modo como interagimos com o outro. Ou seja, a interação social é tão fundamental para o ser humano como a comida, a água, ou o respirar, já que sem ela definhamos enquanto seres. Daí que não possamos admirar-nos com a quantidade de pessoas que admite passar tempo excessivo no Facebook, enquanto outros admitem mesmo não conseguir desligar.
No final do livro, Alter procura apresentar algumas ideias interessantes sobre como podemos aprender a lidar com tudo isto, ou sobre como as companhias poderiam rentabilizar as suas técnicas de design sem afetar tão intensamente os sujeitos. Mas não passam de um conjunto de dicas, que acredito que cada um poderá desenvolver melhor à medida que se for tornando mais e mais consciente das manipulações de que é alvo. O livro de Alter e o desvelar destas técnicas, é em si mesmo o melhor antídoto para lidar com tudo isto.
ADENDA, 4 maio 2017
Depois de algumas conversas a propósito deste texto, resolvi deixar aqui quatro notas que podem contribuir para o controlo dos efeitos do envolvimento com as tecnologias de comunicação. A primeira já a tinha aflorado no meio do texto como princípio.
1- Não permitir que sistemas, aplicações, ou sítios web notifiquem, bloquear ou desativar tudo. Sei que dá jeito, mas refletindo sobre os prós e contras, é muito mais nefasto que benéfico. Ou seja, eu não quero os outros a determinar quando é que eu devo ler, aceder ou fazer algo, quero ser eu a decidir, sou eu quem determina o meu tempo. O meu pensamento não pode ser capturado por outros, mesmo que tenham coisas importantes a dizer-me, porque cada interrupção contribui apenas para me retirar daquilo em que estou empenhado no momento. Considero todos os sistemas de notificações como profundamente invasivos, e por isso não os permito no meu espaço.
2 - Uso de ferramentas guilhotina. Tendo em conta o poder de atração de muitos sítios web, passei a utilizar a ferramenta SelfControl (existem muitas outras) que me permite desativar o acesso a uma lista de links criada por mim. Quando ativa, durante o período de tempo escolhido, todos esses sites ficam impossíveis de ser acedidos, mesmo que se apague a ferramenta. Uso-a de momento para vedar o acesso ao Facebook, Twitter, GoogleNews, GoodReads —mas posso ir adicionando o que quiser. Deste modo, o que estou a fazer é a criar uma barreira ao alimento da procrastinação que assenta muitas vezes na sedução criada pela informação infinita presente nestes sítios.
3 - Privilegiar o e-mail em detrimento do telemóvel. Ou seja, o e-mail é uma ferramenta de comunicação assíncrona, permite-me gerir o momento em que recebo e respondo, enquanto o telemóvel pela sua sincronia tende a atuar como as notificações, a invadir o meu espaço mesmo que eu não esteja naquele momento disposto a tal. Deste modo, o que faço é não atender muitas chamadas, na maior parte do tempo porque não tenho ativa a notificação sonora, mas muitas vezes porque não as quero atender naquele momento. Comunico posteriormente às pessoas que é preferível tentarem contactar-me por e-mail.
4 - Limitação das redes sociais no telemóvel. Não uso aplicações de redes sociais no telemóvel — Facebook, Twitter, GoodReads — a única excepção é o Instagram, porque apenas a uso no telemóvel. Deste modo reduzo o uso do sistema à gestão do meu tempo — telefone, e-mail, calendário, agenda e tarefas — e algum entretenimento.
Os “brinquedos inteligentes” (ex. MagikBee) continuam a surgir um pouco por todo o lado, o mais recente vem do Copenhagen Institute of Interaction Design, chama-se Ziff e foi criado por Alejandra Molina, uma designer de interação mexicana, como trabalho de tese da pós-graduação Interaction Design Programme.
