Mostrar mensagens com a etiqueta foucault. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta foucault. Mostrar todas as mensagens

outubro 28, 2020

Da Loucura à Psicologia

 “Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of Reason” é a tradução inglesa do primeiro livro de Michel Foucault, uma tese publicada no meio académico como “Folie et déraison: Histoire de la folie à l’âge Classique” (1961), revista em 1972 e publicada como “Histoire de la folie à l’âge Classique”, mas que teve na sua génese um primeiro trabalho de Foucault “Maladie mentale et personnalité” (1954), quase desaparecido, mas republicado novamente em 1962 como “Maladie mentale et psychologie”. Esta obra origina nos anos iniciais de Foucault, início dos anos 1950, em que dava aulas de psicologia na Universidade de Lille, e simultaneamente realizava pesquisa no hospital psiquiátrico, de Sainte-Anne em Paris, focado na relação médico-paciente. O livro de 1954 acaba surgindo como um conjunto inicial de escritos sobre conceitos e definições, sem grande método, uma espécie de tese de mestrado, tanto que Foucault procurou que não fosse republicado. A versão, de 1961, designado como “Folie et déraison”, resultado da sua tese de doutoramento, é aquele que é traduzido como “Madness and Civilization”, e marca o primeiro livro do autor.

Em “Madness and Civilization” Foucault inicia a criação da sua abordagem metodológica ao conhecimento, por via da fusão histórico-sociológica. Assim, ao longo deste livro Foucault debruça-se sobre o desenvolvimento da loucura e do lugar do louco na sociedade europeia desde a idade média, no século XIII até ao século XIX. Para o efeito divide 6 séculos em 4 grandes vagas que traça em função das relações conceptuais atribuídas à loucura. 

"Navios dos Loucos" (1516) de Hieronymus Bosch é um recorte da aba esquerda do Tríptico do Vagabundo, e pode ser visto no Museu do Louvre.

Assim temos uma primeira, de afastamento e desterro, com as pessoas que sofriam de doença mental a serem retiradas de circulação por via dos chamados “Stultifera Navis” (navios de loucos); uma segunda de proximidade com a doença, a lepra, em que os lugares que serviram o distanciamento dos doentes contagiosos, finda a peste passariam a ser utilizados para receber os loucos, adicionando o estigma do contágio; numa terceira fase, as casas de acolhimento hospital passam a receber não só os loucos mas também criminosos, como indesejados pelas famílias ricas, entre outros, acrescentando o estigma da criminalidade; e uma última de relação com a inutilidade, porque após a terceira fase, os criminosos eram colocados a trabalhar nas cidades gerando rendimento, mas os loucos, por não se conseguirem adequar à realização de tarefas, não geravam rendimentos e por isso eram atirados para colabouços sem quaisquer condições. Só a partir do século XVIII, diz Foucault, é que finalmente se começa a reconhecer a loucura e a depressão como doenças, e se encetam um conjunto de reformas por forma a começar a tratar as pessoas enquanto doentes, e não como estorvo ou alheio à sociedade.

"Casa de Loucos" (1819) de Francisco de Goya

Traçada esta evolução, para Foucault resulta claro que é a necessidade de começar a compreender a doença mental que vai permitir ou exigir o surgimento da psiquiatria e da psicologia.

Apesar de ser um livro excecional, considero-o menos conseguido que "Vigiar e Punir" (1975), o que não surpreende, já que distam quase 15 anos um do outro. Foucault evoluiu e aprimorou o seu modo de trabalhar, e constrói leituras bastante mais instigantes a partir dos quadros históricos que vai apresentando. Ainda assim, este é um livro seminal para quem quer que se interesse pela psicologia, ou pela doença mental.

