novembro 30, 2016

"Odisseia" de Homero

Ler um livro com mais de 2700 anos e sentir prazer genuíno com a sua leitura é por si só admirável, e leva-me a constatar de imediato que: o seu criador era alguém extremamente dotado na arte narrativa; e que existe uma estrutura base no modo como contamos histórias que se tem mantido bastante estável ao longo dos últimos milénios.

Ulisses (1 a.c.)

“Odisseia” e “Ilíada” são comumente reconhecidos como os poemas épicos, ou histórias completas, mais antigos da nossa história, pertencendo a um movimento, o Ciclo Épico, em que surgiram várias obras do mesmo género, por distintos autores, tendo sido estes os únicos dois grandes poemas sobreviventes. Na verdade, antes deste ciclo existiu um outro, por volta de 2100 a.c., na Suméria, do qual sobreviveu ainda, o chamado “Épico de Gilgamesh”, contudo, e apesar do relato ser de algum modo aproximado dos relatos destes épicos gregos, com reis heróis e muito valentes, nem a sua preservação nem a complexidade da sua estrutura se aproximam dos dois poemas de Homero.

É verdade que os académicos andam há séculos entretidos com a discussão daquilo que pertence verdadeiramente ao poema original da “Odisseia”, ainda assim, descontando aquilo que pode não ter estado na criação original, ou aquilo que foi “remendado” para tornar mais completo, mais “redondo”, o esqueleto essencial da estrutura do poema continua sendo uma peça brilhante de arte narrativa. Temos uma história que se inicia ’in media res’ mas não se limita a progredir daí em diante, usa narração dentro de narração para criar analepses, ou flashbacks, e assim dar à compreensão do leitor o que se passou e como se passou, num modo completamente não-linear. Ou seja, Homero não se limita a relatar algo que terá acontecido, mas desenha um enredo com claro objetivo de envolver, estimular e provocar os seus leitores.

A mestria da não-linearidade da ocorrência dos eventos é tanto mais evidente à medida que nos vamos aproximando do final e Homero começa a gerir a informação relatada, no sentido de retardar o acesso do leitor a determinadas partes do que está acontecer, conseguindo assim produzir verdadeiras sequências de suspense, tal qual o cinema de hollywood desenvolveu durante o século XX. Mas a estimulação não se dá apenas a partir da estrutura, esta surge impregnada em toda a estilística do poema, nomeadamente no posicionamento do narrador, com Ulisses a variar entre terceira e primeira-pessoa, para reproduzir mais intensamente o sentimento do seu personagem, ou com a variação de narrador de Ulisses para Telémaco de modo a reforçar o relato do mundo que contextualiza Ulisses, tornando-o cada vez mais vivo e presente na efabulação.

Apesar de toda esta diversificação do modo de contar, entre diferentes narradores, diferentes vozes, diferentes tempos cronológicos, a “Odisseia” utiliza uma linha condutora central, que atravessa a todo momento tudo o que está a acontecer, e permite assim não apenas situar o leitor, mas também mantê-lo envolvido, e que é o retorno de um herói a casa. Não um retorno qualquer, mas de alguém que esteve perdido 20 anos, e que por isso mesmo, viu o seu lugar ser tomado por quem tenta a qualquer custo apoderar-se do que é seu, incluindo a amada esposa. Ou seja, esta linha é como uma coluna vertebral que tudo sustenta, baseada no arquétipo “homem reencontra mulher”, e que permite a qualquer momento parar a progressão e contar histórias adicionais que contribuem para a definição dos diferentes personagens e eventos, sem que os recetores percam de vista para onde se dirigem. Sendo um artifício, não deixa de impressionar o modo como é tão bem explorado ao longo de todo o poema épico.

“Ulysses cegando o Ciclope” (1 a.c.), conjunto de esculturas encontradas numa caverna da Villa de Tiberio, Sperlonga, Itália

Neste sentido, enquanto lia questionei-me bastantes vezes sobre o modo como Homero terá conseguido chegar a este nível de elaborada complexidade narrativa. Sabemos que as histórias não surgiram da escrita, que a oralidade era abundante, e existiam pessoas que mais pareciam enciclopédias ambulantes. Aliás, recorde-se que Sócrates sempre detestou a figura da escrita, por achar que ela implicaria a perda e o treino da memória, que ela seria um convite à preguiça. Contudo, e apesar de termos de reconhecer o trabalho excepcional, o desenvolvido por muitos dos contadores de historias assim como dos filósofos que dissertavam pelas ruas da cidade, o alcance, em termos de elaboração, permitida pela oralidade é bastante mais circunscrita. Neste sentido, é provável, como apontam muitas das evidências, que a origem da “Odisseia” seja oral, como conjunto de cantos que foi sendo alargado com a passagem do tempo, mas que provavelmente só terá ganho a forma que hoje tem, ao ser passada a registo efetivo, permitindo-se revisões, re-organizações, re-elaborações, arredondamentos e balanceamentos. Neste mesmo sentido, fica a dúvida também tantas vezes levantada, se a “Odisseia” terá surgido mesmo de um único poeta, denominado Homero, ou antes de um conjunto de poetas, que foram mantendo vivas as diferentes histórias que mais tarde formariam os Cantos passados ao objeto escrito.

Outra questão ainda que se levanta é o porquê da sua sobrevivência. Terá sido pela sua elaborada complexidade, ou terá sido mais pelo modo como se fez propagar, não apenas através dos diferentes contadores de histórias de rua, como através de diferentes meios como o teatro, a pintura ou a escultura, e mais tarde pela literatura e audiovisual, ou ainda das próprias escolas e seus professores, ao longo de séculos e séculos. Acredito mais na questão da propagação, motivada pelo facto de se tratar da marca inicial da literatura ocidental, e a que ainda hoje podemos assistir, com uma enorme percentagem do cânone ocidental a citar direta e repetidamente Homero, o que acaba por tornar ambas as suas obras completamente obrigatórias para quem pretenda compreender este mesmo cânone. Aliás, passados 26 séculos, podemos ainda ver surgir uma das obras basilares da literatura contemporânea, que não só cita, como segue de forma rígida toda a sua estrutura — “Ulisses” (1922) de James Joyce. Aliás, esta foi uma das razões pelas quais resolvi criar a minha própria listagem da estrutura da "Odisseia", e que aqui deixo, para poder comparar com os capítulos de Joyce.

