"'Vladimir' contains far too many uncomfortable truths to be merely fun, but — especially for those of us with feet in the worlds of academia and literature — it remains, by turns, cathartic, devious and terrifically entertaining." Jean Hanff Korelitz, in New York Times
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maio 15, 2022
“Vladimir” (2022) de Julia May Jonas
“Vladimir” (2022) faz parecer que Philip Roth voltou para escrever sobre os efeitos do MeToo na academia e na arte, mas agora como mulher. Esta primeira obra de Julia May Jonas é irrepreensível na escrita, estrutura e erudição. Sob uma capa de aparente simplicidade narrativa — evocando "Misery" de King, "Rebecca" de Du Maurier e "Lolita" de Nabokov (autor que inevitavelmente se liga ao título) — Jonas vai lançando todo um questionamento avassalador sobre aquilo que somos em cada momento. Motivada pelos ataques institucionais do MeToo, Jonas coloca-nos na pele de uma professora universitária de 58 anos, muito certa do seu lugar, mas com fortes assaltos de dúvida sobre esse lugar. Entre a identidade que arquitetou com base no mundo para o qual erigiu as suas defesas, e o novo mundo que coloca em causa a existência dessas mesmas defesas, acaba colocando em causa a sua própria pessoa. Mas tudo isto é trabalhado num tom de comédia-negra, com a leveza entremeada por rasgos de incisiva análise do que fazemos e porque fazemos. É um ‘campus novel’ totalmente atual, capaz de ir além da crítica interna da academia, colocando o dedo no embate do MeToo com o Status Quo, não em defesa, nem contra, mas sim como provocação a ambos os lados.
agosto 26, 2019
Como Começou a Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade
Começar por dizer que não sou de Linguística, embora trabalhe no domínio da Comunicação que opera alguns níveis acima na relação com o humano, e por isso possui relação com o conhecimento produzido pela linguística. Dizer que tendemos a conhecer mais Chomsky pelo seu ativismo político do que propriamente pelos seus contributos científicos. No entanto, tendo em conta a envergadura do seu reconhecimento é sempre complicado defender posições antagónicas, contudo, é isso que Daniel L. Everett faz neste livro, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017). Everett doutorou-se com uma tese em linguística, baseada no seu trabalho de campo com tribos da Amazónia nos anos 1970, um trabalho que continuou sempre a evoluir e lhe permitiu chegar a esta afirmação que surpreende muitos linguistas: “Eu nego aqui que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego também que seja inata”.
Sendo um livro sobre a génese da linguagem humana, precisamos de partir da base comum e aceite pela generalidade dos académicos linguistas, sobre o modo como criamos linguagem e que na área dá pela designação de “Gramática Generativa” ou “Gramática Universal”. Esta designação foi criada por Chomsky nos anos 1960 e pretendia identificar um conjunto de regras base de organização mental que permitiriam o surgimento e desenvolvimento da linguagem. Chomsky e colegas determinaram que esta organização terá surgido há cerca de 50 mil anos, tendo alterado completamente o nosso desenvolvimento cognitivo e social, distinguindo-nos dos animais. Deste modo, Chomsky afirma existir uma linguagem universal inata, que mais tarde Fodor e Pinker denominariam de “linguagem do pensamento” ou “mentalese”. Confesso que a primeira vez que li sobre esta teorização não me atraiu. O meu treino em comunicação faz-me trabalhar a realidade do humano como algo altamente variável culturalmente (o que é amplamente suportado por evidências empíricas), daí que aceitar a hipótese da existência de uma espécie de código universal a este nível, imbuído em todos de forma igual, me pareceu sempre extemporâneo.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
"O Nascimento de uma Palavra" (2011) de Deb Roy
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
A Caverna de Altamira, Espanha, apresenta algumas das primeiras pinturas humanas, tendo sido datadas com 30 mil anos.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
julho 06, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari
Estamos no início do terceiro milénio, uma ferramenta online criada numa universidade americana permite aos rapazes e raparigas da elite da sociedade partilhar ideias, textos, fotografias, vídeos, estreitar laços e fortalecer relações. Em poucos anos essa ferramenta chega a mais universidades, ultrapassa as fronteiras dos campus e começa a ser usada livremente pela sociedade. Em 2017 são já dois mil milhões de pessoas que estão ligadas nessa rede. Todos os dias partilham ali sentires, preocupações, angústias, dores, alegrias, desejos e sonhos. Em 2025 começa-se a usar todo o conhecimento acumulado sobre cada um dos utilizadores, sobre os seus passado e futuro, sobre os seus gostos e profissões, as suas famílias e geografias, para aconselhar as pessoas nos processos de decisão: será boa altura para mudar de casa? de carro? e que tal começar a procurar novo emprego? e o casamento, ainda posso acreditar na minha mulher? As bases de dados sabem melhor do que cada um de nós o que é melhor para cada um individualmente, porque a todos conhece melhor do que cada um a si mesmo. Isto poderia servir de introdução à narrativa que Harari tem para nos contar neste seu segundo livro, "Homo Deus: A Brief History of Tomorrow".
Nada disto é novo, já vimos esta história ser contada de inúmeras maneiras — sendo os mais próximos, “Matrix”, “Terminator” ou "AI: Artificial Intelligence" — cada uma mais distópica que a outra, mas Harari não está aqui para apresentar tragédias, não permitindo que o seu discurso seja de algum modo contaminado por melancolias e pessimismos bem conhecidos destas visões apocalípticas. Harari fala mais como um arqueólogo do futuro que olha para a origem, apogeu e declínio do homo sapiens, dando conta do modo como os eventos se foram sucedendo pautando tudo por um tom de perfeita normalidade e sustentado rigor. Se existe algo em que todos estão de acordo sobre Harari, é esta sua capacidade de distanciamento, síntese, e ressignificação do mundo em que vivemos e poderemos vir a viver.
No primeiro livro conhecemos as três grandes revoluções históricas que dão sentido à evolução da espécie 'Homo Sapiens': a cognitiva, a agricultura e a científica. A primeira que nos permitiu começar a aprender e a comunicar. A segunda que nos permitiu dar resposta às necessidades fisiológicas. A terceira que nos permitiu começar a interrogar e a compreender a nós mesmos. Neste segundo livro, Harari propõe-se ir além da revolução científica, ou seja além do presente. A discussão centra-se sobre a razão da própria razão. Separando a inteligência da consciência, é possível pensar a progressão dessa competência de que todos os animais são dotados, com maiores e menores qualidades. A grande questão acaba por se colocar sobre a motivação dessa progressão e consequentemente da essência da consciência, daquilo que a define ou daquilo que nos define. Para isso Harari trabalha, como não podia deixar de ser, uma análise histórica do modo como ao longo dos últimos milénios foi progredindo a significação daquilo que somos, da forma como nos vemos e aceitamos.
As primeiras civilizações acreditaram no poder das estrelas, na sua geometria para ditar os nossos destinos. Depois o vieram as várias religiões, cada uma com o seu Deus, e deixámos de olhar para as estrelas em busca de respostas, passámos a aceitar as palavras inscritas nas suas bíblias, tudo podia ser determinado por aquelas palavras, aqueles mandamentos. Mas com a revolução da ciência veio todo um novo modo de ver, deixámos de procurar fora de nós, começámos a procurar as repostas a partir de dentro, procurando atribuir valor ao que nos faz felizes e infelizes. Harari considera que este é o estádio atual, e atribui-lhe o rótulo simples de Humanismo.
Isto permitiu o avanço da razão, porque a emoção a justificava. Compreender-se o ser-se humano, permitia a libertação da dor e o abraçar da paixão e do amor. O progresso era não só apelativo, como tinha um propósito. As emoções assentes em milhares de anos de evolução natural eram aquilo que melhor nos servia na condução do nosso dia-a-dia. Tínhamos assim passado, de conhecimento escrito por meia-dúzia de pessoas em livros, para conhecimento acumulado por milhões de seres-humanos ao longo de milhares de anos, registado no nosso DNA.
A questão que se começa então a colocar é, e a seguir? O que nos trará o pós-humanismo? Serão os sentimentos o nosso último reduto? Quantas vezes nos arrependemos por nos deixar levar pelos sentimentos e emoções. Quantas vezes questionámos que deveríamos ter dado ouvidos à razão. Então e se tivéssemos alguém ou algo, que pudesse não só aceder a todo esse conhecimento acumulado nos nossos genes, e ao conhecimento acumulado nos genes de todas as outras pessoas, não estaríamos num outro patamar de capacidade de tomada de decisões?
Assim podemos começar pelo facto de tudo isto ser pensado na base de uma sociedade que continuará o seu progresso científico e capitalista sem o menor problema. Algo que como aprendemos do nosso passado é muito difícil, basta pensar nas grandes civilizações que tivemos: Babilónia, Grécia e Roma Antigas, Incas, Maias, etc. Não estamos, e dificilmente algum dia estaremos livres de tudo poder simplesmente colapsar, seja por más decisões nossas (alterações climáticas), seja por epidemias ou mil e uma outras situações.
Em segundo lugar, a questão emocional. Harari usa um exemplo que é paradigmático do mundo das artes, mas que ele usa aqui a partir do angulo das máquinas. Fala-nos então dos experimentos musicais com IA de David Cope, em que um algoritmo escreveu uma composição musical imitando o estilo de Bach, dando-o a ouvir a pessoas que se manifestariam interiormente comovidas até ao momento em que lhes era revelado não ser Bach mas uma máquina o autor da peça. Mas isto não é nada de novo, aconteceu em n experimentos antes, realizados com crianças, com leigos, etc. sendo o efeito sempre o mesmo que acontece aqui. Ora o problema destes experimentos acaba por ser o retirar da equação a consciência daquilo que somos, e daquilo que o objeto representa para nós. Uma obra de arte não existe sem alguém que a experiencie, como dizia Eco, mas também não existe sem alguém que a crie. Ou seja, a obra de arte é mais do que o objeto, é o contexto da criação e fruição desse objeto. Porque a fruição não é mera filtragem dos sentidos humanos, é antes um diálogo entre aquilo que os sentidos filtram e o conhecimento detido sobre o tal contexto da obra.
Um exemplo clássico para se compreender o alcance do impacto desse contexto, é o caso do Picasso na sala de estar. A pessoa que vive numa casa, reconhecendo na sua parede uma tela como autêntica de Picasso, mudará radicalmente o seu sentimento para com essa tela, que não terá mudado um átomo, no momento em que um avaliador lhe disser que é apenas uma imitação de algo que Picasso, não pintou nem sequer nunca imaginou. Ou seja, todo o contexto cai, e com ele caem os alicerces que sustentam mentalmente a experiência daquele objeto. Porque os objetos só valem pelas narrativas que lhes colamos. Porque o mundo em que vivemos é feito de histórias, e são estas que alimentam os nossos desejos e vontade.