agosto 06, 2020

Vigiar e Punir, segundo Foucault

Do Caos à Ordem por via da Disciplina e Punição, é o que nos diz Foucault nesta carismática obra de 1975, talvez a mais relevante de todo o seu trabalho, pelo modo como atravessa tudo e todos, obrigando a uma reflexão profunda sobre o que somos enquanto indivíduos parte de uma sociedade, fruto de processos de civilização. Em última análise, Foucault lança a ideia de que aquilo que distingue a civilização da barbárie, que nos distingue do primitivismo assim como dos animais, é a Ordem e essa é conseguida por via de dois grandes conceitos: Disciplina e Punição. Aliás, o título da obra sendo originalmente, em francês “Surveiller et Punir”, traduzido corretamente para português como “Vigiar e Punir”, ao ser passada para inglês ganharia o título de “Discipline and Punish” (“Disciplinar e Punir”).
Mas a ênfase de Foucault na vigilância não é secundária, porque segundo ele, a disciplina é resultado da vigilância. Claro que resulta da punição, que treina o comportamento humano para se manter na linha reta traçada por essa sociedade. Mas a manutenção dos indivíduos na linha reta só se consegue por via da constante vigilância. Daí que Foucault tenha recorrido ao modelo de prisão criado no século XIX para dar conta de uma figura central da sua teorização, o panoptismo. Aliás, vai além da prisão, resgatando os modos de atuação das sociedades perante a peste no século XV, que parece tão próximo destes tempos de COVID-19 que atravessamos, como se vê neste excerto do capítulo “O Panoptismo”:
“Em primeiro lugar, uma repartição espacial estrita: encerramento, obviamente, da cidade e dos arredores, interdição de sair dela, sob pena de morte, eliminação de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões distintos, onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um síndico; este vigia-a; se a deixar, será punido com a morte. No dia marcado, é ordenado que todos se fechem em casa: proibição de sair de casa, sob pena de morte. O próprio síndico vai fechar, do exterior, a porta de cada casa; leva a chave e entrega-a ao intendente de quarteirão; este guarda-a até ao fim da quarentena (..) Circulam apenas os intendentes, os síndicos, os soldados da guarda (...) “A inspeção funciona incessantemente. O olhar está alerta em toda a parte (...) guardas nas portas, na câmara municipal e em todos os bairros para tornar mais eficiente a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados, «bem como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens.”
“Todos os dias, o intendente visita o bairro pelo qual é responsável, verifica se os síndicos cumprem as suas tarefas e se os habitantes têm queixas; «vigiam as suas ações». Também todos os dias, o síndico passa pela rua pela qual é responsável; para em frente de cada casa; chama todos os habitantes às janelas chama cada um pelo seu nome; informa-se do estado de todos, um por um – «os habitantes são obrigados a dizer a verdade sob pena de morte»”

“Esta vigilância baseia-se num sistema de registo permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos magistrados municipais ou ao presidente da Câmara. (...) Tudo o que é observado durante as visitas – mortes, doenças, reclamações, irregularidades – é anotado, transmitido aos intendentes e aos magistrados (...) O registo do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com a sua doença e com a sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registo que estas fazem e pelas decisões que tomam.”
“Este espaço fechado, dividido, vigiado em todos os pontos, onde os indivíduos são introduzidos num lugar fixo, onde os mínimos movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem partilha segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente referenciado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – tudo isto constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. ”

“À peste responde a ordem;”

“A peste como forma simultaneamente real e imaginária da desordem tem como correlativo médico e político a disciplina. Por detrás dos dispositivos disciplinares, lê-se o terror dos «contágios», da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, que vivem e morrem na desordem.” 
Capítulo 7: O Panoptismo

O ataque à desordem busca o reequilíbrio, ou normalização dos processos, um voltar ao que era a linha anteriormente definida. Por seu lado, estes processos, demonstrando os seus frutos acabariam sendo importados para outros domínios, como diz Foucault:
“lentamente, vemo-los aproximarem-se; no século XIX, aplicou-se ao espaço de exclusão do qual o leproso era o habitante simbólico (..) isto foi operado regularmente pelo poder disciplinar desde inícios do século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada e, de certo modo, os hospitais.”
Capítulo 7: O Panoptismo