"The Siren Vase" (~470 a.c.)

''Ulysses and the Sirens'' (1891) de John William Waterhouse

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A Estrutura Dramática

Cantos 1 a 4
Telémaco e os pretendentes.

Cantos 5 e 6
Ulisses liberta-se de Calipso e inicia a viagem de regresso.

Cantos 7 a 8
Recebido por Nausícaa, inícia a narração das aventuras passadas.

Canto 9
Passagem pela terra dos Ciclopes

Cantos 10 e 11
Viagem de Ulisses ao Hades

Canto 12
Enfrentando o canto das sereias

Canto 13 e 14
Regresso de Ulisses a Ítaca

Canto 15
Regresso de Telémaco a Ítaca

Canto 16
Reunião de Ulisses e Telémaco

Cantos 17 a 20
Preparação da vingança de Ulisses

Cantos 21 e 22
A vingança de Ulisses

Canto 23
Reencontro com Penélope

Canto 24
Encerramento
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Aproveito para deixar aqui também, juntamente com a estrutura, um friso cronológico dos eventos relatados pela "Odisseia", e que dão conta dos 20 anos em que Ulisses andou fora de casa. Podemos ver o primeiro período de 10 anos, dedicado à guerra em Tróia, e depois o modo como se dividem os 10 anos que demorou no caminho para casa, ou seja, os eventos relatados na "Odisseia".

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Friso cronológico da odisseia de Ulisses


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Por fim, não posso deixar de louvar o trabalho de Frederico Lourenço, e julgo que nada do que direi poderá fazer jus ao seu trabalho, nomeadamente por tudo o que representa o seu esforço para a cultura de língua portuguesa (a ter em conta que o próprio Brasil recorreu à sua tradução, numa edição da Penguin). Digo isto porque a tradução não realiza apenas um esforço de manutenção da rítmica, quase impossível de traduzir, como o faz por meio de um esforço de tornar o texto muito mais legível, diria mesmo tornando o texto quase prosa. Passei os olhos por três outras traduções, de Portugal e do Brasil, nenhuma se lhe compara em clareza.

novembro 27, 2016

Skyrim, agência colossal

Demorei 5 anos a chegar a Skyrim, sobrevivi a toda uma onda de fundo que não só vangloriou o jogo como desenhou e construiu para o mesmo centenas de MOD que mantiveram Skyrim plena de vida, muito para além do seu tempo. Para um jogo com 5 anos, continua perfeitamente atual, tanto no aspeto (mais ainda agora na nova versão remasterizada) como no design, tendo em conta o modelo de RPG da Bethesda. Contudo, não me comoveu particularmente, pelas mesmas razões que “Dragon Age” também não o fez, e que são as premissas narrativas, baseadas em simples mundos de fantasia.





Em "The Elder Scrolls V: Skyrim" somos um mortal detentor de uma alma que está de algum modo conetada às almas dos dragões e que por essa via nos garante determinados poderes. A trama principal assenta no retorno do dragão Alduin, o Comedor de Mundos, cabendo-nos a nós trabalhar para ganhar experiência, procurá-lo e eliminá-lo. Todo o nosso trajeto é feito praticamente sozinho, e mesmo quando passamos a ser reconhecidos como Dragonborn, raramente o jogo se dá ao trabalho de criar relações com outros personagens. Skyrim é completamente orientado ao enredo, secundarizando as personagens, tanto na sua caracterização como dramatização.

Por outro lado, Skyrim apresenta uma das experiências de jogo mais abertas que encontrei até hoje. É possível fazer praticamente tudo, tomar quase todas as decisões, ir a quase todo o lado no mundo, interagir com praticamente tudo. Diria mesmo que em termos de interatividade e agência, Skyrim é colossal. Não existem caminhos lineares. Quando seguimos caminho pelos prados, montanhas, dungeons e túneis, existem sempre espaços alternativos que podemos investigar, que nos levam a quests alternativas que de algum modo se ligam sempre às que estamos a realizar, e mesmo quando não levam a lado nenhum, apenas mais um cofre com meia-dúzia de itens à espera de loot, acabam contribuindo para dar forma à nossa agência. Do mesmo modo, quando numa quest se espera que ajamos de determinada forma, ou que se obtenha determinado item de alguém, os diálogos são suficientemente abertos para se agir contra o propósito original da quest, contribuindo para a criação de uma aura de total liberdade no mundo de jogo.

De certa forma, é desta obsessão da Bethesda por criar o mundo mais aberto possível que emergem muitos dos problemas que lhe são apontados, e que resumo aqui como maior problema, a secundarização dos personagens. Ou seja, não falta escrita, nem esta é fraca, o que acontece é que o jogo é tão aberto que obriga a que a escrita dos personagens e sua ações, sejam elas próprias mais abertas, mais flexíveis, e consequentemente, menos dramáticas. Se a causalidade de cada ação no mundo pode ser atribuída a diferentes variáveis, que por sua vez ainda se subdivide em cadeias de subvariáveis, é natural que os conflitos narrativos percam força. Ou seja, os problemas apontados ao grafismo pouco evoluído — nomeadamente os personagens rígidos, tipo madeira — não são o cerne da questão.

Basta comparar com "The Witcher 3: Wild Hunt" para percebermos que são experiências completamente distintas. Apesar do mundo aberto, a trama principal funciona como funil que nos vai conduzindo dramaticamente pelo mundo, e à medida que nos vamos ligando aos personagens, vamos comprometendo muita da flexibilidade da nossa agência. Esta é uma discussão antiga que vem dos tempos de "Grand Theft Auto III" (2001) e "The Sims" (2000), quando se pensava que o melhor dos mundos estaria na sua junção. Hoje, percebemos que são modelos de jogo muito distintos, que apelam a diferentes tipos de jogadores. Se uma parte gosta de experimentar o mundo e moldá-lo à sua maneira, uma outra parte está muito mais interessada em participar no tomar de decisões sobre o modo como a trama se desenrola. Claro que "Skyrim" podia dar toda a liberdade nas quests secundárias e criar uma main quest mais focada, menos livre, mas isso desvirtuaria o seu conceito central de design.