Mas também por isto, aceito, que podemos vir a fazer parte de outras narrativas, que vão para além do humano. As gerações anteriores às nossas nunca se conseguiram libertar das religiões em que foram criadas. Para elas o autor da tela era Deus que através de um humano, não importa qual, produzia a obra. Hoje nós acreditamos que a tela é produzida por esse humano. No futuro poderemos simplesmente acreditar que a tela é produzida por algoritmos que sabem melhor do que qualquer artista, aquilo que eu, ser individual, mais aprecio.
Mas aqui levanta-se um terceiro problema. Os algoritmos que nos controlarão, não poderão criar narrativas para cada um de nós individualmente, já que precisamos da confirmação dos outros como nós, do sentimento gregário, da pressão social para viver, pelo menos enquanto vivermos com este DNA ultrapassado. E daí que um sistema centralizado poderá rapidamente colapsar, assim que tentar fazer felizes milhões de humanos que se continuarão a relacionar, já que a felicidade de uns representará a infelicidade de outros e desse modo farão emergir conflitos insanáveis. Claro que podemos pensar que estes algoritmos serão inteligentes como nós nunca poderemos ser, e que terão soluções para problemas que nunca imaginámos, mas isso não muda aquilo que somos, em termos de matéria e crenças, e de prazeres e desejos. Por outro lado, esta insanabilidade poderá ditar o fim da nossa própria espécie, quando os algoritmos se cansarem de nos propor soluções de vivência em sociedade, sem sucesso, tal como explica o Arquiteto da trilogia de “Matrix”.
Último ponto crítico, e este o próprio Harari o aponta, embora o faça já só mesmo no virar das últimas páginas. Serão os dados, os sistemas de informação tal como os conhecemos hoje, capazes de traduzir completamente a consciência humana? Será possível criar algoritmos que dêem conta de todas as dimensões daquilo que aceitamos como, estar vivo?
Questões para que não temos respostas. Críticas, mas críticas que são provocadas pela leitura de Harari, que não se resume ao que aqui discuto, existe muito mais por onde pegar e discutir neste livro. Cada capítulo tem a sua cota parte de abordagens perspicazes do quotidiano, normalmente suportadas com argumentos que nos obrigam a parar e ponderar sobre aquilo que todos os dias fazemos de modo automático sem nos questionarmos porquê.
Links para saber mais:
"Sapiens", porque dominamos o planeta?
Nada disto é novo, já vimos esta história ser contada de inúmeras maneiras — sendo os mais próximos, “Matrix”, “Terminator” ou "AI: Artificial Intelligence" — cada uma mais distópica que a outra, mas Harari não está aqui para apresentar tragédias, não permitindo que o seu discurso seja de algum modo contaminado por melancolias e pessimismos bem conhecidos destas visões apocalípticas. Harari fala mais como um arqueólogo do futuro que olha para a origem, apogeu e declínio do homo sapiens, dando conta do modo como os eventos se foram sucedendo pautando tudo por um tom de perfeita normalidade e sustentado rigor. Se existe algo em que todos estão de acordo sobre Harari, é esta sua capacidade de distanciamento, síntese, e ressignificação do mundo em que vivemos e poderemos vir a viver.
No primeiro livro conhecemos as três grandes revoluções históricas que dão sentido à evolução da espécie 'Homo Sapiens': a cognitiva, a agricultura e a científica. A primeira que nos permitiu começar a aprender e a comunicar. A segunda que nos permitiu dar resposta às necessidades fisiológicas. A terceira que nos permitiu começar a interrogar e a compreender a nós mesmos. Neste segundo livro, Harari propõe-se ir além da revolução científica, ou seja além do presente. A discussão centra-se sobre a razão da própria razão. Separando a inteligência da consciência, é possível pensar a progressão dessa competência de que todos os animais são dotados, com maiores e menores qualidades. A grande questão acaba por se colocar sobre a motivação dessa progressão e consequentemente da essência da consciência, daquilo que a define ou daquilo que nos define. Para isso Harari trabalha, como não podia deixar de ser, uma análise histórica do modo como ao longo dos últimos milénios foi progredindo a significação daquilo que somos, da forma como nos vemos e aceitamos.
As primeiras civilizações acreditaram no poder das estrelas, na sua geometria para ditar os nossos destinos. Depois o vieram as várias religiões, cada uma com o seu Deus, e deixámos de olhar para as estrelas em busca de respostas, passámos a aceitar as palavras inscritas nas suas bíblias, tudo podia ser determinado por aquelas palavras, aqueles mandamentos. Mas com a revolução da ciência veio todo um novo modo de ver, deixámos de procurar fora de nós, começámos a procurar as repostas a partir de dentro, procurando atribuir valor ao que nos faz felizes e infelizes. Harari considera que este é o estádio atual, e atribui-lhe o rótulo simples de Humanismo.
Isto permitiu o avanço da razão, porque a emoção a justificava. Compreender-se o ser-se humano, permitia a libertação da dor e o abraçar da paixão e do amor. O progresso era não só apelativo, como tinha um propósito. As emoções assentes em milhares de anos de evolução natural eram aquilo que melhor nos servia na condução do nosso dia-a-dia. Tínhamos assim passado, de conhecimento escrito por meia-dúzia de pessoas em livros, para conhecimento acumulado por milhões de seres-humanos ao longo de milhares de anos, registado no nosso DNA.
A questão que se começa então a colocar é, e a seguir? O que nos trará o pós-humanismo? Serão os sentimentos o nosso último reduto? Quantas vezes nos arrependemos por nos deixar levar pelos sentimentos e emoções. Quantas vezes questionámos que deveríamos ter dado ouvidos à razão. Então e se tivéssemos alguém ou algo, que pudesse não só aceder a todo esse conhecimento acumulado nos nossos genes, e ao conhecimento acumulado nos genes de todas as outras pessoas, não estaríamos num outro patamar de capacidade de tomada de decisões?
"After centuries of economic growth and scientific progress, life should have become calm and peaceful, at least in the most advanced countries. If our ancestors knew what tools and resources stand ready at our command, they would have surmised we must be enjoying celestial tranquillity, free of all cares and worries. The truth is very different. Despite all our achievements, we feel a constant pressure to do and produce even more.”
“On the collective level, governments, firms and organisations are encouraged to measure their success in terms of growth, and to fear equilibrium as if it were the Devil. On the individual level, we are inspired to constantly increase our income and our standard of living. Even if you are quite satisfied with your current conditions, you should strive for more. Yesterday’s luxuries become today’s necessities. If once you could live well in a three-bedroom apartment with one car and a single desktop, today you need a five-bedroom house with two cars and a host of iPods, tablets and smartphones."
"It wasn’t very hard to convince individuals to want more. Greed comes easily to humans. The big problem was to convince collective institutions such as states and churches to go along with the new ideal. For millennia, societies strove to curb individual desires and bring them into some kind of balance. It was well known that people wanted more and more for themselves, but when the pie was of a fixed size, social harmony depended on restraint. Avarice was bad. Modernity turned the world upside down. It convinced human collectives that equilibrium is far more frightening than chaos, and because avarice fuels growth, it is a force for good. Modernity accordingly inspired people to want more, and dismantled the age-old disciplines that curbed greed.”Se em vez de reagir a uma atitude do nosso chefe, namorado ou filho a partir da nossa análise de prós e contras, tivéssemos um assistente virtual, que nos conhece melhor do que nós mesmos, porque pode a todo momento ver tudo aquilo que somos, enquanto nós estamos limitados ao que as nossas emoções, em cada momento, triam para o nosso consciente a ser aplicado em cada situação. Se por sua vez este assistente conhecesse também a outra pessoa envolvida no conflito. E ainda, ser este assistente dotado de um sistema de razão altamente evoluído, capaz de prever milhões e milhões de resultados das diferentes respostas num conflito, como se de jogadas de xadrez se tratasse. Com certeza faríamos melhor em confiar no seu conselho, e esquecer as nossas emoções. Harari chama a isto as novas religiões do futuro — o Dataísmo, fé baseada em informação e dados. Deixámos as estrelas, depois os deuses, e agora preparamo-nos para deixar as emoções!
“Yet in the twenty-first century, feelings are no longer the best algorithms in the world. We are developing superior algorithms which utilise unprecedented computing power and giant databases. The Google and Facebook algorithms not only know exactly how you feel, they also know a million other things about you that you hardly suspect. Consequently you should now stop listening to your feelings, and start listening to these external algorithms instead. What’s the use of having democratic elections when the algorithms know how each person is going to vote, and when they also know the exact neurological reasons why one person votes Democrat while another votes Republican? Whereas humanism commanded: ‘Listen to your feelings!’ Dataism now commands: ‘Listen to the algorithms! They know how you feel."Chegados aqui, poderíamos começar por perguntar a razão de uma democracia ou de um voto, quando os algoritmos conseguem saber com grande exatidão, em que partido cada um de nós vai votar. Quando os algoritmos sabem melhor do que qualquer um de nós, o que é melhor para nós em cada momento. E porque as emoções não são mais do que meros algoritmos bioquímicos limitados na razão e alcance. Porque um pequeno comprimido pode fazer a diferença entre estar bem disposto e conseguir realizar um exame e tirar boa nota, ou reprovar e ficar um ano empatado. E quando os dados e algoritmos conseguem responder a tudo, e nós não percebemos sequer como o fazem, os dados deixam de ser meros dados, e passam a ser novos deuses.
“Every day millions of people decide to grant their smartphone a bit more control over their lives or try a new and more effective antidepressant drug. In pursuit of health, happiness and power, humans will gradually change first one of their features and then another, and another, until they will no longer be human.”Tudo isto é pura especulação, com uma gigantesca cadeia de “ses” pelo caminho. O mais interessante de tudo é o modo brilhante como Harari constrói toda a argumentação, interligando passado, presente e futuro, biologia e história, religião e computação. Harari vai muito para além de muito daquilo que a ficção-científica nos tem dado, porque não se limita a contar uma história com meia-dúzia de dados novos, ele constrói um universo inteiro de sustentação para tudo o que afirma. Claro que existem críticas, a especulação não é imune, nem tem interesse em sê-lo, a especulação é pura estimulação do pensamento crítico.
Assim podemos começar pelo facto de tudo isto ser pensado na base de uma sociedade que continuará o seu progresso científico e capitalista sem o menor problema. Algo que como aprendemos do nosso passado é muito difícil, basta pensar nas grandes civilizações que tivemos: Babilónia, Grécia e Roma Antigas, Incas, Maias, etc. Não estamos, e dificilmente algum dia estaremos livres de tudo poder simplesmente colapsar, seja por más decisões nossas (alterações climáticas), seja por epidemias ou mil e uma outras situações.
A Ilha da Páscoa é um exemplo clássico do colapso de sociedades humanas.