O sistema de ordem e punição, ou nos dias hoje, de regulação, serve então a marcação binária da sociedade entre “louco-não louco, perigoso-inofensivo; normal-anormal”, com os mecanismos de poder a agirem sobre o anormal para o fazer regredir ao normal. Mas para que os mecanismos funcionem, é necessário todo um sistema de vigilância e informação permanente que permita a punição nos momentos adequados, o treino que permite dobrar o anormal, alertando e corrigindo. Daí que Foucault invoque a figura arquitetónica do panótico, que se define por um edifício circular com uma torre de vigia no centro. Os indivíduos sabendo-se vigiados, 24/24, e o efeito punitivo da não anuência da normalização, acabarão por se auto-normalizar. Aliás este mesmo processo foi utilizado em Portugal, e em muitas ditaduras do século XX, no uso das polícias de informação e o recurso a informadores no centro das comunidades, que tudo relatavam, induzindo o medo constante, e a manutenção da aparente normalidade.

Isto explica, para Foucault, porque passámos de um mundo medieval em que a tortura e morte era o normal na atribuição de justiça, para um mundo a partir do século XVIII, feito de prisões, em que os crimes, fossem de que ordem fossem, eram sempre punidos pela clausura. Segundo Foucault, houve uma transição da tortura do corpo para o controlo da “alma”, da mente, por via do fim dos maus tratos físicos via clausura em prisões. Esta transição foi operada pela pressão da sociedade, como modo de por fim à degradação humana representada pelos enforcamentos, guilhotinagens e torturas em praças públicas. Deste modo, Foucault aponta uma espécie de génese para a regulação da ordem assente na vigilância e disciplina, pela invasão e devassa da interioridade individual, apontada como reduto último, e aquele que necessita de ser quebrado para regressar à normalidade. A justiça abandona assim o simples ato punitivo vingativo em favor do ato corretivo de normalização, de suposto reajustamento psicológico. 

Daqui aponta o nascimento da Psicologia, a nova arte de normalização do humano, e aponta a normalização do indivíduo como o objeto último das sociedades, em que todos são moldados e formatados pelas ideias centrais comungadas pela comunidade em que se envolvem. Repare-se como Foucault define o processo de otimização da prisão a partir da cadeia exemplar de Mettray, aberta em 1840 e dada como grande exemplo em 1848 por funcionar em contraponto às revoltas que surgiam nas comunidades e escolas, como lugar em que a calma se tinha redobrado ao longo dos anos em que tinha funcionado:
“Os chefes e os subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem «pais», mas um pouco de tudo isto e segundo um modo de intervenção que é específico. São, de certo modo, técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. Têm a função de fabricar corpos dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho diário (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas, os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, os recolheres, as marchas com clarim e apito; comandam a ginástica; verificam a limpeza, presidem aos banhos. Adestramento que se acompanha de uma observação permanente; retira-se constantemente um conhecimento do comportamento quotidiano dos colonos; este saber é organizado como instrumento de avaliação perpétua:”

“Os suportes institucionais e específicos desses processos multiplicaram-se a partir da pequena escola de Mettray; os seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície; os seus apoios multiplicaram-se, com os hospitais, as escolas, as administrações públicas e as empresas privadas; os seus agentes proliferaram em número, em poder e em qualificação técnica; os técnicos da disciplina criaram raízes. Na normalização do poder de normalização, na organização de um poder-saber sobre os indivíduos, Mettray e a sua escola marcaram uma nova época.” 
Capítulo 10. O Sistema Prisional

Todos estes processos buscam a normalização, mas não só, ou melhor, essa normalização não é um qualquer princípio natural ou inscrito na pedra por um qualquer Deus, mas é antes a tal linha reta definida por cada sociedade. Ora as sociedades só existem enquanto grupos de interesses comuns, se não comungam do mesmo, não se podem manter juntos. Daí que a normalização opere no sentido de unificar e levar a comungar. Neste sentido, todas as estruturas criadas pelas sociedades, das prisões às escolas, dos hospitais às empresas, tudo opera segundo o mesmo objetivo de normalização. Iria mais longe, e sendo atual, e próximo de uma área que me é cara, diria que tudo opera segundo processos de gamificação. As estruturas de jogo vivem inerentemente do vigiar e punir. O jogador precisa de puxar pelo melhor de si, de se tornar no mais exímio competente, para não ser punido, e poder atingir um alegado objetivo final.