Ziff é um brinquedo inteligente, um híbrido composto por dois objetos, um físico e um digital. O brinquedo físico funciona neste caso como uma interface tangível do videojogo. A inovação mais interessante da abordagem apresentada reside no entanto no facto do brinquedo não se limitar ao mero estatuto de interface, mas ser ele próprio dotado de uma componente de interação criativa. Ou seja, os jogadores precisam de experimentar com o brinquedo, construir e transformar, para que ele possa realizar as tarefas necessárias no âmbito do jogo digital. Não basta pegar e carregar em botões, ou abanar e mexer, é preciso olhar para o que se tem nas mãos e para o que está no mundo digital e combinar, encontrar a complementaridade.
A prototipagem em papel do jogo
Existe aqui uma certa similaridade com a nossa abordagem no Bridging Book, pelo uso da conceptualização da representação em modo de complementaridade. Ou seja, o brinquedo aqui tem de funcionar em complemento do mundo digital, e não apenas como transmissor de sinais. E é aí que tudo se torna mais complicado no processo de design como acaba por admitir Molina ao Gamasutra,
“I have to think about where the attention of the player is at all times, exactly where the player’s eyes will be looking. The level design has to consider the time it takes to make any physical change, and I needed to consider all the possibilities, not just the “right ones”. The game should react to whatever configuration the child makes, and should give you some space to experiment, and learn by trial and error. Every level has to have different environments to motivate the player to change configuration.”
Em termos de desenvolvimento a componente digital foi toda criada sobre Unity, no caso do brinquedo recorreu-se ao Arduino e RFduino. O resultado final é fruto de trabalho de equipa, sendo Molina engenheira, toda a arte foi criada por Line Birgitte Borgensen.
A maker Alejandra Molina
O projeto convenceu desde já muitas pessoas, tendo sido selecionado para ser apresentado no Alt.CTRL.GDC da Game Developers Conference que vai decorrer de 14 a 18 Março em São Francisco. Aliás estará aí presente um outro projeto dentro desta mesma linha, que esteve no Kickstarter há pouco tempo, o Fabulous Beasts.
Sobre todo o processo criativo e de desenvolvimento podem ler em detalhe no blog de Molina ou ler a entrevista que deu à Gamasutra recentemente.
A Interaction Design Association criou um pequeno filme com entrevistas a alguns dos mais interessantes designers de interação, incluindo Brenda Laurel, e disponibilizou-o no Vimeo. Nada de muito novo, embora seja interessante olhar para as percepções dos outros, e compreender que estamos no mesmo comprimento de onda.
“a lot of people say they are bad at technology, but I think that a lot of technology is bad at humans” Amber Case
"SOMA" junta-se a um lote de videojogos que marcam o ano de 2015 como um dos mais relevantes dos últimos anos em termos de videojogos narrativos, nomeadamente no que toca a quantidade, diversidade e maturidade. "SOMA" apresenta uma história de ficção-científica de nível literário, não se limitando para tal a templates narrativos, apresentando toda uma nova abordagem ao contar de histórias jogáveis. Deste modo qualquer análise da obra para estar completa precisa de se dividir entre a crítica ao texto e a análise do design.
Design da Narrativa e Jogo
"SOMA" começa por identificar-se com uma das grandes tendências atuais dos jogos narrativos, os walking simulators ("Dear Esther", “Everybody’s Gone to the Rapture”), jogos de pura navegação virtual, evoluindo depois para o environment storytelling (ex. "Gone Home", “The Vanishing of Ethan Carter”), jogos que requerem manipulação, acabando por se aproximar depois do género survival/stealth sem armas, que era uma marca que já vinha dos jogos anteriores da Frictional (ex. "Amnesia: The Dark Descent"). Assim temos um design que trabalha o espaço narrativo por via do ambiente (cenário, luz e som) e pistas (logs, fotos, videos e audios), incluindo a sua manipulação (puzzles), e o tempo narrativo por via do survival (tarefas com janelas temporais) e do stealth (a fuga de inimigos).