No final, se sentimos que as quests são desprovidas de vida — são apenas ir de X a Y, falar com A e B, obter Z e W, e voltar a X — é porque não compreendemos o tipo de jogo que estávamos a jogar. Skyrim é muito mais jogo do que narrativa. A história e sua linearização é pano de fundo, o que verdadeiramente conta e produz emocionalidade no jogo acontece quando tomamos o mesmo nas nossas mãos, fazemos valer toda a nossa agência, e jogamos contra o que nos é pedido. É nesses momentos que sentimos Skyrim, porque é nesses momentos que se dá o não expectável, em que a história emerge imprevisível e agarra as nossas emoções. A maior prova que podemos ter disto mesmo, acontece quando chegamos ao final e liquidamos Alduin, e percebemos o quão pouco relevante era toda a quest principal.

novembro 25, 2016

“Uma Questão de Beleza” de Zadie Smith

O que me cativa em Zadie Smith (1975) é o mesmo que me cativa em Philip Roth, o seu virtuosismo na forma escrita, na argumentação ficcional e nos diálogos estruturantes. Se Roth é judeu, Smith é multirracial, mãe negra jamaicana, pai branco inglês, nascida em Londres, o que lhe permite trabalhar o mundo e os seus personagens a partir de uma perspectiva refrescantemente multicultural. O seu primeiro livro, “Dentes Brancos” (2000), criou imensas expectativas quanto ao seu futuro, que se vieram a confirmar neste seu terceiro livro, ganhador do Prémio Orange Ficção e finalista do Prémio Man Booker.

Recorte da obra "A Woman bathing in a Stream" (1654) de Rembrandt, uma das chaves do livro.

“Uma Questão de Beleza” (2005) junta dois reconhecidos modelos da literatura, o “campus novel” e a “crónica de costumes” para nos dar aquilo que podemos definir como sátira académica. Situada temporalmente no pós 11/9, num vai-vem entre Londres e Boston, Zadie Smith abre uma janela para dissecar relações de poder, envolvidas em ideologia política (conservadores vs. liberais), por meio de duas famílias do mundo académico, dos seus pais e filhos, das suas raças, valores morais, sociais e intelectuais. O romance é um verdadeiro frenesim, são tantos os temas, pontos de vista e antagonismos que enfrentamos, que por vezes nos custa a acreditar como conseguimos todos viver neste pequeno planeta. Mas é exatamente desse frenesim que podemos dizer que emana o estilo Zadie Smith, como se o livro fosse uma tela e os personagens pinceladas de tinta, óleo espesso em jogos de misturas, criando um todo que se vai formando ao longo das 500 páginas.

O livro deambula entre duas linhas de enredo principais: a relação conflituosa entre dois académicos, Monty, o conservador negro, e Howard, o liberal branco; e a relação de casal entre Howard e Kiki, a sua mulher, negra, na casa dos 110kg, não-académica (enfermeira). Estas duas grandes linhas cruzam-se constantemente, e se de um ponto de vista de mais valia cultural podemos dizer que o conflito entre os dois académicos é a essência, na verdade, a chave do livro está na relação do casal, e podemos mesmo dizer, em Kiki, a não-académica. Uma relação de 30 anos, com 3 filhos adolescentes/adultos, aparentemente perfeita, está à beira da ruptura, e de cada vez que Zadie Smith nos deixa a sós com Kiki, é como se o mundo se encerrasse ante tanta clarividência.

O grande conflito entre Monti e Howard surge a partir de um artigo em que Monti, enquanto conservador, pretende convencer os colegas a retirar o termo liberal das artes liberais. Este termo conjunto foi usado na época medieval para definir os estudos universitários, ou estudos do pensamento abstracto — engloba: lógica, gramática, retórica, aritmética, música, geometria e astronomia — opondo-se às artes mecânicas, que trabalham o mundo do físico e concreto. A discussão não é detalhada, e ainda bem se não afastaria todos os não interessados no tema do livro, mas é relevante, e obriga-nos a refletir.
“Li o artigo dele de domingo no Herald sobre o tirar o “liberal” das Artes Liberais… sabe, então agora é como se andassem a tentar dizer-nos que os conservadores são uma espécie em vias de extinção — como se precisassem de protecção no campus ou coisa assim.” Aqui Zora deu-se ao trabalho de revirar os olhos e sacudir a cabeça e suspirar ao mesmo tempo. “Aparentemente, toda a gente tem tratamento especial — negros, gays, liberais, mulheres — toda a gente excepto os pobres machos brancos.” p. 178
"[Rembrandt] um artesão meramente competente que pintava o que quer que os seu ricos patronos solicitassem”. Howard pediu aos seus estudantes que imaginassem o belo como a máscara que o poder veste. Que reclassificassem a Estética como uma linguagem rarefeita de exclusão. Prometeu-lhes uma cadeira que iria desafiar as crenças deles na humanidade redentora daquilo que é tratado habitualmente por “Arte”. “Arte é o mito ocidental”, anunciou Howard, pelo sexto ano consecutivo, “com o qual nos consolamos como nos fazemos.”” p.185
Até que ponto é que aceitamos verdadeiramente estas duas visões do mundo, a conservadora e liberal? Nomeadamente, nós académicos, que vemos o mundo a partir de uma matriz científica, que implica a constante renovação e refutação do passado. Mesmo no campo das humanidades, como podemos aceitar o Belo? O liberal Howard, é um caso clássico, é um académico especialista em Rembrandt, mas não gosta de Rembrandt, aliás está mesmo à beira de publicar um livro “Contra Rembrandt”. Porquê? Porque para si o belo não existe. Os alunos definem Howard, como o “não gosta de tomates”, porque é o professor que não gosta de nada, que tudo desconstrói, tudo discute, tudo compartimentaliza intelectualmente, mas nada verdadeiramente o afeta emocionalmente. O belo é um artifício conservador, é antiprogressista, já que opera pela incrementação, ou seja pela simples melhoria técnica do que já existe, enquanto o liberal, o progressista, procura constantemente o diferente, a ruptura. Mas a verdade é que o próprio Monti, defensor máximo dos valores conservadores, pouco ou nada se envolve também com o Belo, porque no fundo, apesar de estarem em campos políticos opostos, acabam seguindo a base motivacional da academia, movida pelas ambições, focados em dar conta da sua própria distinção intelectual, da sua capacidade para estar na frente do pensamento. 