Isto é tanto verdade no século XXI, como no XV, ou no -V, o que mudou foi a evolução do aparelho que se aprimorou com o conhecimento científico, nomeadamente a enorme evolução das ciências sociais, que nos levaram a compreender melhor o humano, e por fim, aquilo que cada sociedade e civilização considera moralmente bom e mau ou fundamental para a sua coexistência. Porque as sociedades do século XXI não pretendem o mesmo das do século XV, e menos ainda do século -V. Reflita-se sobre mais este excerto:
“A escola (...) é apenas o exemplo de um fenómeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para controlar o tempo das vidas singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para assegurar uma acumulação da duração; e para transformar em proveito ou em utilidade sempre maiores o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, nos seus corpos, nas suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja suscetível de utilização e de controlo? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também vistas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

É por isso que dizer, nos dias de hoje, que a Universidade não existe para profissionalizar, ou que não funciona como certificador de competências, é uma falácia. A sociedade aceita a Universidade com tanta omnipresença, com a maioria dos jovens a chegar aos 18 anos a procurar nela ingressar, apenas e só porque ela garante o aumento de rendimentos aos indivíduos e claro às sociedades como um todo. A Universidade não tem hoje qualquer relação com a Academia grega, desligada da realidade do quotidiano, desinteressada da posse material, focada exclusivamente no conhecimento, porque a universidade se transformou numa extensão da instituição da Escola. É preciso transformar pessoas em máquinas de competências no tempo mais curto possível, para o que se requer obrigatoriamente o treino pela repetição e divisão do saber analógico em classes discretas elementares. As unidades discretas de conhecimento permitem o treino isolado, a repetição acelerada do que não foi adquirido, e consequentemente a vigilância por via do exame que:
“tem a tripla função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, garantir a conformidade da sua aprendizagem com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo.” 
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

Este modelo opera por toda a sociedade atual, nos hospitais com a doença e os doentes, nas fábricas e empresas, com os empregados e os seus objetivos a cumprir, nos tribunais com os arguidos, obviamente nas prisões e nos militares, mas também no desporto e na política. Porque tudo na sociedade atual é regulado por processos de gamificação dirigidos ao aumento de consumo e de produção. Esse é o modelo que nos regula, o Norte do jogo que a nossa civilização aceita jogar. 

Se dúvidas houvesse, analise-se o momento que atravessamos com o COVID-19, e perceba-se como todo o discurso, em todas as dimensões que constituem a nossa sociedade, se resume aos impactos no abaixamento do consumo e da produção. Como tudo e todos se focam naquilo que dizem ser a busca pela normalização que é o atingir do estado anterior à paragem forçada criada pelo COVID-19. Queremos a escolas abertas porque os pais precisam de ir trabalhar, porque os cafés, restaurantes, táxis, lojas de roupas, perfumes, bijuterias, papelarias e livrarias precisam de servir pais, professores e alunos, porque as fábricas precisam de servir todos esses estabelecimentos. Em redor destes nós, crescem múltiplos outros, em que todos dependem uns dos outros, e a paragem de um qualquer dos nós, implica diminuição de consumo e logo de atividade produtiva. 

