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agosto 27, 2023

Pessoa, o professor universitário

O heterónimo de Pessoa, Alexander Search, tinha um caderno de endereços assinado por si, datado de 1906 (Pessoa tinha 18 anos), em que a partir das correspondentes letras de busca, listou uma imensa bibliografia, cerca de meio milhar de livros, multilíngue — inglês, francês, espanhol e português — maioritariamente sobre filosofia, mas também psicologia, sociologia e religião, que pretendia ler nos tempos próximos. Pessoa leu muitos deles.


Como diz Richard Zenith, na biografia, se Pessoa em 1905 em Durban tivesse ido estudar, com uma bolsa, para Oxford em vez de voltar para Lisboa, é provável que o maior génio das letras portuguesas se tivesse perdido, mas em seu lugar teria dado "um professor universitário brilhante".
 

O caderno completo foi catalagado pela BNP como E3/144H, o PDF integral está acessível online.

outubro 06, 2017

O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

Este foi o oitavo livro de Saramago que li, comparativamente é talvez a sua melhor obra literária, não fazendo isso deste o seu melhor livro. A escrita, a investigação, a estrutura e a intertextualidade fazem deste trabalho uma obra de grande valor no domínio da arte das letras, contudo à história falta enredo e essencialmente conflito, o que torna a sua leitura um tanto espessa, por vezes penosa até, para o leitor.


“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é apenas o quinto romance do autor, sendo precedido em dois anos pelo não menos relevante “Memorial do Convento” (1982), e claro suportado por toda uma experiência acumulada por Saramago nos seus, até à publicação do texto, 62 anos. Visto deste modo, espanta menos a complexidade apresentada, ainda que o que aqui temos não esteja ao alcance de qualquer escritor. Neste sentido, para se poder verdadeiramente apreciar a obra é necessário realizar algum esforço de análise e estudo, para o que tentarei apontar aqui algumas linhas que facilitem essa análise e entrada no texto.

Primeiramente, e talvez o mais sobejamente conhecido, cabe identificar quem é, ou foi, Ricardo Reis. Um dos quatro mais reconhecidos heterónimos de Fernando Pessoa, com uma faceta marcada pela poesia clássica da Roma Antiga, nomeadamente Horácio (65 a.c. - 8 a.c.), daí que o estilo de Reis seguisse de perto as estruturas das Odes, com uma queda para os temas amorosos. Saramago escolheu-o por gosto pessoal, mas em especial por ter verificado que Reis era o único dos quatro que Pessoa não tinha morto, tendo resolvido-se a terminar o trabalho iniciado por Pessoa.

Como nenhum dos heterónimos de Pessoa era totalmente autónomo de si, Saramago opta por construir uma escrita que apesar de suportada em alguns temas de Reis, segue mais de perto o estilo geral de Pessoa. Basta ler algumas passagens da obra, para se perceber que sendo Saramago quem escreve, parece ser Pessoa quem dita, e é desde logo aqui que a obra começa a ganhar a sua relevância, dando conta da capacidade de Saramago para incorporar e elaborar diferentes estilísticas. Ao mesmo tempo que esta fusão entre Saramago e Pessoa é, talvez, do ponto de vista do prazer da leitura, o que de melhor a obra tem para nos dar.
“Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. ”
“Estás só, ninguém o sabe, cale e finge, murmurou estas palavras em outro tempo escritas, e desprezou-as por não exprimirem a solidão, só o dizê-la, também ao silêncio e fingimento, por não serem capazes de mais que dizer, porque elas não são, as palavras, aquilo que declaram, estar só, caro senhor, é muito mais que conseguir dizê-lo e tê-lo dito.”
“Não é Ricardo Reis quem pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que dentro de si moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um fio que o leva por caminhos e corredores ignotos (..)”  
Saramago, José. “O Ano da Morte de Ricardo Reis.” 1984
Em termos da narração, apesar de termos apenas um narrador, Reis, ele não é apenas ele, ou seja não temos poesia na forma de odes, como nunca o poderia ser sendo heterónimo de Pessoa, que enquanto tal nos vai tocando com as suas preocupações mais profundas sobre o devir, mas também não é apenas Pessoa, sendo Saramago quem romanceia, desde logo por toda a acidez política que se vai desvelando ao longo da obra, assim como pela sexualidade que emerge, estranha a Reis e Pessoa. Ou seja, ler este romance é viver o mundo simultaneamente pela experiência de três distintas personalidades.