Em segundo lugar, a questão emocional. Harari usa um exemplo que é paradigmático do mundo das artes, mas que ele usa aqui a partir do angulo das máquinas. Fala-nos então dos experimentos musicais com IA de David Cope, em que um algoritmo escreveu uma composição musical imitando o estilo de Bach, dando-o a ouvir a pessoas que se manifestariam interiormente comovidas até ao momento em que lhes era revelado não ser Bach mas uma máquina o autor da peça. Mas isto não é nada de novo, aconteceu em n experimentos antes, realizados com crianças, com leigos, etc. sendo o efeito sempre o mesmo que acontece aqui. Ora o problema destes experimentos acaba por ser o retirar da equação a consciência daquilo que somos, e daquilo que o objeto representa para nós. Uma obra de arte não existe sem alguém que a experiencie, como dizia Eco, mas também não existe sem alguém que a crie. Ou seja, a obra de arte é mais do que o objeto, é o contexto da criação e fruição desse objeto. Porque a fruição não é mera filtragem dos sentidos humanos, é antes um diálogo entre aquilo que os sentidos filtram e o conhecimento detido sobre o tal contexto da obra.
Um exemplo clássico para se compreender o alcance do impacto desse contexto, é o caso do Picasso na sala de estar. A pessoa que vive numa casa, reconhecendo na sua parede uma tela como autêntica de Picasso, mudará radicalmente o seu sentimento para com essa tela, que não terá mudado um átomo, no momento em que um avaliador lhe disser que é apenas uma imitação de algo que Picasso, não pintou nem sequer nunca imaginou. Ou seja, todo o contexto cai, e com ele caem os alicerces que sustentam mentalmente a experiência daquele objeto. Porque os objetos só valem pelas narrativas que lhes colamos. Porque o mundo em que vivemos é feito de histórias, e são estas que alimentam os nossos desejos e vontade.
Mas também por isto, aceito, que podemos vir a fazer parte de outras narrativas, que vão para além do humano. As gerações anteriores às nossas nunca se conseguiram libertar das religiões em que foram criadas. Para elas o autor da tela era Deus que através de um humano, não importa qual, produzia a obra. Hoje nós acreditamos que a tela é produzida por esse humano. No futuro poderemos simplesmente acreditar que a tela é produzida por algoritmos que sabem melhor do que qualquer artista, aquilo que eu, ser individual, mais aprecio.
Mas aqui levanta-se um terceiro problema. Os algoritmos que nos controlarão, não poderão criar narrativas para cada um de nós individualmente, já que precisamos da confirmação dos outros como nós, do sentimento gregário, da pressão social para viver, pelo menos enquanto vivermos com este DNA ultrapassado. E daí que um sistema centralizado poderá rapidamente colapsar, assim que tentar fazer felizes milhões de humanos que se continuarão a relacionar, já que a felicidade de uns representará a infelicidade de outros e desse modo farão emergir conflitos insanáveis. Claro que podemos pensar que estes algoritmos serão inteligentes como nós nunca poderemos ser, e que terão soluções para problemas que nunca imaginámos, mas isso não muda aquilo que somos, em termos de matéria e crenças, e de prazeres e desejos. Por outro lado, esta insanabilidade poderá ditar o fim da nossa própria espécie, quando os algoritmos se cansarem de nos propor soluções de vivência em sociedade, sem sucesso, tal como explica o Arquiteto da trilogia de “Matrix”.
Último ponto crítico, e este o próprio Harari o aponta, embora o faça já só mesmo no virar das últimas páginas. Serão os dados, os sistemas de informação tal como os conhecemos hoje, capazes de traduzir completamente a consciência humana? Será possível criar algoritmos que dêem conta de todas as dimensões daquilo que aceitamos como, estar vivo?
Questões para que não temos respostas. Críticas, mas críticas que são provocadas pela leitura de Harari, que não se resume ao que aqui discuto, existe muito mais por onde pegar e discutir neste livro. Cada capítulo tem a sua cota parte de abordagens perspicazes do quotidiano, normalmente suportadas com argumentos que nos obrigam a parar e ponderar sobre aquilo que todos os dias fazemos de modo automático sem nos questionarmos porquê.
Links para saber mais:
"Sapiens", porque dominamos o planeta?
abril 04, 2017
"Sapiens", porque dominamos o planeta?
“Sapiens: A Brief History of Humankind” conta a história da nossa espécie, focando-se sobre o modo como passámos de presas a predadores e nos tornámos na espécie dominante. Yuval Noah Harari parte da sua disciplina base, a História, à qual acopla as restantes ciências sociais — Comunicação, Sociologia, Psicologia, Economia e Geografia — tudo estruturado por uma lógica Evolucionista. O resultado é uma obra de divulgação de ciência dotada de enorme retórica e alcance conceptual, capaz de colocar Harari ao nível de Carl Sagan, David Deutsch, Jared Diamond, Stephen Hawking ou Richard Dawkins.
Bastam as primeiras páginas para percebermos que estamos perante um texto distinto, no qual Harari define desde logo três momentos chave no seu enquadramento sobre o modo como a espécie humana transformou por completo a sua presença no planeta: a Revolução Cognitiva (70,000 anos a.c.); a Revolução Agrícola (10,000 anos a.c.); e a Revolução Científica (1500 d.c.). Harari foca todo o historiar a partir da primeira revolução, contando a nossa história ao longo destes 70 mil anos, numas breves 400 páginas.
Assim, até à Revolução Cognitiva, seríamos uma espécie como as outras, indefesa e presa fácil. A partir deste momento, passámos a contar com a Linguagem e com a Comunicação que iriam suportar a cooperação em larga-escala, permitindo-nos começar a trabalhar em grupos, comunidades, tribos e depois nações, ou seja, permitiu-nos organizar-nos e sair de África para conquistar todo o planeta. A partir deste ponto, o nervo central da nossa história deixa de ser a Biologia e passa a ser a Cultura por nós produzida. Nestes 70 mil anos, biologicamente falando pouco mudámos enquanto Sapiens, já culturalmente nada mais fizemos do que mudar.
A Revolução Agrícola apresentada por Harari não traz muito de novo, tendo em conta que Jared Diamond praticamente esgotou o tema nas suas obras, ainda assim existe espaço para a primeira grande provocação deste livro: terá sido um erro? Tendo em conta os níveis de felicidade humana, Harari questiona se não nos teremos tornado mais infelizes, ao deixar-nos sedentarizar e escravizar pelo trabalho duro e pesado da agricultura, tudo em nome de mais conforto. A questão tem provocado imensa discussão, não vou tomar partido, assumo antes um conceito criado por K. Kelly há uns anos, o da “inevitabilidade tecnológica”, e que Harari quase aflora, e que nos diz que somos de certo modo impulsionados pela tecnologia, enquanto parte da cultura, a inventar e a inovar. Deste modo não adianta muito questionar se terá sido um erro, já que dificilmente se pode ver como uma escolha da espécie.
Ambas as revoluções foram fruto de uma tecnologia base da comunicação, o ato de contar histórias que sustenta os mitos e as religiões. Foi através deste que pudemos criar imaginários coletivos, capazes de produzir crença e assim solidificar a colaboração na base da confiança uns nos outros. Contudo a uma determinada altura, os mitos e as religiões estagnariam o progresso, nomeadamente pelo seu distanciamento cada vez maior da realidade. Basta olhar para os séculos da idade medieval e o seu resultado em Inquisições religiosas. E é aí que Harari coloca a última revolução, a científica, que transformaria por completo o imaginário e impulsionaria avanços na capacitação da espécie, que antes nunca teriam sido sequer sonhados.
Harari é fortemente dotado na retórica pela narrativa, usa recorrentemente pequenas histórias, que polvilha com imensos factos, e afirma sem dúvidas, o que tem a dizer. Ou seja, partindo do pressuposto que as estruturas narrativas da nossa História são meramente especulativas, Harari faz aquilo que Sagan fazia, assume a sua escolha, e conta a sua história, como se da verdade absoluta se tratasse. Isto é problemático em termos científicos, mas por outro lado, é fundamental em divulgação científica. Não seria possível escrever um livro sobre 70 mil anos de história, se se ponderassem todos os caminhos e variáveis possíveis. O que Harari faz é contar a história, segundo pressupostos lógicos, fundamentados em processos dedutivos, assentes em grandes marcos teóricos.
Um desses marcos é o Evolucionismo. Toda a História de Harari se distancia do mero relatar de factos, da mera exposição do que terá acontecido, já que este se concentra antes em explicar porque aconteceu assim. E fá-lo munido de um grande conjunto de dados provenientes de uma série de disciplinas distintas. Ora o evolucionismo, apesar da sua problemática (não ser testável experimentalmente), acaba por funcionar muitíssimo bem em todo este trabalho, tal como já tinha acontecido com Dutton em “The Art Intinct”. Porque o evolucionismo contribui com um quadro teórico que sustenta um conjunto de preceitos lógicos e respondem de modo científico, ainda que teorizante, a questões que até aqui se enquadrariam no reino do mero mito.
Nesta senda Harari vai acabar por re-rotular muito daquilo que conhecemos, nomeadamente transformando todos os sistemas políticos — comunismo, capitalismo, socialismo, etc. — em religiões substitutas, no sentido em que passaram a ser estas quem dita as nossas condutas. Pelo meio Harari apresenta amiúde rasgos interpretativos soberbos, não totalmente deslocados de outros teóricos especulativos, nomeadamente no campo dos Estudos Culturais. Aproveito para deixar alguns desses rasgos:
Imaginário: Consumismo Romântico
Terão de ler o livro para saber se existe essa terceira alternativa. Resumindo, o mais relevante é como Harari acaba a demonstrar com estes imaginários, o quão somos feitos de ilusões (e não parece estar sozinho a julgar pela última entrevista de Dennett) e o quão frágeis, efémeros e inconstantes somos por oposição a todo nosso escafandro biológico. No último capítulo Harari leva a especulação para o futuro e mostra-nos um possível novo mundo no qual a espécie sapiens desaparece para dar lugar a uma espécie de neo-sapiens. Seremos outros, alterados externamente com próteses computacionais, assim como transformados biologicamente a nível celular e de DNA. É verdade que Harari parece apresentar um discurso algo pessimista, mais ainda quando comparado ao otimismo quase exacerbado de David Deutsch. Mas não deixa de ser um discurso realista, lógico e pela sua enorme eloquência imensamente atrativo.
A propósito da data de publicação. O livro foi publicado pela primeira vez em hebreu em 2011, apesar de Harari dominar o inglês, uma vez que se doutorou em Oxford, o que demonstra que se podem publicar grandes obras noutras línguas que não o inglês. É claro que a obra só se tornaria mundialmente famosa quando foi traduzida para inglês em 2014. Mas não tenhamos ilusões, não foi o inglês a razão do seu sucesso, mas o facto de pessoas famosas e poderosas como Obama, Bill Gates ou Zuckerberg o terem recomendado. Entretanto está já também traduzida para português pela Vogais, desde 2015.
Por último, e interessante mais para académicos, é o modo como surgiu o livro, depois de Harari ter sido obrigado a dar uma cadeira que não era a sua especialidade, História Mundial, sendo ele especialista em História Militar Medieval. Interessante porque mostra como os riscos da mudança implicam a criação de novo. Como também, se estivermos abertos a novas experiências poderemos encontrar novas razões, novos mitos para nos manter a sonhar a vida.