Foucault não escreve enquanto crítico, mas enquanto cientista social, recorrendo ao método de análise histórica focada sobre as sociedades, procura padrões, indicadores, relações, leituras, buscava sentido interpretativo que explicasse porque funcionavam as sociedades como funcionavam. Claro que não foi o único a fazê-lo, mas a sua capacidade para identificar padrões macro e ligá-los a micro, tanto societais como individuais, por meio de teorização filosófica, sociológica e psicológica fez com que Foucault atingisse níveis de profundidade na sua análise únicos. O seu discurso é científico, baseado em evidência empírica, não se move por sentidos de correto ou incorreto, isso cabe ao leitor final decidir o que fazer com o novo modo de compreender a realidade apresentado por ele.

Do mesmo modo, não me interessa aqui apontar o dedo à Justiça, Escola, Políticos ou sequer ao Capitalismo ou qualquer outra ideologia económica. Na verdade, importa compreender que este foi o caminho escolhido para dominar o caos e a desordem, importa compreender como gerimos esse controlo, que ferramentas usamos para vigiar, punir e normalizar. Não porque sejam erradas, mas porque se quisermos mudar algo no modo como vivemos enquanto sociedade é sobre estas ferramentas que teremos de agir. Foucault não oferece caminho alternativo, só explica como montámos este caminho, que é apenas à superfície aparente natural, mas é profundamente artificial. 

Aliás, o que este seu trabalho demonstra é exatamente a evolução societal no sentido da adoção da ciência, no modo como evoluiu os seus métodos de ordem e normalização da sociedade, conduzindo a população a desejar jogar o jogo das suas vidas sob as mesmas regras. Já não estamos sob o jugo das religiões que exigem na base da fé cega, ou sob o jugo ditatorial que pune sem questionar, ambos os sistemas incapazes de se justificar perante as pessoas. Tanto os sistemas religiosos como ditatoriais, falharam por falta de feedback, mas acima de tudo por falta de objetivos macro. A ciência permitiu que as sociedades criassem novas estruturas que per se conseguiram instituir nas sociedades sistemas contínuos de feedback, que por sua vez garantem o desejo de submissão, de aceitação de ordem. Em última análise, o consumo parece ser o desejo último que a todos motiva de forma igual. Bem ou mal, de uma forma ou de outra, todos parecem desejar consumir mais, seja mais conhecimento, mais experiências, mais coisas ou mais poder, estando dispostos a aceitar as regras da vigilância e punição para o conseguir.

junho 02, 2018

Epistemologia pela análise histórica

"A Ordem do Discurso" é um discurso escrito, apresentado por Michel Foucault a 2 de Dezembro de 1970, na sua aula inaugural no Collège de France, entretanto posto a circular na forma de livro pela editora Éditions Gallimard em 1971. A relevância do discurso centra-se na apresentação, de modo sintético, do método de chegada à verdade eleito por Foucault, apresentando as razões e raízes para o mesmo. Foucault apresenta-se como devedor de Jean Hyppolite no que ao método concerne, sendo que a sua chegada ao Collège de France acontece pela morte de próprio Hyppolite, no ano anterior, tendo Foucault sido eleito para ocupar a sua cátedra, Histoire de Pensée Philosophique, com a nova designação de Histoire des Systèmes de Pensée.


O texto é de difícil leitura, não porque use muito jargão, mas porque Foucault, como tantos outros filósofos, opera o seu discurso sempre em níveis de análise macro, ou seja grandes categorias do real, que para quem não está por dentro de um enorme manancial de contexto, torna difícil compreender em concreto o que é dito, ou seja, estabelecer a ligação entre as categorias gerais e as especificidades diversas que a realidade apresenta. No entanto, e também como sempre nestes discursos, à medida que vamos forçando a nossa entrada na teia, vamos assimilando o comprimento de onda, sendo capazes de nos colocar ao lado do autor e seguir pelo meio da abstração o que está a ser dito. É preciso dizer ainda que o texto, por ter sido pensado para um discurso falado, não poderia, ao contrário do livro, tomar a liberdade de evocar muito do contexto necessário à sua compreensão. Por outro lado, o tipo de audiência esperado para o discurso supostamente estaria na posse de muito desse contexto.