Refletindo agora, não sei até que ponto a complexidade implícita neste narrador não terá servido de motivação a Saramago para aplanar o enredo, e assim garantir tempo, mas acima de tudo espaço para o acesso a cada uma das três experiências nele presentes. O que ajuda a compreender toda a relevância, detalhe e investigação sobre a geografia de Lisboa apresentada na obra por Saramago, nomeadamente quando se representa uma Lisboa de 1935, a partir de linhas escritas quase 50 anos depois. Este trabalho é tão minucioso e relevante, que a Porto Editora se prepara, pelas mãos de Ricardo Cruz, para lançar um livro sobre os espaços do livro em 2017, contrastados com os dos anos 1930.

Rua do Alecrim, Lisboa, por volta dos anos 1930

O ano de 1935 não é fruto do acaso, é o ano da morte de Pessoa, como tal é aí que Saramago resolve voltar na sua viagem no tempo. E se Reis estava no Brasil exilado, é a Lisboa que resolve voltar para saber mais sobre a morte de Pessoa. E se Saramago apresenta uma Lisboa de 1935 tão detalhada, não faz menos pela História, tanto nacional como internacional. Relembrar que o livro foi escrito apenas dez anos após a nossa revolução de 1974, vive-se ainda com o sentir muito colado a um ditador que marcou a História do país por mais de 40 anos, e chegou ao poder apenas três anos antes de Pessoa se despedir. Por outro lado a Europa vive tempos muito atribulados com Mussolini em Itália, Hitler na Alemanha, e Espanha em plena guerra civil.

Mais uma vez refletindo, não deixa de ser algo excêntrico a contundente crítica de Saramago ao nacionalismo do Estado Novo, à sua ânsia por estimular os valores nacionais, relembrando o prémio de Ferro a Pessoa pelo poema “Mensagem” ou a referência ao “Dia da Raça”, e no entanto todo este “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ser um autêntico hino às letras nacionais. Se o espaço é Lisboa, Saramago usa-o para nos conduzir, pela mão de Reis, até à estátua de Camões, mantendo o poeta presente ao longo de quase toda a narrativa, não se ficando por aí, levando-nos também até Eça e ao Adamastor. Assim se Saramago nos obriga a respirar as letras nacionais, ler esta obra hoje, depois de tudo o que alcançou como escritor, leva-me a interrogar sobre o que mais se poderia pedir a uma obra de enaltecimento do nosso país? Teria Saramago consciência de tal? Mesmo no campo da intertextualidade parece haver uma certa fixação, já que se a grande extensão das citações e referências se fazem para com Reis, Pessoa e Camões, ou ainda Eça, o facto de se ir buscar Jorge Luís Borges para autor do livro que acompanha Reis durante a sua estadia em Portugal, não é inocente. Borges foi uma das várias mentes brilhantes que proveio de famílias judias expulsas de Portugal no século XVIII.

No campo das personagens, Saramago junta a Reis duas mulheres, Lídia e Marcenda. Lídia assume o primeiro plano, apesar de sempre atirada para um papel secundário, mas o que é ainda mais interessante é o facto de Lídia ser o principal amor das Odes de Ricardo Reis, tendo Pessoa ido buscá-la às Odes de Horácio, e não foi o único. Contudo como diz António Manuel Ferreira, ao contrário de outras personagens históricas ou ficcionais — como “Adriano, Efigénia, Antígona, Cassandra, Ganimedes, Antínoo, ou Ofélia” — Lídia é alguém não só praticamente desconhecida, como não detém especificidade, e assim talvez se perceba melhor o modo como Saramago a trata, secundarizando-a. Em certa medida, Lídia lembra Ofélia Queiroz, a única namorada conhecida de Pessoa, que tendo-o sido, foi-o quase sem o ser, e talvez seja mesmo este ponto que justifica a opção de Saramago.
“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).”
 