Deste confronto emerge umas das mais fortes críticas de Zadie Smith à academia, já que ambos, Monti e Howard, vendo diferentes mundos, impondo diferentes ideologias às suas famílias, esqueceram que o mundo não é uma equação. Neste sentido, e apesar de se poder tentar colar o selo de pós-moderno à obra de Zadie Smith, ele fica-se pelos aspetos da multiculturalidade, já que segue todo um registo clássico, tanto na forma — com a escrita a gritar pelo lado virtuoso — como por toda a base de discussão estética. Zadie Smith está aqui claramente à procura de algo que o simples progressismo não lhe oferece, daí que lhe custe tanto aceitar a quebra dos laços familiares, vendo o amor entre o casal como um núcleo quase indestrutível. O seu personagem, Kiki, assume a vida como um dar-se ao outro, uma escolha consciente, um sacrifício de si em função da família, que define para si o amor, o estar vivo. Howard, classicamente, segue todo o livro sem conseguir ver o belo na mulher, imbuído do espírito académico que tudo disseca e com nada se envolve, acabando por ganhar consciência de tudo isso num momento de reviravolta final, contida, mas intensa psicologicamente, em que Zadie Smith funde brilhantemente um quadro de Rembrandt e uma troca de olhares entre Kiki e Howard.


No final da leitura, andei a ver os quadros e desenhos de Rembrandt mencionados ao longo do texto de Zadie Smith, e por isso aproveito para os deixar aqui, para quem quiser usar como guia durante a leitura, deixo-os por ordem aproximada de citação no livro.

Rembrandt, "The Shipbuilder and his Wife", 1633

Rembrandt, "The Anatomy Lesson of Dr. Nicolaes Tulp", 1632

Rembrandt, "Jacob wrestling with the angel", 1659

Rembrandt, "Naked Woman Seated on a Mound", 1631

Rembrandt, "The Sampling Officials", 1662

Rembrandt, “A Woman bathing in a Stream”, 1654

Deixo para o final os dois quadros que Carlene procura deixar em testamento a Kiki, um de Hopper e outro Hyppolite. Sobre o quadro de Hector Hyppolite, “Maîtresse Erzulie” (~1940) é particularmente interessante o modo como Zadie Smith trabalha o seu processo de reconhecimento, já que foi André Breton que numa passagem pelo Haiti, em 1945, descobriu as obras, adquiriu na altura um conjunto, provavelmente imensamente baratas, e lhes deu a fama que fariam destas, mais tarde, peças valiosas.

Hector Hyppolite, “Maîtresse Erzulie”, ~1940

E por fim o quadro de Edward Hopper, 

Edward Hopper, "Road in Maine", 1914

novembro 22, 2016

"False Alarm", em primeira-pessoa

Ilya Naishuller voltou aos assaltos e à primeira-pessoa, vulgo câmara subjetiva ou POV. Os meios de produção são muito superiores aos de "Insane Office Escape 2" de 2013, ainda assim julgo que me impressionou mais nessa altura, talvez por ser novidade, ou então por se basear mais no parkour, enquanto aqui temos uma câmara que viaja mais sobre rodas, ganhando menos em dinâmica visual.




Não há muito para dizer sobre o filme, que é também teledisco. Usa o recurso à câmara subjetiva para intensificar a ação, nomeadamente levar o espetador mais próximo do horror, e assim provocar visceralmente. Tal como o anterior, é imensamente violento, moral e graficamente. A primeira-pessoa funciona muito bem, porque em ambos os casos são experiências curtas, de 4 minutos, e a história que se conta é baseada na sucessão de eventos, os personagens limitam-se a seguir o que se lhes apresenta. Ainda assim, Naishuller consegue inserir, de forma bastante ligeira, uma pontinha de romance pelo meio, mas de forma bastante hábil.

O filme anterior, com mais de 3 anos de presença na rede tem 36 milhões de visualizações, enquanto este em apenas 1 mês, já leva 46 milhões. O facto de o realizador ser conhecido, ajuda, nomeadamente porque muitos sites e blogs da área têm falado bastante do mesmo. Por outro lado, talvez a banda seja suficientemente conhecida para também aportar os seus fãs ao filme.

"False Alarm" (2016) de Ilya Naishuller

Verifiquei entretanto que Naishuller criou em 2015 uma longa-metragem, "Hardcore Henry", pelo que leio quase toda também em POV. Procurar ver, e assim que conseguir, deixarei aqui mais algumas notas.

novembro 20, 2016

"Lore" (2012), do lado do inimigo

Ter descoberto, e visto, hoje “Lore” (2012) de Cate Shortland, é para mim justificação suficiente para o quanto me custou a mensalidade do serviço FilmIn. Um serviço que parece oferecer aquilo que MUBI tinha prometido e não conseguiu, e que o Netflix está muito longe de poder oferecer. Por meros 6,95 o FilmIn oferece um catálogo de produção Europeia como é difícil encontrar noutro local, apesar de nem tudo estar em HD, a qualidade é boa, e as legendas estão em português.





“Lore” apresenta uma perspectiva completamente distinta dos efeitos da Segunda Grande Guerra, algo que até agora estava calado, já que dos maus não deve a história falar. Vemos o mundo pelos olhos de um grupo de crianças, cinco irmãos, abandonados pelos pais nazis, que têm de atravessar a Alemanha para chegar a casa da avó, e que ao longo dessa viagem, pelo confronto com o outro, vão descobrir os valores que lhes foram incutidos, apreender o mundo que lhes tinha sido vedado, e assim confrontar-se consigo próprios.