Não me interessa aqui debater em concreto as estruturas do Poder que Foucault encontra estarem a operar na construção dos Discursos, desde logo porque existem pessoas muito mais especializadas na temática que eu, que já fizeram essa desmontagem, apresentando-a de modos muito mais pragmáticos e até visuais. O texto tem sido amplamente usado pelos colegas de Direito e da Medicina para compreender exatamente o poder do discurso em si.

Interessa-me antes focar no método epistemológico que serve de base a essa busca, e que assenta na arqueologia do saber, que no fundo dá conta de uma construção do conhecimento por meio da análise histórica e construtivista dos acontecimentos na realidade, recorrendo a múltiplos processos de operação dos elementos desses acontecimentos na história, pondo em jogo não apenas os eventos mas todo seu contexto social, usando a comparação e a correlação em busca de padrões e categorias de suporte a uma verdade por detrás das ideias. Isto é apresentado e trabalhado por Foucault como base metodológica para a busca da compreensão do poder do discurso.
"As descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar, apoiar-se umas nas outras e completar­ se. A parte crítica da análise prende-se com os sistemas de envolvimento do discurso ; ela visa assinalar e distinguir esses princípios de prescrição, de exclusão, de raridade do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela põe em prática uma aplicada desenvoltura. A parte genealógica da análise prende-se, pelo contrário, com as séries da formação efectiva do discurso : visa captá-lo no seu poder de afirmação, e não entendo com isso um poder que estaria em oposição ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objectos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos positividades a esses domínios de objectos ; e digamos, jogando segunda vez com as palavras, que se o estilo crítico era o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz."  Foucault, O Poder do Discruso (1971)
Concordando totalmente com a epistemologia, sinto no entanto que fica a faltar algo neste método, e não vou fazer uma crítica sobre o estruturalismo ou formalismo do método, mas mais sobre aquilo que me parece ser algo que faltaria aqui para podermos fechar o circuito completo da construção de verdade. Falo em concreto da Interpretação, a mãe da escola de análise crítica, que em face de todos os achados — repetições e diferenças — precisa de dar um sentido aos mesmos. É aqui que tudo se complica, é aqui que a ideologia de cada um acaba por operar inevitáveis distorções da verdade. Repare-se como as categorias definidas por Foucault para a compreensão do Poder do discurso assumem desde logo um posicionamento ideológico — exclusão, controlo ou apropriação. É certo que é de poder que se fala, mas também não é menos certo que Foucault tende aqui para buscar apenas um certo veio de tendências — da opressão e limitação — deixando de fora possibilidades contrárias como a expansão ou até o empoderamento, entre muitas outras perspectivas possíveis.
"Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel ; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma proposição estava em poder do seu próprio autor. Desde o século XVIII que esta função se tem vindo a atenuar no discurso científico : já não funciona senão para dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor tem vindo a reforçar-se : a todas essas narrativas, a todos esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu ; pretende-se que o autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob o seu nome ; pede-se-lhe que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os atravessa ; pede-se-lhe que os articule, com a sua vida pessoal e com as suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é o que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real." Foucault, O Poder do Discruso (1971), análise histórica do papel do Autor
Já agora, e mais próximo do meu trabalho, esta tem sido a abordagem seguida por David Bordwell ao longo dos anos na sua análise do discurso cinematográfico, a que ele deu o nome de "historical poetics". Ou seja, a busca-se compreender o sentido no cinema por meio da análise da variação estética no tempo. Como dizia acima, não se trata de uma abordagem meramente formalista, porque não se limita a estudar o filme enquanto objeto plástico, a análise procura quantificar e realizar amostragem histórica, mas procura compreender como essa funciona em termos cognitivos junto dos espectadores.

Temos método, temos uma base de evidência que suporta a verdade apresentada, mas nem por isso podemos relaxar, esquecer que o emissor de verdade, ainda que a partir de evidência, não contaminará ele próprio fortemente essa evidência.