Bastam as primeiras páginas para percebermos que estamos perante um texto distinto, no qual Harari define desde logo três momentos chave no seu enquadramento sobre o modo como a espécie humana transformou por completo a sua presença no planeta: a Revolução Cognitiva (70,000 anos a.c.); a Revolução Agrícola (10,000 anos a.c.); e a Revolução Científica (1500 d.c.). Harari foca todo o historiar a partir da primeira revolução, contando a nossa história ao longo destes 70 mil anos, numas breves 400 páginas.
Assim, até à Revolução Cognitiva, seríamos uma espécie como as outras, indefesa e presa fácil. A partir deste momento, passámos a contar com a Linguagem e com a Comunicação que iriam suportar a cooperação em larga-escala, permitindo-nos começar a trabalhar em grupos, comunidades, tribos e depois nações, ou seja, permitiu-nos organizar-nos e sair de África para conquistar todo o planeta. A partir deste ponto, o nervo central da nossa história deixa de ser a Biologia e passa a ser a Cultura por nós produzida. Nestes 70 mil anos, biologicamente falando pouco mudámos enquanto Sapiens, já culturalmente nada mais fizemos do que mudar.
A Revolução Agrícola apresentada por Harari não traz muito de novo, tendo em conta que Jared Diamond praticamente esgotou o tema nas suas obras, ainda assim existe espaço para a primeira grande provocação deste livro: terá sido um erro? Tendo em conta os níveis de felicidade humana, Harari questiona se não nos teremos tornado mais infelizes, ao deixar-nos sedentarizar e escravizar pelo trabalho duro e pesado da agricultura, tudo em nome de mais conforto. A questão tem provocado imensa discussão, não vou tomar partido, assumo antes um conceito criado por K. Kelly há uns anos, o da “inevitabilidade tecnológica”, e que Harari quase aflora, e que nos diz que somos de certo modo impulsionados pela tecnologia, enquanto parte da cultura, a inventar e a inovar. Deste modo não adianta muito questionar se terá sido um erro, já que dificilmente se pode ver como uma escolha da espécie.
Ambas as revoluções foram fruto de uma tecnologia base da comunicação, o ato de contar histórias que sustenta os mitos e as religiões. Foi através deste que pudemos criar imaginários coletivos, capazes de produzir crença e assim solidificar a colaboração na base da confiança uns nos outros. Contudo a uma determinada altura, os mitos e as religiões estagnariam o progresso, nomeadamente pelo seu distanciamento cada vez maior da realidade. Basta olhar para os séculos da idade medieval e o seu resultado em Inquisições religiosas. E é aí que Harari coloca a última revolução, a científica, que transformaria por completo o imaginário e impulsionaria avanços na capacitação da espécie, que antes nunca teriam sido sequer sonhados.
Harari é fortemente dotado na retórica pela narrativa, usa recorrentemente pequenas histórias, que polvilha com imensos factos, e afirma sem dúvidas, o que tem a dizer. Ou seja, partindo do pressuposto que as estruturas narrativas da nossa História são meramente especulativas, Harari faz aquilo que Sagan fazia, assume a sua escolha, e conta a sua história, como se da verdade absoluta se tratasse. Isto é problemático em termos científicos, mas por outro lado, é fundamental em divulgação científica. Não seria possível escrever um livro sobre 70 mil anos de história, se se ponderassem todos os caminhos e variáveis possíveis. O que Harari faz é contar a história, segundo pressupostos lógicos, fundamentados em processos dedutivos, assentes em grandes marcos teóricos.
Um desses marcos é o Evolucionismo. Toda a História de Harari se distancia do mero relatar de factos, da mera exposição do que terá acontecido, já que este se concentra antes em explicar porque aconteceu assim. E fá-lo munido de um grande conjunto de dados provenientes de uma série de disciplinas distintas. Ora o evolucionismo, apesar da sua problemática (não ser testável experimentalmente), acaba por funcionar muitíssimo bem em todo este trabalho, tal como já tinha acontecido com Dutton em “The Art Intinct”. Porque o evolucionismo contribui com um quadro teórico que sustenta um conjunto de preceitos lógicos e respondem de modo científico, ainda que teorizante, a questões que até aqui se enquadrariam no reino do mero mito.
Nesta senda Harari vai acabar por re-rotular muito daquilo que conhecemos, nomeadamente transformando todos os sistemas políticos — comunismo, capitalismo, socialismo, etc. — em religiões substitutas, no sentido em que passaram a ser estas quem dita as nossas condutas. Pelo meio Harari apresenta amiúde rasgos interpretativos soberbos, não totalmente deslocados de outros teóricos especulativos, nomeadamente no campo dos Estudos Culturais. Aproveito para deixar alguns desses rasgos:
Imaginário: Consumismo Romântico
“Even what people take to be their most personal desires are usually programmed by the imagined order. Let’s consider, for example, the popular desire to take a holiday abroad. There is nothing natural or obvious about this. A chimpanzee alpha male would never think of using his power in order to go on holiday into the territory of a neighbouring chimpanzee band. The elite of ancient Egypt spent their fortunes building pyramids and having their corpses mummified, but none of them thought of going shopping in Babylon or taking a skiing holiday in Phoenicia. People today spend a great deal of money on holidays abroad because they are true believers in the myths of romantic consumerism.”Imaginário: Capitalismo
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“Romanticism tells us that in order to make the most of our human potential we must have as many different experiences as we can. ”
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“Consumerism tells us that in order to be happy we must consume as many products and services as possible.”
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“Romanticism, which encourages variety, meshes perfectly with consumerism. Their marriage has given birth to the infinite ‘market of experiences’, on which the modern tourism industry is founded. The tourism industry does not sell flight tickets and hotel bedrooms. It sells experiences.”
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“Like the elite of ancient Egypt, most people in most cultures dedicate their lives to building pyramids. Only the names, shapes and sizes of these pyramids change from one culture to the other. They may take the form, for example, of a suburban cottage with a swimming pool and an evergreen lawn, or a gleaming penthouse with an enviable view. Few question the myths that cause us to desire the pyramid in the first place.”
“Contrary to Aristotle, there is no known biological difference between slaves and free people. Human laws and norms have turned some people into slaves and others into masters. (..)
Most people claim that their social hierarchy is natural and just, while those of other societies are based on false and ridiculous criteria. Modern Westerners are taught to scoff at the idea of racial hierarchy. They are shocked by laws prohibiting blacks to live in white neighbourhoods, or to study in white schools, or to be treated in white hospitals.Imaginário: A Felicidade
But the hierarchy of rich and poor – which mandates that rich people live in separate and more luxurious neighbourhoods, study in separate and more prestigious schools, and receive medical treatment in separate and better-equipped facilities – seems perfectly sensible to many Americans and Europeans. Yet it’s a proven fact that most rich people are rich for the simple reason that they were born into a rich family, while most poor people will remain poor throughout their lives simply because they were born into a poor family.”
“What good was the French Revolution? If people did not become any happier, then what was the point of all that chaos, fear, blood and war? Biologists would never have stormed the Bastille. People think that this political revolution or that social reform will make them happy, but their biochemistry tricks them time and again.”
“There is only one historical development that has real significance. Today, when we finally realise that the keys to happiness are in the hands of our biochemical system, we can stop wasting our time on politics and social reforms, putsches and ideologies, and focus instead on the only thing that can make us truly happy: manipulating our biochemistry. If we invest billions in understanding our brain chemistry and developing appropriate treatments, we can make people far happier than ever before, without any need of revolutions. Prozac, for example, does not change regimes, but by raising serotonin levels it lifts people out of their depression. Nothing captures the biological argument better than the famous New Age slogan: ‘Happiness Begins Within.’ Money, social status, plastic surgery, beautiful houses, powerful positions – none of these will bring you happiness. Lasting happiness comes only from serotonin, dopamine and oxytocin.”Sim, ele está a falar de uma espécie de Soma do “Admirável Mundo Novo”. Mas a seguir diz,
“the findings demonstrate that happiness is not the surplus of pleasant over unpleasant moments. Rather, happiness consists in seeing one’s life in its entirety as meaningful and worthwhile. There is an important cognitive and ethical component to happiness (..) “As Nietzsche put it, if you have a why to live, you can bear almost any how. (..) “Though people in all cultures and eras have felt the same type of pleasures and pains, the meaning they have ascribed to their experiences has probably varied widely (..) medieval people certainly had it rough. However, if they believed the promise of everlasting bliss in the afterlife, they may well have viewed their lives as far more meaningful and worthwhile than modern secular people, who in the long term can expect nothing but complete and meaningless oblivion”
“So our medieval ancestors were happy because they found meaning to life in collective delusions about the afterlife? Yes. As long as nobody punctured their fantasies, why shouldn’t they? As far as we can tell, from a purely scientific viewpoint, human life has absolutely no meaning. Humans are the outcome of blind evolutionary processes that operate without goal or purpose. Our actions are not part of some divine cosmic plan, and if planet Earth were to blow up tomorrow morning, the universe would probably keep going about its business as usual. As far as we can tell at this point, human subjectivity would not be missed. Hence any meaning that people ascribe to their lives is just a delusion.”
“If happiness is based on feeling pleasant sensations, then in order to be happier we need to re-engineer our biochemical system.”
“If happiness is based on feeling that life is meaningful, then in order to be happier we need to delude ourselves more effectively.”
“Is there a third alternative?”
Terão de ler o livro para saber se existe essa terceira alternativa. Resumindo, o mais relevante é como Harari acaba a demonstrar com estes imaginários, o quão somos feitos de ilusões (e não parece estar sozinho a julgar pela última entrevista de Dennett) e o quão frágeis, efémeros e inconstantes somos por oposição a todo nosso escafandro biológico. No último capítulo Harari leva a especulação para o futuro e mostra-nos um possível novo mundo no qual a espécie sapiens desaparece para dar lugar a uma espécie de neo-sapiens. Seremos outros, alterados externamente com próteses computacionais, assim como transformados biologicamente a nível celular e de DNA. É verdade que Harari parece apresentar um discurso algo pessimista, mais ainda quando comparado ao otimismo quase exacerbado de David Deutsch. Mas não deixa de ser um discurso realista, lógico e pela sua enorme eloquência imensamente atrativo.
A propósito da data de publicação. O livro foi publicado pela primeira vez em hebreu em 2011, apesar de Harari dominar o inglês, uma vez que se doutorou em Oxford, o que demonstra que se podem publicar grandes obras noutras línguas que não o inglês. É claro que a obra só se tornaria mundialmente famosa quando foi traduzida para inglês em 2014. Mas não tenhamos ilusões, não foi o inglês a razão do seu sucesso, mas o facto de pessoas famosas e poderosas como Obama, Bill Gates ou Zuckerberg o terem recomendado. Entretanto está já também traduzida para português pela Vogais, desde 2015.