O tema é poderoso, mas é o filme que o faz ganhar vida, muito graças aos atores, cinematografia e score. Saskia Rosendahl, com apenas 19 anos, enche o ecrã de pulsação humana, num jogo constante entre os resquícios da educação elitista nazi e a nova realidade que se lhe vai apresentando. Com um tema desta dimensão, poderia existir aqui o risco da empatia excessiva, mas isso não é aqui facilmente permitido. A educação elitista funciona bem nesse sentido, gerando afastamento pela frieza, mesmo para com um bebé que chora.

A emocionalidade é de uma forma geral contida, mas intensa, sempre rente à tensão, que por sua vez é imensamente trabalhada pela excelência da cinematografia de Adam Arkapaw, de quem já aqui tinha falado a propósito de "Macbeth" (2015). Arkapaw fixa-se aqui menos no belo, e mais no sentido dos olhares, alimentando desta forma a densidade dos personagens. Vemos o que estes vêem e vemos os seus rostos, estáticos e tensos mas carregados de vida, quase sempre sem palavras, porque não são precisas serem ditas, porque é nos seus corpos e na perspectiva destes que reside o todo.

Claro que a experiência se torna única, muito graças ao magnífico score de Max Richter, que desenvolve do ponto de vista sonoro todo um mundo particular, o mundo do filme, o mundo em que vivem aquelas crianças, em que ouvimos os violinos chorarem em nome de milhões de vidas que se perderam.

“Lore” é uma experiência de sentimento e confronto humanos, de um ponto de vista que não serve o choro, mas deve ser compreendido, e que só se consegue se sentido. A guerra, tendo inimigos e aliados, é sempre uma guerra, e nela sofrem sempre os mais fracos, estejam de que lado estiverem.

novembro 19, 2016

XKCD, inovando o meio da banda desenhada

A TED de Scott McCloud, "The Visual Magic of Comics", já tem 11 anos, contudo nunca é tarde para inovar no sentido daquilo que McCloud tentou apontar como potencial de inovação da banda desenhada online. Por outro lado, não deixa de ser estimulante, ainda que meramente coincidente, que a bd XKCD tenha sido iniciada também nesse mesmo ano, 2005. Mas se venho aqui hoje falar de XKCD, não é por nenhuma das datas acima, mas é antes porque estava a analisar a listagem de vencedores do Hugo Award para Best Graphic Story dos últimos anos quando me deparei com o facto, que desconhecia, de que o XKCD tinha ganho o prémio em 2014, num concurso que entravam alguns pesos pesados da indústria, “Saga, Volume 2” e “The Meathouse Man” de George Martin.



Para quem anda pela web há alguns anos, e gosta de banda desenhada, duvido que nunca se tenha cruzado com o XKCD. Por uma razão ou outra, as suas tiras vão surgindo citadas, referenciadas, linkadas, discutidas. Se o desenho é básico, o seu autor tem um lastro capaz de lhe conferir temas de relevo, já que Randall Munroe (1984), antes de ser cartoonista, era físico investigador da NASA, onde trabalhava no design de robótica. Deste modo, o XKCD, não pela sua ilustração, embora a simplicidade seja relevante, mas pela formação, humor e persistência do seu criador, tornou-se em pouco tempo um dos maiores expoentes do género bd online, ou webcomic.

Interface de leitura de "Time", com o Play no topo, e a menção "at your own pace"; ao lado os botões de pausa e avanço; e ainda a indicação de que basta rolar o rato para avançar.


Interface de feedback participação dos leitores nas votações dos quadros relevantes, que permitem controlar o framerate do play do webcomic.


No caso concreto de “Time”, é particularmente relevante o modo como abre novas fronteiras no campo da banda desenhada, graças ao suporte do digital, nomeadamente em direção à animação, criando mesmo uma espécie de novo medium, que não é bd bem é animação. Ou seja, em “Time” seguimos duas personagens ao longo de uma aventura futurista, e se por vezes parece ser uma simples animação, logo de seguida essa se converte em banda desenhada, com balões de fala, diálogos, que estatizam o movimento. Daí que a forma de experienciar o webcomic, possa acontecer em modos diversos, desde o avanço pelos simples rolar do rato, ou botões de teclado, ou ainda o apertar de um play que nos leva pela história fora, fazendo variar o framerate em função dos questionamentos do painel ou dos diálogos.
“with "Time," I thought about how there was the in-between space between animation, where you get many frames per second, and a daily comic, where you're getting updates every day. I couldn't think of anything that had been done in the in-between space” Randall Munroe in RollingStone, 2014
Estamos perante um verdadeiro misto de animação e BD, em que o motor assenta na variação do framerate do trabalho. A publicação foi feita, inicialmente espaçada de 30 em 30 minutos, e depois de hora a hora, publicando-se os 3101 quadros ao longo de 4 meses. Se este método de publicação é inovador, e provocador do meio, tudo se torna ainda mais interessante quando Munroe, resolve abrir o modo de acesso animado, à participação dos leitores, para que estes contribuam no definir do framerate. Ou seja, as pessoas que leem a BD, podem ir votando nos quadros que consideram importantes, que devem ser pausados, ou a velocidade de play reduzida, durante o visionamento. Esta informação coligida dos leitores, é depois apresentada por meio de feedback, um glow border, à medida que vamos passando pelos quadros específicos, e usada pelo player para fazer as pausas, e assim variar entre animação e sequencialidade gráfica.

novembro 18, 2016

“Rosalie Lightning: A Graphic Memoir” (2016), o luto

Perder um filho deve ser das situações mais desesperantes que um ser humano pode atravessar. É simplesmente contra-natura, temos filhos, de um ponto de vista biológico, para nos suceder, e quando isso não acontece, o corte é profundo, a dor surge por todos os poros, psicológicos e físicos. Acredito ainda que isto é tanto mais intenso, numa sociedade que elegeu ter apenas um, ou dois filhos no máximo. “Rosalie Lightning: A Graphic Memoir” fala-nos da dor, da vida após a perda, do luto.