Esta mescla de géneros surge da tentativa do diretor Thomas Grip, em fazer avançar o contar de histórias nos videojogos, tendo para tal criado um método de design de narrativa, que intitulou de 4-Layers. Nessa sua definição começa por definir os extremos — “Heavy Rain”, quase ausente de jogabilidade, e “Bioshock” quase só focado nos tiros — apontando a sequência final de “Brothers: A Tale of Two Sons” e a da girafa em “The Last of Us” como exemplos da perfeição do entrosamento entre narrativa e jogo. Grip diz que essas sequências serviram como inspiração para criar todo o método 4-Layers, já usado em “The Vanishing of Ethan Carter” e "SOMA", considerando eu depois de ter jogado ambos, que ele é verdadeiramente eficaz em SOMA". Este método busca desenhar o jogo em camadas, por forma a evitar a focagem na história pela história. Vejamos cada camada, e como elas atuaa em "SOMA".
"Layer 1: Gameplay". No caso de "SOMA", isto é conseguido por via de puzzles espaciais não demasiadamente complexos (encaixar ferramentas e dados entre máquinas, abrir portas), assim como por via da fuga em labirintos, ou os puzzles pressionados pelo tempo e medo. Cada uma destas mecânicas é desenhada em consonância com a história, não se centrando sobre si, mas antes procurando dar resposta a questões narrativas, o que vem de encontro ao segundo layer.
"Layer 2: Narrative Goal". Aqui Grip defende que a narrativa, tal como acontece no cinema, não pode estar apenas cingida ao arco principal que liga o início ao final, mas precisa obrigatoriamente de gerar eventos narrativos que suportem o interesse do recetor ao longo de todo o jogo. A essência deste interesse assenta no dito acima, as questões narrativas, ou seja o mistério e o suspense, capaz de motivar o receptor para a narrativa, impossibilitando assim que este se foque nas tarefas ou ações de modo isolado. Em SOMA a narrativa vai-se desvelando, mas muito devagar, vamos acedendo aos computadores e dados, falando com as pessoas, para ir percebendo o que se passa ali, mas mais importante para perceber o que se espera de nós. Cada área, e cada nível, comporta em si mesmo um trecho narrativo que por si captura o nosso interesse, sem estarmos agarrados ao objetivo final da história. A ideia é focalizar a atenção nesses objetivos narrativos intermédios e assim evitar que o jogador se foque na mecânica das suas ações, focando-se na busca de respostas.
"Layer 3: Narrative Background". Se o “objetivo narrativo” pretendia mudar o modo do jogador de “fazer coisas para avançar na história”, para, “fazer coisas por causa da história”, com o background narrativo procura-se levar o jogador a “fazer coisas para fazer a história aparecer”. Ou seja, o log que leio ou o audio que ouço em "SOMA", não são longos nem obrigatórios, para evitar que se transformem em tarefas, aquilo que tenho de fazer para chegar ao nível seguinte (isto é puro design de narrativa, já que se quisermos ler os textos originais, podemos ir à secção Files no site e ver como são longos, perceber que textos daquela dimensão no interior do jogo deturpariam a jogabilidade). Assim os textos são antes objetos que fazem a história emergir, tais como fotos que vamos encontrando, ou diálogos que decorrem enquanto fazemos outra coisa, tudo isto são momentos entremeados no jogo que vão construindo a história, mas vão acima de tudo dotando a mesma de uma base contextual.
"Layer 4: Mental Modeling". Nesta camada Grip entra adentro do cerne da relação entre narrativa e interação, a partir do conceito base do design de qualquer interação, o modelo mental. Ou seja, falamos de construir um objeto de interação que vá de encontro ao modo como o jogador vê o mundo, porque o jogador não se baseia exclusivamente no que vê ou ouve no jogo, mas antes se socorre de modos de ver o mundo que já detém, ou seja modos que determinam a sua intuição para compreender o que lhe está a ser mostrado. Claro que o jogador usa o feedback do jogo para se orientar, mas não está todo o tempo a processar tudo o que aparece no ecrã, antes carrega todo o modelo de jogo na sua mente e age por intuição, recorrendo à racionalização apenas quando o jogo não opera como esperado. Deste modo o jogador está continuamente a jogar cognitivamente, a imaginar e a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, tentando antecipar as necessidades, o que não é muito diferente do que acontece no cinema ou literatura. Isto é extremamente importante na navegação (ex. seguir o caminho debaixo de água em "SOMA"), assim como na manipulação (ex. o modo como abrimos portas, ou gavetas, ou usamos as ferramentas), assim como claro na participação na narrativa, em que assumimos diferentes modelos mentais, que geram expectativas consoante o género narrativo (ex. terror, comédia, aventura, etc.).
