abril 08, 2020

Lógica e emoção em Gödel

Kurt Gödel foi uma das mentes brilhantes da ciência do século XX, existindo quem o compare a Aristóteles, a Einstein ou Heisenberg, mas ao contrário destes, e apesar do seu inabalável contributo, nunca conseguiu alcançar o mesmo patamar de respeitabilidade pública. Rebecca Goldstein procura neste livro colmatar esse problema. Para o fazer, traça a história de vida de Gödel, aproveitando a sua veia romancista para nos envolver empaticamente com vários personagens históricos, e enquanto o faz dá conta do contexto científico com que nos conduz até ao âmago demonstrativo dos dois teoremas da incompletude de Gödel. Gostaria de dizer que é um livro acessível, porque foi para isso que Goldstein trabalhou, e admito que fez um trabalho notável, mas ainda assim não é facilmente acessível a todos, talvez por que tal não seja possível para algo que constitui em si mesmo a complexidade primordial da lógica. Contudo Goldstein consegue com este livro tornar clara a relevância dos teoremas e só por isso vale completamente a sua leitura.
O livro apela diretamente a todos os que estudam matemática e mais ainda aos que gostam da mesma, mas é um livro escrito a pensar em todos aqueles que gostam de ciência. Gödel encarna o académico brilhante e humilde que deveríamos todos almejar ser, o problema de Gödel foi ter levado esse modo ao extremo, muito por conta da sua personalidade, sobre a qual falarei a seguir. Para compreender o livro e compreender a relevância do trabalho desenvolvido por Gödel, diria que ter tido Matemática até ao 12º ano é suficiente e necessário. Ainda assim, quando entramos na discussão explícita da demonstração, requer algum foco e dedicação.

Em termos de personalidade, podemos dizer que Gödel enquanto um dos principais companheiros de passeio, no campus de Princeton, de Einstein, era o oposto deste. Gödel era fechado, abominava a crítica, não se dava com ninguém, e no final ninguém se dava com ele. Pelo excelente trabalho feito por Goldstein, percebe-se que isso aconteceu pelo extremismo assumido por Gödel face à lógica. Os seus colegas no final já só se referiam a ele como a Lógica, já que para ele tudo tinha de ser decidido dentro de um quadro demonstrável de razões. Gödel concebia toda a realidade como lógica, enquanto tal, tudo o que fazia tinha de ser determinado por lógica, ora isto levanta um problema grave que foi demonstrado por António Damásio em 1994. A lógica, ou racionalização, sem a componente de emoção, conduz à inação, pela simples razão de que se detém em considerações racionais levadas ao infinito. Em toda a sua vida Gödel não publicou mais 100 páginas, tendo deixado milhares por publicar, tudo porque não se sentia seguro, faltava-lhe a garantia lógica para prosseguir, ou melhor, faltava-lhe um sistema emocional mais robusto. É a emoção que dita a nossa sobrevivência, exatamente porque é capaz de curto-circuitar a razão. Porque frente a um carro que está prestes a atropelar-nos não permite que entremos no cálculo da melhor rota de fuga, simplesmente nos impele a saltar na direção possível.

Por outro lado, foi exatamente esta obsessão de Gödel que o conseguiu levar à demonstração dos Teoremas da Incompletude. A sua necessidade de compreender as razões que sustentavam a Matemática fez com que desenvolvesse um sistema demonstrativo da sua impossibilidade universal, ou seja, da impossibilidade da matemática preceder e suportar a lógica do universo.