Não esperava mais, mas esperava diferente, talvez mais pungente, quando na verdade o período de luto, que acaba por ficar imensamente bem retratado, apesar de intenso, acaba por sair algo desfocado, um conjunto de tentativas erráticas com sentido de fuga, abandono, liberação. Mas não será assim mesmo, sei bem que procuramos chegar perto, sentir a emoção à superfície da pele dos atingidos, mas o luto não é só emoção, é antes pelo contrário, na maior parte do tempo, anti-emoção.

Na verdade, o facto de não ter passado pela provação, e que dói apenas imaginar, torna difícil compreender como seria connosco. A empatia não é fácil, porque estamos muito longe de poder compreender o que seria de nós naquela situação. Comparo com o videojogo recente, “That Dragon, Cancer” (2016), e vejo muitas pontes, mas também vejo muitas distâncias, mas também sei que o sofrimento, sendo humano, é particular, específico de cada um.


Estas obras são fundamentais para os seus criadores, contributos para um luto mais efetivo, não apenas pelo que se expressa, verbaliza, externaliza, mas essencialmente pelo que se cria. O processo criativo pelo seu efeito sobre a realização pessoal e autoestima, é um dos processos mais relevantes na terapia dos modos depressivos. Por outro lado, serve ao mesmo tempo um outro processo, comunitário, de partilha de experiências que é também fundamental na manutenção de sanidade, para quem passa por situações similares. Dito isto, “Rosalie Lightning”, sendo arte, é talvez ante disso, terapia.

novembro 17, 2016

“Dark Matter” (2016), emoções do multiverso

Tenho visto poucas séries, raramente me prendem mais de dois ou três episódios, no entanto “Wayward Pines” conseguiu agarrar-me e levar-me até ao final da primeira temporada, o seu autor era Blake Crouch. Quando li que um dos livros de FC mais badalados deste ano, “Dark Matter”, tinha sido escrito por ele, a atração foi imediata. Se no início sentimos que Crouch está apenas a remisturar a fórmula de “Wayward Pines”, rapidamente tudo descola, agarrando-nos pela tensão, adrenalina e claro, a total contorção da realidade.


A escrita não é o forte de Blake Crouch, embora pelo que vi dos seus livros anteriores, melhorou bastante, muito provavelmente pelo enorme trabalho de edição que a obra sofreu desde o primeiro esboço até ao seu lançamento, como fica evidente na nota final de agradecimento do próprio autor. Crouch também não é um romancista e por isso as personages são aqui mais peões do que essências, se Jason e Daniela se ficam pelo casal modelo, a relação com o filho Charlie é um verdadeiro apêndice. Por outro lado, Crouch é brilhante no desenho de suspense, na criação de enredo — ações, conflitos e obstáculos — tanto o é, que o primeiro manuscrito, com apenas metade das páginas, foi vendido à Sony por mais de um milhão de dólares, dois anos antes do livro sair, para criação do filme.

Se gosto do trabalho de Crouch, deve-se menos à sua mestria do suspense e mais ao modo como ele trata o tema da Realidade. Esse é o tema de fundo de “Wayward Pines” e “Dark Matter”, o modo como nós, humanos, compreendemos, construímos, aceitamos, distorcemos e por vezes enlouquecemos por meio daquilo a que chamamos Realidade. É um tema que me apaixona, tendo sido parte integrante dos meus estudos, o que me me levou a analisar dezenas de filmes que lidam com realidades alternativas, viagens no tempo e mundos possíveis. É um tema eterno, que nos pode levar até à “Alegoria da Caverna” de Platão, ou simplesmente parar para apreciar a intensa expetativa contemporânea em redor das novas tecnologias de Realidade Virtual.

Considero que a premissa de “Wayward Pines” era mais original, contudo “Dark Matter” é uma obra mais madura, complexa e questionadora, capaz de lançar o leitor num tobogã de conceitos que misturam Física e Filosofia. Apesar da velocidade imprimida, não raras vezes, damos por nós a estacar e a refletir sobre o que está a acontecer, sobre o que é a realidade, o que somos, como somos, e porque somos. Neste sentido, e apesar da ação contribuir para alguma superficialidade, não é um livro fácil para quem não estiver habituado às temáticas.


Em relação à história e ciência, “Dark Matter”, como o título acaba por indicar, trabalha conceitos da física quântica, nomeadamente o conceito de multiverso. Contudo, apesar de seguir uma base científica, rapidamente resvala para o puro ficcional, distanciando-se de abordagens mais clássicas da FC, como é exemplo um dos grandes sucessos recentes da FC, “The Martian” (2014). Mesmo aproximando-se da temática de “Interstellar” (2014), e ainda que este tenha também tomado bastantes liberdades, “Dark Matter” usa a especulação científica mais como rampa de lançamento para a fantasiação do conceito de identidade.

novembro 16, 2016

"Jornal Animado", em nome da liberdade de expressão

O Canal+ e a produtora Autour de Minuit resolveram criar uma coleção de animações que intitularam, “Dessine toujours”, para homenagear a passagem de um ano sobre o massacre no ”Charlie Hebdo” (7 de Janeiro 2015). O tema comissionado foi a Liberdade de Expressão, e um desses dez filmes, “Journal Animè” (2016), pode agora ser visto online. O criador, Donato Sansone, pegou nos jornais franceses publicados entre 15 de Setembro e 15 de Novembro de 2015, e animou várias notícias e imagens. O resultado é, simultaneamente perturbador e fascinante.





Sansone não se baseia na narratividade, embora crie pequenos arcos e relações entre imagens, acabando o filme por conter alguma progressão conferida pela cronologia das notícias. A força do seu filme está na intensidade das imagens criadas, nomeadamente no modo como ele pega nas imagens aparentemente inocentes, e lhes confere um véu animado interpretativo, como que desvelando as verdadeiras identidades e intenções dos fotografados. É muito mais do que os tradicionais cartoons, porque por via da animação, trabalha de modo frontal a transformação, dando conta da farsa de muito daquilo que é o politicamente correto na nossa sociedade.