Por último, e interessante mais para académicos, é o modo como surgiu o livro, depois de Harari ter sido obrigado a dar uma cadeira que não era a sua especialidade, História Mundial, sendo ele especialista em História Militar Medieval. Interessante porque mostra como os riscos da mudança implicam a criação de novo. Como também, se estivermos abertos a novas experiências poderemos encontrar novas razões, novos mitos para nos manter a sonhar a vida.
fevereiro 22, 2017
“Possessão”, um thriller poético
Belíssimo “tour de force” literário. “Possessão” é um romance com múltiplas camadas de significação e enquanto tal merece uma análise cuidada por camada. Do meu interesse em literatura, e do que me é mais facilmente acessível, defino três que me surgem de modo evidente — romance mistério, virtuosismo, e sátira académica — mas é claro que um trabalho mais profundo de análise e interpretação literária encontrará outras camadas de relevo. Daqui percebe-se que não estamos perante um simples romance, mas antes uma obra de grande labor. Aliás, não é por acaso a sua premiação com o Man Booker em 1990, mas diga-se que também não é por acaso o reduzido número de leitores, a julgar pelo GoodReads, e pelo facto do livro ter saído em 2008 em Portugal e eu ter adquirido em 2016 ainda uma cópia da sua primeira edição.
A.S. Byatt escreveu um romance académico a partir do seu conhecimento literário mas também com base em conhecimento experiencial da vida académica. Passou mais de metade da sua vida anterior à escrita de “Possessão” a leccionar Literatura Inglesa em diferentes universidades britânicas. O reconhecimento da qualidade do seu labor, pela academia, veio posteriormente à publicação de “Possessão” na forma de mais de uma dezena de Doutoramentos Honorários.
Romance mistério
A história acerca-se de dois investigadores em literatura, Roland Mitchell e Maud Bailey, cada um especialista no estudo do seu poeta vitoriano — Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte — que por meio da investigação de diferentes documentos vão descobrir algo completamente novo. Enquanto poetas mortos há muito, acreditava-se já tudo saber sobre os mesmos, quando a ponta do véu de uma potencial conexão entre ambos se levanta, não apenas a curiosidade por saber mais se apresenta, como muitas das teorias até aí tidas sobre cada um destes poetas se fragilizam, pondo em questão muito do conhecimento existente.
Acredito que Byatt, enquanto especialista em literatura, se tenha questionado sobre a estrutura a adotar para a escrita de uma tal premissa. Muito provavelmente percebendo a audiência limitada de uma história assente em minúcias de investigadores académicos, terá decidido adotar uma estrutura forte em termos de enredo, baseada no mistério e suspense, capaz de segurar o interesse do leitor geral. Para isto recriou a base clássica do romance impossível, condimentou-o com todos os ingredientes que nos fazem salivar e agitou tudo na nossa frente, obrigando-nos a ir atrás, desejosos por saber mais. Como se não bastasse, não se limitou a um foco romanesco, colocou dois poetas no século XIX, e dois investigadores no século XX, saltitando entre uns e outros, para que nunca nos faltasse ímpeto. E consegue-o, apesar do tema delimitado, apesar de uma abordagem estética pós-moderna, nunca o interesse por continuar a ler desaparece, tendo mesmo fases de alguma agudez em que não conseguimos pousar o livro.
Virtuosismo
Falei acima de estrutura porque é nela que Byatt exibe as suas maiores qualidades. Servindo-se do clássico discurso de mistério como dorso de suporte ao todo, são adotados múltiplos outros formatos discursivos para nos levar até ao cerne do universo criado: poético, confessional, intimista, académico. O texto em prosa serve de cola geral, mas o mesmo é continuamente ao longo de todo o livro, entrecortado por: textos de poesia; textos de cartas íntimas; textos não publicados de diários; textos de jornais; textos de artigos científicos. Por sua vez o próprio narrador vai saltitando no tempo (séculos XIX e XX), no espaço, entre personagens, e entre pontos de vista. É verdadeiramente virtuosa a estrutura, a complexidade que se entrosa para criar uma teia, que de tão perfeitamente tecida é a todo o momento completamente compreensível e digestível.
Mas não é só na estrutura que Byatt surpreende, todos estes textos, todas estas vozes, todos os pontos de vista, são criados por si. Byatt pretende criar a ideia de textos pré-existentes, que vão sendo encontrados, à semelhança da tradicional narrativa detetivesca, mas aqui esses textos não são apenas referenciados, ou apropriados pela prosa, nem são tão pouco citados, retirados de outras obras. Para chegar àquilo em que resulta o todo desta obra, Byatt teve de criar universos próprios e estéticas para dois poetas vitorianos, os vários textos de jornal vitorianos, diários intimistas por múltiplas vozes, cartas e respostas de cartas, cada uma dotada de identidade própria. Temos múltiplas histórias dentro de múltiplas histórias, mas todas trabalham para uma mesma e única grande história, sendo este mesmo trabalho de união do todo, seguindo a abordagem de coerência causal, a “unidade de ação” de Aristoteles, que faz com que o final do livro seja tão gratificante, impactante, verdadeiramente catártico.
Sátira académica
Se os dois primeiros níveis são de grande qualidade, é aqui que me sinto mais em casa, e desse modo quero dividir este ponto em dois subpontos: a crítica das rotinas e rituais dos académicos tão próximas da minha realidade diária; e a crítica aos modelos de fazer ciência.
Relativamente ao mundo humano que habita a academia temos uma crítica certeira, começando pelo protagonista que apesar de fazer um bom trabalho, e ter excelentes capacidades, não consegue atingir uma posição estável no seio da universidade por força da sua inabilidade social. Temos assim que as Universidades apesar de propalarem uma cultura de mérito, o chico-espertismo consegue ainda vingar. Por outro lado, a guerra entre os dois professores seniores, britânico e americano, especialistas no poeta central do livro, é também muito interessante pelo modo como espelha a diferença entre as academias americana e a europeia. Do lado Europeu, o interesse cultural, o interesse de uma nação, povo e acima de tudo do bem comunitário. Do lado americano, o interesse económico e individualista. A força do dinheiro que tudo pode, tudo consegue.
O livro é de 1990 e reporta uma visão ainda distante do que se vive hoje, porque se nesse altura se olhava para os EUA com desdém e crítica, esse olhar deu uma volta de 180º, e hoje toda a academia europeia olha para a academia americana em busca de modelos a copiar e imitar. Hoje os gestores e políticos que regem as universidades europeias nada mais anseiam do que o poder financeiro. Daí, que o conhecimento tenha sofrido tantos revés, e muito daquilo que hoje se faz em termos de investigação acaba por vezes sendo bastante questionável.
Mas a crítica à academia é cíclica, ou melhor dizendo contínua, nunca estamos bem, e ainda bem. E por isso em “Possessão” a crítica de Byatt, para além dos pontos mencionados, foca-se num problema iniciado nos anos 1970, nomeadamente ao nível de domínios das Humanidades, com toda a componente de áreas iniciadas por “Estudos”: de cinema, de literatura, feministas, culturais. Marcados pela ausência de um domínio de psicologia, ainda subdesenvolvido, dominado por uma psicanálise que de científico tinha pouco, e de esotérico tinha muito, vão começar a fazer surgir “verdades” assentes em teorizações fantásticas de Freud, Lacan, entre outros. Como consequência, a academia começa a perder credibilidade, mas o pior é que em vez de recuar, acelera e atira-se para o precipício por meio daquilo que chamaria mais tarde de pós-modernismo, que nos trataria até ao momento atual, o da pós-verdade.
A crítica do livro é mais dirigida aos Estudos Feministas, mas é um claro ataque aos seus métodos, que não eram seu exclusivo, e está fortemente presente no cerne da obra, como choque mesmo, podendo passar despercebida a quem está distante destes assuntos. Assim, ao longo de toda a jornada encetada por Maud e Roland, existe a todo o momento uma preocupação com a verdade na forma de prova, com a demonstração efetiva do que teria acontecido no século anterior entre aqueles dois poetas, uma tentativa de buscar evidências que tornem claro o que se pretende afirmar de novo. E é aqui que surge a graça, o riso, já que muito do conhecimento detido sobre Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte é de origem interpretativa, pejado de simbolismos e vieses de cada investigador, sendo agora postos em cheque e mesmo destronados pelo novo conhecimento. Mais se poderia ainda dizer, nomeadamente sobre a crença e descrença no espiritismo que surge a meio do livro, com Ash e LaMotte colocados de lados distintos.
Por fim, não quero deixar de destacar uma última camada, que não analiso porque daria todo um texto próprio, e que o livro nos oferece a partir do seu título. A “Possessão” surge em múltiplas formas ao longo de todo o livro, e pode ser lida em conexão com qualquer um dos pontos acima discutidos, contudo para mim o foco esteve ligado à ideia de autenticidade. Desde o início, aquilo que conduz Roland a, na biblioteca, ficar na posse dos dois esboços de cartas, é o modo como ele define o que sente, a sensação de tocar num papel tocado e escrito pelo próprio Ash. A posse é depois definida de modos diferentes, consoante o personagem, mas existe um fascínio com essa autenticidade, que por sua vez se liga com a ideia de prova e existência. Este tema daria assim para discutir a nossa efemeridade e por outro lado a extensibilidade da mesma em remanescentes externos de garante de perenidade.
A.S. Byatt escreveu um romance académico a partir do seu conhecimento literário mas também com base em conhecimento experiencial da vida académica. Passou mais de metade da sua vida anterior à escrita de “Possessão” a leccionar Literatura Inglesa em diferentes universidades britânicas. O reconhecimento da qualidade do seu labor, pela academia, veio posteriormente à publicação de “Possessão” na forma de mais de uma dezena de Doutoramentos Honorários.
Romance mistério
A história acerca-se de dois investigadores em literatura, Roland Mitchell e Maud Bailey, cada um especialista no estudo do seu poeta vitoriano — Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte — que por meio da investigação de diferentes documentos vão descobrir algo completamente novo. Enquanto poetas mortos há muito, acreditava-se já tudo saber sobre os mesmos, quando a ponta do véu de uma potencial conexão entre ambos se levanta, não apenas a curiosidade por saber mais se apresenta, como muitas das teorias até aí tidas sobre cada um destes poetas se fragilizam, pondo em questão muito do conhecimento existente.
Paisagem de Yorkshire, onde acontecem algumas sequências centrais do livro.
Acredito que Byatt, enquanto especialista em literatura, se tenha questionado sobre a estrutura a adotar para a escrita de uma tal premissa. Muito provavelmente percebendo a audiência limitada de uma história assente em minúcias de investigadores académicos, terá decidido adotar uma estrutura forte em termos de enredo, baseada no mistério e suspense, capaz de segurar o interesse do leitor geral. Para isto recriou a base clássica do romance impossível, condimentou-o com todos os ingredientes que nos fazem salivar e agitou tudo na nossa frente, obrigando-nos a ir atrás, desejosos por saber mais. Como se não bastasse, não se limitou a um foco romanesco, colocou dois poetas no século XIX, e dois investigadores no século XX, saltitando entre uns e outros, para que nunca nos faltasse ímpeto. E consegue-o, apesar do tema delimitado, apesar de uma abordagem estética pós-moderna, nunca o interesse por continuar a ler desaparece, tendo mesmo fases de alguma agudez em que não conseguimos pousar o livro.