Quero aproveitar este 4-Layers e o caso do "SOMA", para trazer de novo a questão que me coloquei quando acabei “Witcher 3”, por comparação a “The Last of Us”. Será que poder escolher o desenlace de uma história, impacta de forma diferente a minha experiência narrativa? Se à medida que avanço em "SOMA", vou criando o mundo história, compreendendo as suas razões e fazendo destas os meus objetivos e motivações, quer dizer que passo a incluir-me nesse! Assim apesar de não poder alterar as ações da história, sinto que elas têm valor, porque se encaixam e incrementam o significado daquilo que já sei sobre aquele mundo. Não estou simplesmente a abrir e a fechar portas, a descobrir chaves e puzzles, mas estou a dar sentido à história, a procurar compreender o que está por detrás daquela porta, como se encaixa o que está ali com aquilo que já sei. Como diz Grip,
"The mental model and the narrative lie on the same level, they are the accumulation of all the lower level stuff. And if we can get them to work together, then what we have is the purest form of playable story where all your gameplay choices are made inside the narrative space." [source]
Repare-se que apesar de "SOMA" ser linear, não permitir alterar a história, ele oferece decisões ao jogador, algumas limite, como deixar viver ou morrer. E nesse caso mesmo sabendo que isso não alterará em nada o trajeto do jogo, o modo como está encapsulado, o modo como nos é feito acreditar o que vale ou não vale essa "vida", faz com que a nossa tomada de decisão seja difícil. Isto demonstra que o valor das decisões não se prende com as consequências no jogo, mas antes com o valor que atribuímos às mesmas. De certo modo é isto que se passa no final de “The Last of Us”, mesmo não nos sendo permitido tomar a decisão de agir ou não agir na sala hospitalar, a perplexidade com que agimos dá conta da importância dessa ação, e mesmo quando somos obrigados a fazer o que o jogo requer para simplesmente avançar na história, não deixamos de continuar a questionar-nos sobre esse momento e o modo como nos marca.
Voltando ao 4-Layers, Grip cataloga a tomada de decisões por parte do jogador sobre a narrativa, como uma variante do “objetivo narrativo”. Ou seja, aqueles momentos em que o jogo, a nossa ação, está umbilicalmente conectada à história, em que jogamos motivados por razões narrativas, e não de jogo. No fundo, o que Grip está aqui a dizer é que mais do que colocar decisões na mão do jogador, é preciso fazer o jogador acreditar que as suas ações fazem parte da narrativa, e não são apenas um adereço para fazer funcionar o jogo. Mais uma vez recordando “The Last of Us”, o crafting de armas não surge como jogo de construção de armas, mas antes como necessidade de fazer frente aos mortos-vivos que vivem naquele mundo-história, ou seja, ajo motivado pela história, e não apenas porque quero avançar.
Fica a faltar ainda a discussão sobre o sistema de stealth que não inclui armas, o qual se torna responsável pela gestão do desafio e medo ao longo de todo o jogo, no fundo uma das grandes motivações para corrermos de um lado para o outro, por vezes sem tempo para pensar, apenas agir visceralmente. Mas voltarei a esse tema num texto próprio, já que levanta todo um conjunto de questões sobre os jogos exploratórios e os walking simulators.
A História
Não é possível falar da história sem desvelar detalhes da mesma (spoilers), já que como explico acima, o modo como a narrativa foi desenhada obriga a que não se conheça nada da história, essencialmente porque é o querer conhecer o que se passa e do que nos falam, que nos vai motivando a jogar, ao mesmo tempo que mantém todo o mundo de jogo crível. Por isso se ainda não jogaram, não leiam o resto deste texto.