"Journal Animè" (2016) de Donato Sansone

novembro 13, 2016

“O Castelo” (1926)

O Castelo” (1926) é o terceiro e último romance de Kafka (1883-1924), depois de “O Desaparecido” (1927) e “O Processo” (1925), todos incompletos, todos publicados postumamente e contra à sua vontade. Este conjunto de dados, parcos, mas capazes de ilustrar um padrão, conseguem muito rapidamente e de forma algo óbvia dar conta do tipo de autor que temos pela frente, do seu mundo e forma de estar na vida. Kafka viveu apenas 40 anos, viveu-os intensamente e totalmente dedicados ao amor pela literatura, mas sem nunca alcançar o desejado. Insatisfeito com o pai, com o mundo, com a sua escrita, foi alguém que se dedicou mais aos obstáculos da vida, do que àquilo que esta tem de bom para nos oferecer. A narrativa de “O Castelo” reflete totalmente esta personalidade.


Ao longo de quase 400 páginas seguimos K. na sua demanda, podemos dizer quixotesca, por chegar ao Castelo, enfrentando mil e um obstáculos — mesquinhos, incompreensíveis, obscuros, obtusos, lógicos, humanos, burocráticos — que contribuem para o desenho de um labirinto, que facilmente se compreende porque fez as delícias de Jorge Luís Borges. “O Castelo” é um jogo, cabendo a K. e o seu leitor, encontrar a fórmula correcta para aceder ao centro do labirinto, o seu significado.

Kafka constrói aqui um romance profundamente espacial para dar conta da vastidão do sentimento de desolação. Ou seja, Kafka é brilhante no trabalho psicológico, mas é-o de uma forma muito particular, totalmente distinta da abordagem tradicional, já que não se dedica a traçar os perfis dos seus personagens, e talvez por isso não seja uma obra fácil para muitos dos que se aproximam na esperança de encontrar mais uma obra dentro do alinhamento geral. Por outro lado, este modo de trabalhar a psicologia pelo espaço, acaba por acarretar consigo uma outra particularidade, que é o de se desligar do particular para abraçar o abstracto. Ou seja, para dar conta espacialmente do seu objeto, Kafka tem de projetar os conflitos humanos num espaço e conjunto de obstáculos que impedem o acesso ao seu centro. Esta abordagem evita a particularização e afasta-se do concreto, levando consigo um grande grupo de leitores, mas atrai um outro grupo, o mais embrenhando na reflexão, particularmente a interpretação. Assim, não admira que não só este “O Castelo”, como toda a obra de Kafka, seja uma das obras do cânone mais estudadas academicamente, com leituras interpretativas que vão das abordagens Marxistas, Existentialistas, Psicanalistas às Deconstrucionistas e Estruturalistas, passando pelas Religiosas e Esotéricas.

No final do livro, mesmo que este não tenha fecho, termina a meio de uma frase, não por falta de tempo de Kafka, mas porque simplesmente não o quis ou não conseguiu, podemos encontrar a chave, o significado. Cada um de nós vê ali o seu Castelo, cada um de nós projeta nos obstáculos encontrados por K. os obstáculos das suas vidas, cada um de nós encontra-se em direcção à sua própria demanda interior, e por isso a chave deste Castelo somos nós mesmos.

novembro 12, 2016

“Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo

Uma das razões que me trouxe à conferência ECREA 2016 em Praga, foi poder ver ao vivo o primeiro filme interativo da história, “Kinoautomat” (1967). A sua produção teve como objetivo uma demonstração tecnológica no pavilhão da antiga Checoslováquia, na Expo 1967, em Montreal. O filme além de requerer comandos distribuídos pela audiência, requer ainda um apresentador que interage com a audiência e com o filme. Neste caso tivemos a sorte de ter a realizar esse papel, a filha do realizador Raduz Cincera, Alena Činčerová.



A sessão dura cerca de uma hora e um quarto, para um filme que terá à volta de trinta minutos. Os comandos originais estavam fixados aos sofás da sala de cinema (com cerca de 124 lugares), neste caso deram-nos comandos portáteis, que tivemos de devolver no final, estando na sala cerca de 60 pessoas. O filme é a preto e branco, e é fundamentalmente uma comédia negra, muito típica dos anos 1960, recorrendo a alguns dos estereótipos mais banais, como “a vizinha do lado”, a “família que chega da província”, o “louco que tudo sabe”, ou ainda “a velha inocente que é muito pouco inocente”. Contudo, e apesar de todos estes clichés, fez-me rir como já não ria há bastante tempo, recordou-me imenso o cinema de Louis de Funés. Claro que estar inteiramente predisposto e altamente expectante terá ajudado, mas a verdade é que Cincera consegue imprimir ritmo, produzir cenas curtas carregadas de leitura de enredo que nos fazem ver múltiplas possibilidades muito rapidamente, e por isso ainda mais desejosos de participar nas escolhas propostas.

O cliché, da vizinha bonita do lado que fica trancada fora do seu apartamento, é o mote para todo o conflito.

O sistema de escolhas, e tendo em conta que é coletivo, funciona numa lógica de maioria. Ou seja, existem sempre apenas duas opções, verde e vermelho, e as cenas são escolhidas em função daquilo que a maioria presente em sala escolhe. Parecendo um sistema meramente mecânico, devemos relembrar que em 1967 a Checoslováquia vivia debaixo de uma sistema totalitário comunista, sem direito a eleições, votos, nem escolhas de maiorias. Nesse sentido, uma das grandes questões que terá estado na base da invenção deste sistema terá sido a crítica ideológica. Num país em que não se pode escolher, poder escolher como deve prosseguir o filme, é no mínimo instigador, mas na verdade revolucionário! Não admira que o filme tenha sido proibido no país, e mesmo impedido de circular durante muito tempo pelo próprio governo da Checoslováquia.