Pessoa, Fernando. “Poesia Completa de Ricardo Reis.” 12-6-1914
O enredo acaba sendo o parente mais pobre de toda a obra. Saramago parte com uma excelente premissa, “como teria morrido Reis se Pessoa tivesse tido tempo para o matar?”. Contudo, e apesar de apimentado com um triângulo amoroso, apesar da presença fantástica de Pessoa fantasma, que visita Reis nos nove meses após a sua morte, o enredo é quase inexistente. Reis limita-se a chegar a Lisboa e a nela deixar-se viver, segue um dia para Fátima, que Saramago aproveita para dissertar sobre a religião, mas de resto não arreda pé, nem do espaço, nem da pessoa que é. É certo que o niilismo de Reis e Pessoa nunca se dariam muito facilmente aos artifícios romanescos, em especial o conflito, que serve de alavanca à progressão, evolução e transformação, mas Saramago soube dar a volta a tantas outras componentes, não ficando claro porque aqui não o fez. Não é uma incapacidade de Saramago, basta atentar na obra anterior — “Memorial…” —, no entanto temos de admitir que é uma forma de enredo que apesar de funcionar em pequenos poemas, perde em fluidez no modo romance, tornando a leitura bastante lenta e difícil.
"Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
          Da húmida terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
        Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada"
Pessoa, Fernando. “Poesia Completa de Ricardo Reis.” 28-9-1932
Tendo em conta a dificuldade de leitura, sou obrigado a questionar as razões que levaram o Ministério da Educação a tornar obrigatória a leitura desta obra no 12º ano nos anos lectivos de 2017/18 e 2018/19, sendo depois destes permitida a opcionalidade com “Memorial do Convento”. Como fica claro deste texto, considero as duas obras do melhor que Saramago nos deu, mas tendo em conta a dificuldade de leitura apresentada por “Ricardo Reis…” não consigo compreender a obrigatoriedade tendo em conta a idade dos leitores. Não é assim que garantimos motivação para a leitura nas camadas jovens.

Para fechar, deixo-vos com a máxima de Saramago, em entrevista, a propósito deste livro: "Neste livro nada é verdade e nada é mentira".

setembro 04, 2016

"Livro do Desassossego” (1982)

É magistralmente difícil definir a experiência de ler "Livro do Desassossego”, tanto quanto a intensidade do que se sente enquanto se lê, já que ao ler nos separamos de nós e nos juntamos ao autor, para com ele sentir e compreender, assumindo a nossa inabilidade de o explicar, menos ainda definir. Só o próprio Fernando Pessoa compreendeu a envergadura daquilo a que se propôs, tendo para tal construído um segundo eu, Bernardo Soares, para por seu intermédio se poder olhar a Si de fora, e assim escavar e desconstruir a Alma. E por isso a definição da experiência desta leitura só podia ser dada pelo próprio Pessoa ao dizer-nos: "Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.