---------- SPOILERS ----------------------
De forma genérica, temos uma história que roda à volta de questões existenciais, nomeadamente a identidade, que nos leva numa viagem filosófica de 10 horas em busca do propósito da vida, tendo por base a dualidade mente/corpo de Descartes. Em concreto, o planeta tornou-se inabitável e como solução propôs-se uma forma de digitalizar as consciências humanas, colocá-las dentro de uma arca e enviá-la para o espaço, uma espécie de Arca de Descartes. A linha de história é nova, embora a premissa tenha sido já muito discutida, nomeadamente nos trabalhos de Philip K. Dick. O que torna a história no jogo interessante é o fato de nos colocar de frente ao processo, e seus efeitos, de nos fazer passar por decisões sobre esse processo.
Ora, diferentemente do tempo em que Descartes escreveu os seus trabalhos, hoje sabemos que a consciência não é algo autónomo, sabemos que ela é apenas aquilo que o corpo permite que seja, nomeadamente a configuração física das ligações neuronais, mas também a configuração dos marcadores somáticos em todo o nosso corpo (desde os sentidos às vísceras). Sabendo isto, poderíamos atirar borda fora toda a história, contudo isso não é tão simples, já que aquilo que alimentou a teorização de Descartes continua presente, a ideia de que no interior de nós mesmos existe algo, existe um “Eu”, e esse "Eu" é tão profundamente obsessivo no que toca à sua emancipação, que por mais que "lhe" digamos que não existe individualmente "ele" continua a querer fazer-nos acreditar que existe. Diria quase, e aqui seguindo à letra Descartes, que o "génio maligno" existe, é o nosso próprio "Eu", sempre insatisfeito, sempre produzindo a volição que nos mantém insaciáveis, vivos. Por isso todo o tema de "SOMA" continua tão atrativo, em termos de teorização e discussão filosófica, mesmo se do meu lado a paciência para Freud, Lacan ou Jung se tenha esgotado há muito! Tirando esta problemática, uma outra surgiu-me com mais força durante o jogo, e que cheguei a colocar como o grande problema de todo o mundo história, o Wau, a personagem que se desenvolveu a partir da IA e tomou conta de todas as instalações submarinas. O Wau surge desde o início como uma espécie de praga, que toma conta de todas as máquinas, robôs, inclusive criando monstros. Isto colocou-me o problema da credibilidade, porque parecia ser apenas um motivo para criar as dinâmicas de survival que os autores precisavam para o tipo de jogo idealizado, não tendo qualquer base científica. Contudo, isto viria a desvelar-se no final do jogo, de um modo perfeitamente científico e filosófico (os monstros são os corpos abandonados/suicidados, mantidos vivos por Wau, na sua tentativa por manter vivos os humanos a qualquer custo), com a discussão a evoluir para a relação entre máquinas e humanos, entre a moral que regula as suas relações, e a capacidade de uma máquina poder entender a imperfeição de que são feitos os humanos. Para terminar, que este texto já vai longo, embora pudesse continuar a falar sobre o mesmo, tal a riqueza especulativa despoletada pelo jogo, quero ainda deixar uma lista dos momentos altos da minha experiência no jogo, que em certa medida dão conta da intensidade e diversidade da mesmas:
Momentos marcantes da minha experiência de "SOMA"
Catherine, a sua escrita e contexto de jogo, enquanto companheira única num território árido de vida, é capaz de fazer sentir o desejo de buscar ansiosamente a conexão da Omnitool apenas para poder conversar com ela.
A opressão das sequências debaixo de água.
As passagens para dentro e para fora de água, o realismo da espera da compressão e descompressão, e o stress envolvido, de não querer sair, e por vezes ter medo de entrar.
Toda a envolvência audiovisual, nomeadamente sonora.
Quando me vejo ao espelho pela primeira vez, e percebo que já não sou humano.
Quando mudo de corpo e sou chamado a decidir desligar o meu “outro”.
Quando encontro o último ser humano vivo.
Quando lanço a arca e fico para trás.
Quando acordo dentro da arca, já depois do genérico.