Algumas escolhas são triviais, não nos movem particularmente, outras são até bastante duras, ainda que tratando-se de comédia negra, deixam-nos hesitantes, questionam-nos sobre o tipo de pessoa somos, "Eu não posso deixar de...". Por outro lado, por vezes, a questão passa a um estado meta, em que deixamos de nos colocar no lugar do personagem, e passamos a pensar no efeito na história e no que desejaríamos ver acontecer no filme e com os personagens.

A inovação, ou melhor, a grande distinção, face ao cinema interativo que veio a suceder a "Kinoautomat" está no apresentador, o entertainer. O seu papel era o de orientar a audiência no processo de escolha, explicar e garantir que estes realmente interagiam, já que aquela era uma experiência nova. Mas do que pude apreciar, acaba servindo muito mais do que isso, o facto de termos uma pessoa que fala connosco, que dá ordens ao filme, e nos questiona, faz com que as pausas para interatividade, tão malfadadas pela quebra de ritmo, se tornem prazeirosas, e sejam elas parte da obra. Ou seja, o filme interativo não é apenas o que vai surgindo na tela, nem a interação é apenas o que nós escolhemos no comando, é antes um todo, uma instalação, uma performance, um jogo, que cria um espaço de relação interno à audiência e desta com o apresentador, e desses todos com os personagens no filme, na tela. E é por isso que se gera uma experiência tão vívida, tão entusiasmante. Não sou apenas eu que escolho, enquanto escolho penso nos outros, sinto-os ali, meço-lhes o pulso pelo que a maioria escolhe, a própria apresentadora vai fazendo comentários ao tipo de audiência que temos ali naquela noite — conservadores, curiosos, impulsivos, pecaminosos, etc.

As escolhas da sala surgem no ecrã, em pequenas bolas, que crescem de baixo para cima, como um gráfico que sobe, até que se identifica o lado escolhido pela maioria.


Fluxograma de "Kinoautomat" criado por Brian Moriarty, no qual se pode ver como a maior parte das escolhas, são mera ilusão. Por outro lado, não podemos esquecer que a projeção em 1967 era feita com grandes máquinas de projetar película, controladas manualmente, o que impossibilitaria uma criação real de vários ramos de nós.

Em relação ao desenho das escolhas, e pelo que consegui ver, e depois pesquisar online, elas são bastante limitadas, como seria expetável, criando-se muito mais ilusão de escolha, do que consequência efetiva. Contudo, a audiência não sente essa ilusão, a audiência participa ativamente, envolve-se fortemente, e deseja agir nessas escolhas. Instigada pela força questionadora do filme, mas também pela apresentadora que nos espevita a curiosidade do que poderá vir a seguir. Aliás, um dos elementos que mais funciona para esta ativação da audiência, é que em cada paragem do filme, para cada escolha, a apresentadora levanta ligeiramente o véu do que pode vir a acontecer, deixando rolar alguns frames de cada uma das diferentes opções, o que torna ainda mais estimulante todo o processo de escolha.

Trailer recente da experiência

Para fechar, foi sem dúvida uma sessão de cinema, ou experiência, não só muito animada, mas imensamente participada e sentida, a demonstrar todo o poder do cinema interativo, quando bem pensado. Mesmo que recorrendo a ilusão de interação, mesmo que recorrendo a clichés, o trabalho é irrepreensível, o que acredito ter contribuído, e continuar a contribuir, para inspirar muitos dos que se aventuram por estes caminhos.

novembro 11, 2016

Storytelling minimalista

O projeto Future of StoryTelling traz-nos um belíssimo filme com Dan Pinchbeck, a passear-se pelos cenários que inspiraram o videojogo “Everybody's Gone to the Rapture” (2015), enquanto discute o modo como a sua empresa de jogos, a The Chinese Room, funde jogo com história.





Para Pinchbeck é acima de tudo uma questão de espaço, a criação de uma arquitectura capaz de envolver o jogador, de o colocar no centro, a ponto de o obrigar a iniciar ele próprio o processo de contar a história. Ou seja, o que se objetiva, não é contar uma história, mas antes plasmar o universo da história num espaço tridimensional capaz de receber o jogador. No fundo Pinchbeck fala de algo que já conhecemos, o “environment storytelling”, que baseia o seu processo de dar conta da história nos detalhes colocados num ambiente em que se lança o recetor.

Ao longo dos quatro minutos do filme, Pinchbeck vai insistir na ideia de co-autoria e colaboração na criação da história, defendendo o universo de jogo como impulsionador, no qual um conjunto de blocos de história são dispersos, cabendo ao jogador juntar as peças do puzzle, e encontrar a sua própria explicação, em vez de esperar que esta lhe seja ditada pelo jogo.

Aquilo que aqui se discute, e que é a força motriz deste tipo de storytelling, é minimalismo, algo que estava já antes definido como storytelling minimalista, que podemos encontrar múltiplos meios expressivos. Ou seja, a criação de uma linha de eventos subtis, sem conexões fortes, que garante nós da história em branco, abrindo assim espaços a serem preenchidos pelo recetor. O minimalismo não é apenas um modo de minimizar a informação dada, é também um modo de obrigar o recetor a participar na criação dessa informação em falta, o que acaba contribuindo para um maior sentimento de agência, de participação, e claro, co-autoria.

O uso de storytelling minimalista funciona bem nos videojogos porque se torna menos intrusivo, dá espaço ao jogador para que ele se vá inteirando do mundo, e ao mesmo tempo, fazendo desse mundo, o seu também. Da mesma forma, liberta o jogador de um esforço cognitivo dual, entre o jogar e seguir uma história, já que a história lhe chega ao ritmo que o próprio jogador define, podendo este optar por investir no jogo, sem nunca perder nada da história.

Dan Pinchbeck — Parachuting into the Story (FoST 2016)

Assim, e como Pinchbeck acaba por aceitar no final do filme, os videojogos não estão aqui a fazer nada de propriamente novo. Mais do que tudo, o que interessa reter de mais esta conversa, é que as histórias constroem-se nas mentes das pessoas, tudo aquilo que desenhamos, desenvolvemos e criamos materialmente são apenas estímulos à imaginação, são formas de ativar o processo criativo de cada um.