Até aqui, só tinha encontrado tamanha intensidade literária aos pés de Proust

“Quem sou eu?” é o motor do texto, ou centenas de textos, que compõe “Livro do Desassossego”, sinto contudo que o autor na sua ânsia por responder à questão, se manifesta como uma espécie de metafísico esteta, alguém com um sentido analítico de investigador, dotado de uma curiosidade científica profunda, capaz de o conduzir por entre os caminhos mais recônditos da sua busca, e por outro lado, alguém com um sentido artístico entranhado, mais interessado na busca, nos caminhos, processos e componentes, e menos nas suas explicações, sem preocupações de formular categorias, definições ou respostas. Se Pessoa me recorda, repetidas vezes, Descartes, sempre que abandona a abstração metafísica e concretiza, afasta-se deste para assumir o seu traço próprio de artista inquisidor. Era a forma que lhe interessava, não a sua definição.
“Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.” (416)
“Dominamos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual.” (438)
“Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e tanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.” (378)
Toda a obra se percorre de um tom melancólico, porque é de “desassossego” que se fala, outro tom seria inadequado, contudo contagiado por um sentir maior, que vai além da tristeza e da dor, que apresenta o viver como apesar de angustiante totalmente inebriante porque potenciador do ato contínuo criativo.
“É debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.” (397)
“Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.” (451)
“A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.
O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. 
E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.” (260)
Do meu lado, e em jeito de explicação do espanto e admiração, descodifico esta obra em dois elementos-chave: a prosa e o tema. No campo da prosa, Pessoa está acima de qualquer adjetivação, o modo como trabalha a língua portuguesa é absolutamente ímpar, elevando-a a níveis insondáveis, capaz de nos transportar por entre as palavras fazendo-nos sentir a leveza e a impalpabilidade do que nos quer dizer. No tema, o trabalhar metafísico na tentativa de compreender aquilo que somos, Pessoa tem momentos de tanta elevação que quase parece levar-nos a sentir o toque direto sobre a alma, como se ela se pudesse apresentar ali, naquelas letras, palavras, ideias, como se Pessoa fosse Soares, e ambos fossem um, e se fundissem no texto, fossem alma vertida nas folhas, no papel.

setembro 19, 2015

Os heterónimos de Pessoa e a narrativa

Êxtase foi o que senti hoje, ao ler a “Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935” de Fernando Pessoa, na qual este nos explica como surgiram os seus heterónimos, as suas origens, os seus traços, e como era escrever segundo cada um deles. A escrita de Pessoa é profusamente impressiva, com cada linha a emanar o sentir momento a momento, como se ali se pudesse conter não só o presente, mas o antes e o depois da trepidação de cada emoção que por ele passa, o que torna impossível ao leitor não se emocionar, não sentir também. Antes de aqui transcrever o texto quero fazer dois reparos, um sobre o talento, o outro sobre a narrativa enquanto processo de construção do Eu.


O talento de Pessoa, como qualquer grande talento, surte do seu empenho na escrita desde cedo, que fica evidenciado desde logo quando Pessoa refere nesta carta: “o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo”. Ou seja, quando muitas crianças estão ainda a aprender a ler, Pessoa já escrevia cartas a partir de personagens/amigos imaginários para si mesmo, algo que abraçou para o resto da vida, investindo grande parte do seu tempo diário na escrita.

Sobre a questão da narrativa, o filósofo Galen Strawson usou recentemente o exemplo dos heterónimos de Pessoa para dar conta da alegada falsidade que é pensar a narrativa como o modelo único de organização da nossa autobiografia, a consciência, o que define aquilo que somos. Para Strawson, os heterónimos de Pessoa dão conta de uma realidade interior muito mais fluída, variável, não-linear, sem princípio nem fim, que vai contra tudo aquilo que define o modo narrativo. Na realidade, não precisamos sequer de ir aos vários desdobramentos de Pessoa em heterónimos, se olharmos a Bernardo Soares, autor do "Livro do Desassossego", e aquele que Pessoa considera mais ele mesmo, apenas um "semi-heterónimo", facilmente veremos como parece perpassar uma espécie de ausência de fio narrativo pela vida de Pessoa. Bernardo Soares tem imensa dificuldade em criar uma estrutura conectiva entre factos, dificilmente temos sucessões de eventos, causalidade, tudo ali parece flutuar e tocar-se apenas por meio de interstícios. Dá-nos uma ideia de Pessoa, mas se a dá, é porque nós a construímos em nós mesmos, interiorizando a leitura à nossa própria narrativa, e é isso mesmo que acaba por vir dar mais força a ideia da narrativa como modelo de organização da nossa autobiografia. Porque claramente Pessoa não era um padrão, era um artista, dotado de excentricidades e peculiaridades, as tais que lhe permitiram criar um universo só seu. Pessoa não se formou como narrativa, antes como mundo, quando muito mundo-história, com múltiplas ramificações, múltiplos inícios e múltiplos finais, um verdadeiro rizoma no extremo oposto da narrativa.


[Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, (1935), Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. 1ª publ. inc. in Presença , nº 49. Coimbra: Jun. 1937, Online.