Virtuosismo
Falei acima de estrutura porque é nela que Byatt exibe as suas maiores qualidades. Servindo-se do clássico discurso de mistério como dorso de suporte ao todo, são adotados múltiplos outros formatos discursivos para nos levar até ao cerne do universo criado: poético, confessional, intimista, académico. O texto em prosa serve de cola geral, mas o mesmo é continuamente ao longo de todo o livro, entrecortado por: textos de poesia; textos de cartas íntimas; textos não publicados de diários; textos de jornais; textos de artigos científicos. Por sua vez o próprio narrador vai saltitando no tempo (séculos XIX e XX), no espaço, entre personagens, e entre pontos de vista. É verdadeiramente virtuosa a estrutura, a complexidade que se entrosa para criar uma teia, que de tão perfeitamente tecida é a todo o momento completamente compreensível e digestível.
Mas não é só na estrutura que Byatt surpreende, todos estes textos, todas estas vozes, todos os pontos de vista, são criados por si. Byatt pretende criar a ideia de textos pré-existentes, que vão sendo encontrados, à semelhança da tradicional narrativa detetivesca, mas aqui esses textos não são apenas referenciados, ou apropriados pela prosa, nem são tão pouco citados, retirados de outras obras. Para chegar àquilo em que resulta o todo desta obra, Byatt teve de criar universos próprios e estéticas para dois poetas vitorianos, os vários textos de jornal vitorianos, diários intimistas por múltiplas vozes, cartas e respostas de cartas, cada uma dotada de identidade própria. Temos múltiplas histórias dentro de múltiplas histórias, mas todas trabalham para uma mesma e única grande história, sendo este mesmo trabalho de união do todo, seguindo a abordagem de coerência causal, a “unidade de ação” de Aristoteles, que faz com que o final do livro seja tão gratificante, impactante, verdadeiramente catártico.
Sátira académica
Se os dois primeiros níveis são de grande qualidade, é aqui que me sinto mais em casa, e desse modo quero dividir este ponto em dois subpontos: a crítica das rotinas e rituais dos académicos tão próximas da minha realidade diária; e a crítica aos modelos de fazer ciência.
Relativamente ao mundo humano que habita a academia temos uma crítica certeira, começando pelo protagonista que apesar de fazer um bom trabalho, e ter excelentes capacidades, não consegue atingir uma posição estável no seio da universidade por força da sua inabilidade social. Temos assim que as Universidades apesar de propalarem uma cultura de mérito, o chico-espertismo consegue ainda vingar. Por outro lado, a guerra entre os dois professores seniores, britânico e americano, especialistas no poeta central do livro, é também muito interessante pelo modo como espelha a diferença entre as academias americana e a europeia. Do lado Europeu, o interesse cultural, o interesse de uma nação, povo e acima de tudo do bem comunitário. Do lado americano, o interesse económico e individualista. A força do dinheiro que tudo pode, tudo consegue.
University of London
O livro é de 1990 e reporta uma visão ainda distante do que se vive hoje, porque se nesse altura se olhava para os EUA com desdém e crítica, esse olhar deu uma volta de 180º, e hoje toda a academia europeia olha para a academia americana em busca de modelos a copiar e imitar. Hoje os gestores e políticos que regem as universidades europeias nada mais anseiam do que o poder financeiro. Daí, que o conhecimento tenha sofrido tantos revés, e muito daquilo que hoje se faz em termos de investigação acaba por vezes sendo bastante questionável.
Mas a crítica à academia é cíclica, ou melhor dizendo contínua, nunca estamos bem, e ainda bem. E por isso em “Possessão” a crítica de Byatt, para além dos pontos mencionados, foca-se num problema iniciado nos anos 1970, nomeadamente ao nível de domínios das Humanidades, com toda a componente de áreas iniciadas por “Estudos”: de cinema, de literatura, feministas, culturais. Marcados pela ausência de um domínio de psicologia, ainda subdesenvolvido, dominado por uma psicanálise que de científico tinha pouco, e de esotérico tinha muito, vão começar a fazer surgir “verdades” assentes em teorizações fantásticas de Freud, Lacan, entre outros. Como consequência, a academia começa a perder credibilidade, mas o pior é que em vez de recuar, acelera e atira-se para o precipício por meio daquilo que chamaria mais tarde de pós-modernismo, que nos trataria até ao momento atual, o da pós-verdade.
A crítica do livro é mais dirigida aos Estudos Feministas, mas é um claro ataque aos seus métodos, que não eram seu exclusivo, e está fortemente presente no cerne da obra, como choque mesmo, podendo passar despercebida a quem está distante destes assuntos. Assim, ao longo de toda a jornada encetada por Maud e Roland, existe a todo o momento uma preocupação com a verdade na forma de prova, com a demonstração efetiva do que teria acontecido no século anterior entre aqueles dois poetas, uma tentativa de buscar evidências que tornem claro o que se pretende afirmar de novo. E é aqui que surge a graça, o riso, já que muito do conhecimento detido sobre Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte é de origem interpretativa, pejado de simbolismos e vieses de cada investigador, sendo agora postos em cheque e mesmo destronados pelo novo conhecimento. Mais se poderia ainda dizer, nomeadamente sobre a crença e descrença no espiritismo que surge a meio do livro, com Ash e LaMotte colocados de lados distintos.
Por fim, não quero deixar de destacar uma última camada, que não analiso porque daria todo um texto próprio, e que o livro nos oferece a partir do seu título. A “Possessão” surge em múltiplas formas ao longo de todo o livro, e pode ser lida em conexão com qualquer um dos pontos acima discutidos, contudo para mim o foco esteve ligado à ideia de autenticidade. Desde o início, aquilo que conduz Roland a, na biblioteca, ficar na posse dos dois esboços de cartas, é o modo como ele define o que sente, a sensação de tocar num papel tocado e escrito pelo próprio Ash. A posse é depois definida de modos diferentes, consoante o personagem, mas existe um fascínio com essa autenticidade, que por sua vez se liga com a ideia de prova e existência. Este tema daria assim para discutir a nossa efemeridade e por outro lado a extensibilidade da mesma em remanescentes externos de garante de perenidade.
janeiro 21, 2017
"Pre-Suasion: A Revolutionary Way to Influence and Persuade" (2016)
Nos anos 1980, Cialdini, um académico das áreas da Psicologia e do Marketing, lançou um dos livros mais relevantes sobre persuasão — "Influence" (1984). Nesse, apontava seis grandes princípios determinantes da persuasão — 1. Reciprocidade, 2. Prova Social, 3. Cometimento e Consistência, 4. Simpatia, 5. Autoridade e 6. Escassez. Foram entretanto precisos mais de 30 anos para Cialdini se dispôr a escrever um novo livro, porque segundo ele, não tinha encontrado nada de novo para dizer para além do que já tinha dito. O novo livro, "Pre-Suasion", apresenta-se como um pequeno trocadilho da palavra persuasão, e define em si mesmo o novo conceito que tem para nos apresentar.
Na realidade, o novo conceito que Cialdini nos traz neste livro tem pouco de revolucionário, já que se baseia em dois grandes princípios do Viés Cognitivo, apresentados por Kahneman no seu opus “Pensar, Depressa e Devagar” (2011): “ancoragem” e “priming”. A ancoragem dá conta do viés que possuímos e que tende a conduzir as nossas decisões em função da informação que nos é oferecida (ex. após pensar em números grandes cria-se uma tendência para aceitar valores maiores para produtos). Por sua vez o priming consiste num processo de associação de distintas memórias que partilham semelhanças (ex. pensar em pessoas idosas pode conduzir as pessoas a reduzir a velocidade; pensar em atletas que se esforçam muito pode conduzir à criação de maior a resiliência).
O que Cialdini faz então é potenciar estes vieses na comunicação, apresentando neste novo livro uma nova abordagem comunicativa baseada na manipulação do tempo imediatamente anterior à comunicação da mensagem. Nesse tempo, defende então a introdução de variáveis de ancoragem ou priming, que conduzam à criação de uma predisposição na audiência para aceitarem o que se vai dizer a seguir. Trata-se assim de uma preparação, ou modelação, para a mensagem. Podemos pensar em algo parecido como os genéricos cinematográficos, em que se modela o estado emocional dos espectadores para o filme que se vai seguir.
O desafio desta abordagem
A pre-suasão de Cialdini assenta na arte de capturar e conduzir a atenção dos recetores, mas para que funcione é necessário conseguir atingir a atenção dos recetores. Ou seja, se aquilo que definirmos como estímulos de ancoragem e priming não falar aos recetores, o efeito será nulo. Por isso conhecer este processo, em si, pode ser interessante, mas nas mãos de alguém que não trabalhe devidamente a mensagem e o público, de muito pouco valerá. Para ajudar no trilhar do caminho, Cialdini propõe um conjunto de estratégias baseadas em conceitos, de teor mais universal, que podem contribuir para o desenhar de estratégias de pre-suasão.
6 Comandos de Atenção
* O Sexual *
Um dos elementos mais relevantes de toda a sociedade no que toca à captação de atenção, já que está subjacente a toda a origem das artes de persuasão, sendo utilizado por todos aqueles que produzem arte, entretenimento ou marketing. Contudo o sexo não funciona de forma igual para tudo. Se assim fosse não teríamos apenas 8% dos produtos a recorrerem ao mesmo, como nos diz Cialdini. A título de exemplo o apelo sexual funciona muito bem com a moda ou os perfumes, mas funciona mal com refrigerantes ou detergentes. Ou seja, “In any situation, people are dramatically more likely to pay attention to and be influenced by stimuli that fit the goal they have for that situation.” (Loc. 1141)
* A Ameaça *
Nada funciona melhor quando se quer fazer alguém pensar como nós do que definir uma ameaça à forma de pensar dessa outra pessoa. A necessidade de segurança é essencial ao ser humano. Basta ver a transformação da sociedade, tudo o que passou a aceitar em face da ameaça terrorista pós 11 Setembro. A título de exemplo, a maior parte das campanhas sociais trabalham sob este prisma, desde as campanhas anti-tabaco, com as fotografias devastadoras nos maços de tabaco, aos anúncios publicitários que mostram a violência doméstica, de guerra, ou outras. A ameaça tem ainda a capacidade de unir os seres humanos, de os levar a sentir necessidade de se aproximar do seu grupo, o problema é que isso também produz o efeito de rejeição do outro.
* A Diferença *
Talvez o maior marcador de atenção que possamos desenvolver, não é por acaso que a palavra de ordem é o Novo, e que a nossa sociedade se dirigiu na última década desenfreadamente para o mundo da Inovação e da Criatividade. A diferença marca o interesse de todos nós. A base desta relevância está no facto de que a ausência de diferença conduz à estagnação e redução de velocidade de processamento, logo redução da atenção. Evolucionariamente estamos treinados para ignorar o normal, relaxar, até que algo diferente surja, e isso nos volte a por em modo ativo. Contudo, é também obviamente um dos comandos mais difíceis de trabalhar.