Enunciado do 1º Teorema
"Em qualquer sistema formal adequado à teoria dos números existe uma fórmula indecidível — ou seja, uma fórmula que não pode ser provada e cuja negação também não pode." 
Enunciado do 2º Teorema de
"Um corolário do teorema é que a consistência de um sistema formal adequado à teoria dos números não pode ser provada dentro do sistema."
Estes enunciados, são apenas descritivos não são os teoremas, que usam todo um conjunto de símbolos que formalizam o conhecimento e demonstram efetivamente a impossibilidade. O que é interessante é o facto desta demonstração ter ramificações sobre toda a ciência, porque sobre todo conhecimento humano. Penrose utilizou-os para demonstrar que o pensamento humano não é mecanicista nem demonstrável pela simples lógica, algo que é bastante discutido por Goldstein, nomeadamente na relação com a IA. Contudo, faltou na discussão a variável emoção, parte cabal do sistema cognitivo humano, e que continua a marcar a diferença entre o orgânico e máquina, exatamente pelo que disse acima. Para a máquina tem de existir uma ordem concreta, suportada em regras e pressupostos, para o humano não. Por isso nós erramos e a máquina nunca erra. Mas também por isso, nós inventamos, criamos o nunca visto, e máquina não. Tudo isto tem vindo a tornar-se mais discutível agora que as máquinas têm acesso a bases de dados de informação de todo o planeta em modo dinâmico, contudo, em essência, é a espada emocional sobre a lógica que nos separa da máquina.

Deixo três excertos centrais do livro sobre tudo isto. Os textos são da versão inglesa, mas as páginas são da versão portuguesa da Gradiva:
“Gödel’s incompleteness theorems. Einstein’s relativity theories. Heisenberg’s uncertainty principle. The very names are tantalizingly suggestive, seeming to inject the softer human element into the hard sciences, seeming, even, to suggest that the human element prevails over those severely precise systems, mathematics and theoretical physics, smudging them over with our very own vagueness and subjectivity. The embrace of subjectivity over objectivity—of the “nothing-is-but-thinking-makes-it-so” or “man-is-the-measure-of-all-things” modes of reasoning—is a decided, even dominant, strain of thought in the twentieth-century’s intellectual and cultural life. The work of Gödel and Einstein—acknowledged by all as revolutionary and dubbed with those suggestive names—is commonly grouped, together with Heisenberg’s uncertainty principle, as among the most compelling reasons modern thought has given us to reject the “myth of objectivity.” This interpretation of the triadic grouping is itself part of the modern—or, more accurately, postmodern—mythology.” p.38
“But these mathematical intuitions that cannot be eliminated and cannot be formalized: what are they? How do they come to be available to the likes of us? We are once again thrown up against the mysterious nature of mathematical knowledge, against the mysterious nature of ourselves as knowers of mathematics. How do we come to have the knowledge that we do? How can we? Plato himself had argued that the very fact that our reasoning mind can come into contact with the eternal realm of abstraction suggests that there is something of the eternal in us: that the part of ourselves that can know mathematics is the part that will survive our bodily death. Spinoza was to argue along similar lines.
Few scientifically minded, post-Gödel thinkers would perhaps be ready to follow Plato and Spinoza into drawing conclusions of our immortality from our capacity for mathematical knowledge. After all, we are not only living with the truth of Gödel but also the truth of Darwin. Our minds are the products of the blind mechanism of evolution. Still, many scientifically minded, post-Gödel thinkers have testified to hearing, within the strange music of Gödel’s mathematical theorems, tidings about our essential human nature. They have argued from Gödel’s incompleteness theorems to conclusions about what we are; or rather, to be more precise, about what we are not. Gödel’s theorems tell us, according to this line of reasoning, what our minds simply could not be.
In particular, what our minds could not be, so goes the reasoning, are computers. The mathematical knowledge that we possess cannot be captured in a formal system. That is what Gödel’s first incompleteness theorem seems to tell us. But formal systems are precisely what captures the computing of computers, which is why they are able to figure things out without having any recourse to meanings. Computers run according to algorithms and we, it seems, do not, from which it straightforwardly follows that our minds are not computers.” p.216
“Gödel’s theorems are darkly mirrored in the predicament of psychopathology: Just as no proof of the consistency of a formal system can be accomplished within the system itself, so, too, no validation of our rationality—of our very sanity—can be accomplished using our rationality itself. How can a person, operating within a system of beliefs, including beliefs about beliefs, get outside that system to determine whether it is rational? If your entire system becomes infected with madness, including the very rules by which you reason, then how can you ever reason your way out of your madness?” p.223

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