* A Auto-Relevância *
Mais um marcador poderoso. O ser humano é por razões de sobrevivência auto-centrado — “primeiro Eu, depois Eu, e depois talvez o Outro”. Daí o surgimento nas últimas décadas dos discursos sobre as preferências pessoais, do “você merece mais”. Contudo, tal como o comando anterior, é difícil de construir, muito baseado nas particularidades de cada indivíduo.
* O Não-acabado *
Um princípio roubado à Gestalt, que esta começou por apresentar no domínio visual, pelo facto de necessitarmos de completar tudo o que se encontra incompleto. Este princípio levaria à criação de um outro que ficou conhecido como Efeito de Zeigarnik, e que defende que as pessoas têm tendência a recordar melhor aquilo que se queda incompleto. Cialdini fala neste ponto de uma técnica do processo de escrita muito interessante, e que consiste em parar a escrita a meio de uma ideia, em vez de a completar e fechar. Deste modo, ficamos a pensar na ideia e acabamos por ter um estímulo adicional para voltar ao processo de escrita.
* O Misterioso *
Este princípio não se diferencia propriamente do anterior, já que não é mais do que a particularização narrativa do anterior. Ou seja, Cialdini fala da criação de mistério em redor de um assunto para manter uma audiência (ex. alunos numa aula) ao longo de toda a duração do discurso. Ora, este género de contar histórias, mistério e thriller, define-se por um truque simples que assenta na criação de uma necessidade de conhecer uma resposta, algo que funciona como cenoura para a audiência. Mas esta resposta não é mais do que a chave que fecha uma ideia não-acabada apresentada no início de um livro, filme ou da tal aula.
No final do livro Cialdini apresenta uma espécie de defesa de um potencial novo princípio de Influência, a juntar aos 6 definidos no seu anterior livro, que seria o de “Unidade”. Apesar de considerar interessante, julgo que o princípio não acrescenta muito ao princípio de “Simpatia”. Ou seja, Cialdini defende que a “Unidade” providenciada pelo sangue, família, região, ou qualquer tipo de relação que una os indivíduos conduz as pessoas a favorecer essas mesmas pessoas. Ora isto é exatamente o mesmo que acontece no princípio de Simpatia (“likeness”), que nos diz que tendemos a favorecer mais aqueles de quem mais gostamos. Embora possamos aqui falar, por exemplo, do ato de defender pessoas da nossa família — irmãos, filhos, pais — mesmo que não gostemos assim tanto deles. Contudo esta definição de não gostar, e do sangue se sobrepôr à amizade, não pode ser vista de modo simplista, o gostar ou não gostar não se define como mero preto e branco.
Para fechar, é um livro interessante, mas que para ser totalmente compreendido, e poder assacar o todo do que ele entrega, exige o conhecimento do livro anterior. Os princípios de pre-suasão não devem, não apenas por questões éticas, ser utilizados de modo indiscriminado, sem um conhecimento mais aprofundado da comunicação persuasiva e dos viés cognitivos que nos definem enquanto seres humanos.
Na realidade, o novo conceito que Cialdini nos traz neste livro tem pouco de revolucionário, já que se baseia em dois grandes princípios do Viés Cognitivo, apresentados por Kahneman no seu opus “Pensar, Depressa e Devagar” (2011): “ancoragem” e “priming”. A ancoragem dá conta do viés que possuímos e que tende a conduzir as nossas decisões em função da informação que nos é oferecida (ex. após pensar em números grandes cria-se uma tendência para aceitar valores maiores para produtos). Por sua vez o priming consiste num processo de associação de distintas memórias que partilham semelhanças (ex. pensar em pessoas idosas pode conduzir as pessoas a reduzir a velocidade; pensar em atletas que se esforçam muito pode conduzir à criação de maior a resiliência).
O que Cialdini faz então é potenciar estes vieses na comunicação, apresentando neste novo livro uma nova abordagem comunicativa baseada na manipulação do tempo imediatamente anterior à comunicação da mensagem. Nesse tempo, defende então a introdução de variáveis de ancoragem ou priming, que conduzam à criação de uma predisposição na audiência para aceitarem o que se vai dizer a seguir. Trata-se assim de uma preparação, ou modelação, para a mensagem. Podemos pensar em algo parecido como os genéricos cinematográficos, em que se modela o estado emocional dos espectadores para o filme que se vai seguir.
“If you want people to buy a box of expensive chocolates, first arrange for them to write down a number that’s much larger than the price of the chocolates.
If you want people to choose a bottle of French wine, first expose them to French background music before they decide.
If you want people to agree to try an untested product, first inquire whether they consider themselves adventurous.
If you want to convince people to select a highly popular item, we can begin by showing them a scary movie.
If you want people to choose a more expensive but more comfy option, first show them fluffy clouds
If you want people to feel warmly toward you, hand them a hot drink.
If you want people to be more helpful to you, first have them look at photos of individuals standing close together.
If you want people to be more achievement oriented, first provide them with an image of a runner winning a race.
If you want people to make careful assessments, first show them a picture of Auguste Rodin’s The Thinker.” in "Pre-suasion" (2016:Loc. 2338)
O desafio desta abordagem
A pre-suasão de Cialdini assenta na arte de capturar e conduzir a atenção dos recetores, mas para que funcione é necessário conseguir atingir a atenção dos recetores. Ou seja, se aquilo que definirmos como estímulos de ancoragem e priming não falar aos recetores, o efeito será nulo. Por isso conhecer este processo, em si, pode ser interessante, mas nas mãos de alguém que não trabalhe devidamente a mensagem e o público, de muito pouco valerá. Para ajudar no trilhar do caminho, Cialdini propõe um conjunto de estratégias baseadas em conceitos, de teor mais universal, que podem contribuir para o desenhar de estratégias de pre-suasão.
6 Comandos de Atenção
* O Sexual *
Um dos elementos mais relevantes de toda a sociedade no que toca à captação de atenção, já que está subjacente a toda a origem das artes de persuasão, sendo utilizado por todos aqueles que produzem arte, entretenimento ou marketing. Contudo o sexo não funciona de forma igual para tudo. Se assim fosse não teríamos apenas 8% dos produtos a recorrerem ao mesmo, como nos diz Cialdini. A título de exemplo o apelo sexual funciona muito bem com a moda ou os perfumes, mas funciona mal com refrigerantes ou detergentes. Ou seja, “In any situation, people are dramatically more likely to pay attention to and be influenced by stimuli that fit the goal they have for that situation.” (Loc. 1141)
* A Ameaça *
Nada funciona melhor quando se quer fazer alguém pensar como nós do que definir uma ameaça à forma de pensar dessa outra pessoa. A necessidade de segurança é essencial ao ser humano. Basta ver a transformação da sociedade, tudo o que passou a aceitar em face da ameaça terrorista pós 11 Setembro. A título de exemplo, a maior parte das campanhas sociais trabalham sob este prisma, desde as campanhas anti-tabaco, com as fotografias devastadoras nos maços de tabaco, aos anúncios publicitários que mostram a violência doméstica, de guerra, ou outras. A ameaça tem ainda a capacidade de unir os seres humanos, de os levar a sentir necessidade de se aproximar do seu grupo, o problema é que isso também produz o efeito de rejeição do outro.
* A Diferença *
Talvez o maior marcador de atenção que possamos desenvolver, não é por acaso que a palavra de ordem é o Novo, e que a nossa sociedade se dirigiu na última década desenfreadamente para o mundo da Inovação e da Criatividade. A diferença marca o interesse de todos nós. A base desta relevância está no facto de que a ausência de diferença conduz à estagnação e redução de velocidade de processamento, logo redução da atenção. Evolucionariamente estamos treinados para ignorar o normal, relaxar, até que algo diferente surja, e isso nos volte a por em modo ativo. Contudo, é também obviamente um dos comandos mais difíceis de trabalhar.
* A Auto-Relevância *
Mais um marcador poderoso. O ser humano é por razões de sobrevivência auto-centrado — “primeiro Eu, depois Eu, e depois talvez o Outro”. Daí o surgimento nas últimas décadas dos discursos sobre as preferências pessoais, do “você merece mais”. Contudo, tal como o comando anterior, é difícil de construir, muito baseado nas particularidades de cada indivíduo.
* O Não-acabado *
Um princípio roubado à Gestalt, que esta começou por apresentar no domínio visual, pelo facto de necessitarmos de completar tudo o que se encontra incompleto. Este princípio levaria à criação de um outro que ficou conhecido como Efeito de Zeigarnik, e que defende que as pessoas têm tendência a recordar melhor aquilo que se queda incompleto. Cialdini fala neste ponto de uma técnica do processo de escrita muito interessante, e que consiste em parar a escrita a meio de uma ideia, em vez de a completar e fechar. Deste modo, ficamos a pensar na ideia e acabamos por ter um estímulo adicional para voltar ao processo de escrita.
* O Misterioso *
Este princípio não se diferencia propriamente do anterior, já que não é mais do que a particularização narrativa do anterior. Ou seja, Cialdini fala da criação de mistério em redor de um assunto para manter uma audiência (ex. alunos numa aula) ao longo de toda a duração do discurso. Ora, este género de contar histórias, mistério e thriller, define-se por um truque simples que assenta na criação de uma necessidade de conhecer uma resposta, algo que funciona como cenoura para a audiência. Mas esta resposta não é mais do que a chave que fecha uma ideia não-acabada apresentada no início de um livro, filme ou da tal aula.
No final do livro Cialdini apresenta uma espécie de defesa de um potencial novo princípio de Influência, a juntar aos 6 definidos no seu anterior livro, que seria o de “Unidade”. Apesar de considerar interessante, julgo que o princípio não acrescenta muito ao princípio de “Simpatia”. Ou seja, Cialdini defende que a “Unidade” providenciada pelo sangue, família, região, ou qualquer tipo de relação que una os indivíduos conduz as pessoas a favorecer essas mesmas pessoas. Ora isto é exatamente o mesmo que acontece no princípio de Simpatia (“likeness”), que nos diz que tendemos a favorecer mais aqueles de quem mais gostamos. Embora possamos aqui falar, por exemplo, do ato de defender pessoas da nossa família — irmãos, filhos, pais — mesmo que não gostemos assim tanto deles. Contudo esta definição de não gostar, e do sangue se sobrepôr à amizade, não pode ser vista de modo simplista, o gostar ou não gostar não se define como mero preto e branco.
Para fechar, é um livro interessante, mas que para ser totalmente compreendido, e poder assacar o todo do que ele entrega, exige o conhecimento do livro anterior. Os princípios de pre-suasão não devem, não apenas por questões éticas, ser utilizados de modo indiscriminado, sem um conhecimento mais aprofundado da comunicação persuasiva e dos viés cognitivos que nos definem enquanto seres humanos.
novembro 10, 2016
“Austerlitz” (2001)
Tinha talvez demasiadas expetativas, tinha lido algumas notas sobre o modo como Sebald trabalha as memórias, as fronteiras entre o real e o imaginado, entre a ficção e não ficção, e ao entrar em “Austerlitz”, apesar de ver tudo isso, não o senti. O discurso apesar de erudito e fluído, cria uma sessão de prisão, de repetição, sem movimento, como se nunca saísse do mesmo lugar...
Reconheço que o trabalho é original, que existe aqui um esforço, mais académico mas talvez por isso menos emotivo, no sentido em que tudo parece demasiado refletido, pensado para produzir um determinado efeito, mais como se o livro fosse desenhado e não tivesse brotado criativamente. Esta minha crítica, pode não fazer muito sentido, já que muitas obras nascem desta forma, nomeadamente as mais complexas, contudo neste caso, sinto que esta estrutura pesa na leitura, que o livro não consegue ser suficientemente orgânico para se dar a uma leitura tradicional, acabando por nos obrigar mais a uma leitura em modo de estudo.
Os livros de Sebald são fruto de um desencantamento com a academia, cansado de publicar trabalhos académicos, que pouco ou nenhum impacto tinham nos estudos literários, resolveu começar a testar as suas ideias na criação de obras literárias. O interessante em Sebald é que ele não cria uma divisão clara entre o seu trabalho académico e ficcional, ele acaba por desenvolver antes uma nova técnica para fundir o real com o ficcional. Tanto que é o próprio Sebald a dizer que o seu trabalho é do tipo “ficção documental”, o que em literatura é mais difícil de aceitar, do que por exemplo no cinema. O cinema pela sua essência colada à fotografia, cópia do real, sempre se digladiou entre o real e o ficcional.
É claro que o trabalho de Sebald, e a originalidade, não se esgotam na junção de imagens e texto, aliás nesse caso concreto existe já toda uma enorme tradição de livros ilustrados, e talvez por existir toda essa tradição, Sebald não se limita, nunca, a usar as imagens como ilustrativas do texto. O modo como ele cola as imagens é, diria eu, algo subliminar. Ou seja, as imagens não são muito claras, nem o pretendem ser, elas como que servem apenas de “alimento” ao texto, sem fechar demasiado a sua leitura. Por outro lado o texto, e o seu contorno circunspecto e ocluso, de que falava no início, serve-se das imagens para ampliar o seu sentido. Sebald, cria uma espécie de círculo, ou elipse, entre o texto e as imagens, que acaba por contribuir para a intensificação dessa indiferenciação entre o ficcional e não-ficcional.
Esta construção claramente serve o grande propósito de Sebald, de trabalhar imagens presentes nas memórias, por natureza difusas, com falta de evidências e muitas dúvidas. Quantas vezes demos por nós na dúvida se algo era uma memória real, ou se era algo imaginado. Isto é tanto mais verdade com memórias abaixo dos 5 anos, que é o foco deste livro. As que tenho dessas alturas, foram, e tenho hoje essa quase certeza, implantadas pela repetição de histórias dos meus pais, junto com meia-dúzia de fotografias que sobreviveram desses tempos. Por isso quando reflito sobre esses tempos, acabo por me questionar muitas vezes, se estou verdadeiramente a recordar algo que vivi, ou antes, algo que construí mentalmente a partir de imagens e histórias.
Se no meu caso, consigo facilmente distinguir as memórias que tenho anteriores à idade dos 6 anos, porque vivia noutro país, no caso de Austerlitz isso é bem mais gritante porque não só vivia noutro país, como vivia aí com os seus pais verdadeiros, tendo depois disso passado a viver com pais adotivos. E é isto que motiva a viagem nas memórias de Austerlitz, tentar recuperar os pais pelas memórias, visitando de novos os lugares, procurando impressões perdidas nas paisagens, nos lugares, nas pessoas que ainda aí se mantêm. Como se não bastasse, essas memórias vão cruzar-se com o tempo do início da Segunda Guerra Mundial, e aquilo que Austerlitz acaba por descobrir sobre os seus pais, as suas origens, é desolador, aqui o livro por momentos assume um pendor mais tradicional, com um enredo movido por eventos de descoberta, claramente objetivando produzir em nós algumas das emoções mais fortes da leitura.
Reconheço que o trabalho é original, que existe aqui um esforço, mais académico mas talvez por isso menos emotivo, no sentido em que tudo parece demasiado refletido, pensado para produzir um determinado efeito, mais como se o livro fosse desenhado e não tivesse brotado criativamente. Esta minha crítica, pode não fazer muito sentido, já que muitas obras nascem desta forma, nomeadamente as mais complexas, contudo neste caso, sinto que esta estrutura pesa na leitura, que o livro não consegue ser suficientemente orgânico para se dar a uma leitura tradicional, acabando por nos obrigar mais a uma leitura em modo de estudo.
Os livros de Sebald são fruto de um desencantamento com a academia, cansado de publicar trabalhos académicos, que pouco ou nenhum impacto tinham nos estudos literários, resolveu começar a testar as suas ideias na criação de obras literárias. O interessante em Sebald é que ele não cria uma divisão clara entre o seu trabalho académico e ficcional, ele acaba por desenvolver antes uma nova técnica para fundir o real com o ficcional. Tanto que é o próprio Sebald a dizer que o seu trabalho é do tipo “ficção documental”, o que em literatura é mais difícil de aceitar, do que por exemplo no cinema. O cinema pela sua essência colada à fotografia, cópia do real, sempre se digladiou entre o real e o ficcional.
Aliás, repare-se como Sebald vai exatamente buscar a fotografia para intensificar essa sua necessidade de real. A presença de fotografias no texto, é uma das coisas que mais gostei neste livro, já que existe uma espécie de pavor do mundo literário face às imagens, o que até percebo. Se a imagem pode ampliar o símbolo texto, no sentido em que nos ajuda a ver o que está escrito, ela tem um outro lado, pernicioso, que é o de encurtar e encerrar o processo imaginativo do leitor. Ou seja, a imagem cola rostos específicos, elementos visuais concretos, ao texto, que impossibilitam o leitor de criar os seus próprios. Isto no fundo é a velha discussão entre o poder do texto e da imagem, ambos são imensamente relevantes, mas possuem funções e propriedades narrativas muito distintas. E nesse sentido, quando Sebald opta por trabalhar com fotografias de forma tão abundante no livro, acaba por criar uma tensão na leitura, entre os momentos de texto que nos libertam para imaginar o mundo de Austerlitz, e as fotografias, que nos aprisionam num mundo específico.
É claro que o trabalho de Sebald, e a originalidade, não se esgotam na junção de imagens e texto, aliás nesse caso concreto existe já toda uma enorme tradição de livros ilustrados, e talvez por existir toda essa tradição, Sebald não se limita, nunca, a usar as imagens como ilustrativas do texto. O modo como ele cola as imagens é, diria eu, algo subliminar. Ou seja, as imagens não são muito claras, nem o pretendem ser, elas como que servem apenas de “alimento” ao texto, sem fechar demasiado a sua leitura. Por outro lado o texto, e o seu contorno circunspecto e ocluso, de que falava no início, serve-se das imagens para ampliar o seu sentido. Sebald, cria uma espécie de círculo, ou elipse, entre o texto e as imagens, que acaba por contribuir para a intensificação dessa indiferenciação entre o ficcional e não-ficcional.
Esta construção claramente serve o grande propósito de Sebald, de trabalhar imagens presentes nas memórias, por natureza difusas, com falta de evidências e muitas dúvidas. Quantas vezes demos por nós na dúvida se algo era uma memória real, ou se era algo imaginado. Isto é tanto mais verdade com memórias abaixo dos 5 anos, que é o foco deste livro. As que tenho dessas alturas, foram, e tenho hoje essa quase certeza, implantadas pela repetição de histórias dos meus pais, junto com meia-dúzia de fotografias que sobreviveram desses tempos. Por isso quando reflito sobre esses tempos, acabo por me questionar muitas vezes, se estou verdadeiramente a recordar algo que vivi, ou antes, algo que construí mentalmente a partir de imagens e histórias.
Se no meu caso, consigo facilmente distinguir as memórias que tenho anteriores à idade dos 6 anos, porque vivia noutro país, no caso de Austerlitz isso é bem mais gritante porque não só vivia noutro país, como vivia aí com os seus pais verdadeiros, tendo depois disso passado a viver com pais adotivos. E é isto que motiva a viagem nas memórias de Austerlitz, tentar recuperar os pais pelas memórias, visitando de novos os lugares, procurando impressões perdidas nas paisagens, nos lugares, nas pessoas que ainda aí se mantêm. Como se não bastasse, essas memórias vão cruzar-se com o tempo do início da Segunda Guerra Mundial, e aquilo que Austerlitz acaba por descobrir sobre os seus pais, as suas origens, é desolador, aqui o livro por momentos assume um pendor mais tradicional, com um enredo movido por eventos de descoberta, claramente objetivando produzir em nós algumas das emoções mais fortes da leitura.
Por outro lado, e aqui mais uma vez o cruzar entre ficcional e não ficcional, senti um certo embelezar da recuperação das memórias, no sentido em que podendo recordar-se muito, existe uma clara ampliação dessa capacidade por parte de Sebald, já que falamos de uma criança com 5 anos, muito do que se memoriza nestas alturas é perdido no tempo, se não for reimprimido pela repetição, como dizia acima, seja por continuar a viver nos mesmos locais e com as mesmas pessoas, seja porque se mantém registos (fotográficos ou outros) que se revisitam, seja porque nos vão recontando o que vivenciamos. Contudo, e como acontece na relação entre imagens e texto, apontada acima, essas repetições servem mais como ilhas, ou âncoras de memórias, já que o resto é criado pela fantasia do nosso imaginar. Deste modo, acaba sendo esta mesma fragilidade das nossas memórias que Sebald dá conta muito bem, na certeza e incerteza, mais ainda quando aceitamos que somos apenas estas, ou seja, enquanto seres, enquanto pessoas, o nosso Eu só existe enquanto conjunto de memórias... e é por isso talvez que o Alzheimer se torna tão aterrador…
Por fim, e para fechar, como dizia no início, este texto de Sebald, serve mais a reflexão do que o prazer imediato da sua leitura. Senti várias vezes algum tédio na sua leitura, custou-me ligeiramente terminar, e no final senti que me sabia a pouco. Contudo, agora que me obriguei a refletir sobre o livro, vejo o quanto mais existe ali, que não se dá à superfície. E por isso mesmo acredito que aqui terei de voltar, para poder chegar mais perto das intenções de Sebald.
novembro 01, 2015
"Her Story" (2015)
Na semana passada foram anunciados os vencedores do IndieCade, com o grande prémio a ser conquistado por um dos mais interessantes videojogos deste ano "Her Story" de Sam Barlow, ao que se juntou o interessantíssimo facto, da entrega do prémio carreira a Brenda Laurel. A leitura da lista de premiados gerou impacto pela conexão entre os dois prémios o que me levou de imediato a dedicar-lhes a minha coluna no IGN: "A Narrativa nos Indies".
"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.
Já Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.
"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.
Brenda Laurel no IndieCade 2015 recebendo o Trailblazer Award
Já Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.
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