Já
aqui escrevi a propósito de “
Her” antes, tendo falado exclusivamente sobre o seu tema e conflito, a Inteligência Artificial (IA) e os potenciais impactos desta sobre a humanidade. Agora venho falar sobre um outro aspecto que esteve comigo ao longo de todo o visionamento do filme, o design de interacção.
Como tinha falado
nesse primeiro texto, Jonze optou por apresentar um futuro bastante naturalista, isto é sem grandes transformações operadas pelas possibilidades tecnológicas, ao contrário da tradição que vem de
Metropolis ou
Blade Runner. Essa foi uma decisão que acabou por ser muito determinada pelo designer de produção
KK Barrett, que já trabalhou anteriormente com Jonze (
Being John Malkovich, Where the Wild Things Are) e Sofia Coppola (
Lost in Translation, Marie Antoinette), tendo chegado a consultar alguns conceituados designers como Stefan Sagmeister, Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio. E assim é muito interessante seguir uma
entrevista dada por Barrett à Wired, onde ele começa pela principal grande questão por detrás do design do filme: “
In a world where you can buy AI off the shelf, what does all the other technology look like?”
Ou seja, é preciso repensar o ecossistema humano e projetá-lo num futuro mais ou menos próximo, capaz de expressar a ideia de ter decorrido progresso tecnológico. E se na Ficção Científica este futuro costuma ser altamente saturado com enorme presença de luzes, ecrãs, movimento (
Minority Report, The Fifth Element), em
"Her" temos exactamente o contrário de tudo isso. A ideia foi antes pensar em tudo aquilo que a IA poderia simplificar nas nossas vidas, o inverso de um progresso multi, poli, um mundo de tranquilidade, passividade e serenidade. A ideia que subjaz a esta inversão é o mais interessante de tudo, porque se sustenta numa abordagem da tecnologia ao serviço do humano, e não o seu inverso, como tem vindo a acontecer.
Deste modo aquilo que “
Her” trabalha estética e tematicamente, do ponto de vista da
tecnologia, é o design da sua invisibilidade e nesse sentido acaba por ir de encontro aos princípios de transparência do design de interfaces acabando por depois extravasar para todo o design de interacção e de experiência. De todos os elementos principais do filme, Samantha, a personagem que serve o papel de assistente pessoal artificial de Theo, e que dá o título ao filme “Ela”, é aquele em que estes princípios foram mais cuidados. Esta personagem no filme possui apenas uma interface ou forma de expressão, o som, a voz, ou seja mais transparente era impossível. O filme foge da sua representação visual e física. Pode estar espalhada pela casa, mas o mais comum é estar no auricular, acabando por ser uma voz que apenas ouvimos, residente num ciberespaço sem representação física nem expressão visual. Theo entra em comunicação apenas ativando o auricular, para o espectador é como se a voz estivesse sempre ali presente, num acesso directo entre “mentes”.
Isto leva-nos a outras preocupações, como deve agir a persona (personagem) que continua a ser uma máquina, ou seja como se desenha aqui a interacção humano-computador além da interface, nos seus aspectos de interacção e experiência? A forma escolhida foi aproximá-la do ser humano, o que é a abordagem mais natural, já que quanto mais humano mais transparente, porque mais familiar para nós. Mas existe aqui uma questão que o filme acaba por abordar no final, sendo a IA tão desenvolvida, com uma inteligência elevadíssima e com um acesso quase instantâneo a toda a informação que existe em rede, isto obriga a proceder ao inverso do design de interacção que temos feito até aqui.
Cartoon que me foi enviado no dia do pai, mas que dá conta da questão central por detrás do design de interacção humano-computador, que assenta na procura pela emulação do ser-humano no computador.
Ou seja, até aos dias de hoje,
temos procurado sempre emular nas máquinas as atitudes do ser-humano, para criar o máximo de empatia na relação e assim gerar uma interactividade capaz de se aproximar do processo de conversação humana, mas como a IA está ainda pouco desenvolvida, somos obrigados a desenhar quase tudo passo por passo, o que lhe dá um ar mecânico, robotizado. Ora aqui temos o contrário, uma IA tão desenvolvida, que vai obrigar a desenhar passos intermédios na sua capacidade de acção para que ela corresponda ao que o ser humano espera, para que seja transparente e invisível a tecnologia, levando-nos a acreditar que se trata de outro ser-humano. Como Barrett diz,
“…you don’t want a machine that’s always telling you the answer. You want one that approaches you like, ‘let’s solve this together.”
Assim podemos dizer que em termos de design de interacção o filme acerta completamente no que devemos esperar do futuro da tecnologia, já quando entramos no design da experiência, tenho muitas dúvidas, e quase certezas de que o filme está muito longe daquilo que virá a existir. Porque não será isto que o ser-humano vai desejar em termos de experiência, estou a referir-me concretamente ao facto da máquina, o outro que é agora um “ser” dotado de “consciência” gerada por IA, se comunicar conosco apenas através de um único canal perceptivo, a audição. Somos dotados de uma percepção da realidade que se subdivide em cinco sentidos, tendo começado por dar quase atenção exclusiva à visão, depois adicionámos a audição, e mais recentemente introduzimos o tacto com os ecrãs de toque. Ou seja, se hoje conseguimos criar uma experiência que nos envolve por três canais distintos, porque razão haveríamos de andar para trás e voltar a ter apenas um canal novamente?
Aliás, foi isso que mais dúvidas me deixou em toda a relação entre Samantha e Theo, por mais que eu tenha desejado entendê-la, achei-a sempre demasiado distante.
Um canal sensorial apenas, não é suficiente para criar o engajamento necessário, fica-se num nível de abstracção demasiado grande. Torna-se impossível atribuir uma identidade concreta a Samantha, quem é ela para além da voz? A voz é sensual, mas pertence a quem? Como identifico o “outro” apenas por detrás de uma voz? (Senti algo parecido com os videojogos em primeira-pessoa, em que o protagonista não tem corpo porque é apenas uma câmara, e como tal fico sem personagem com quem empatizar.) Porque tudo isto se joga, sempre que precisamos de desenhar relações entre humanos e não-humanos. Sabemos que a forma de facilitar essa relação é desenhar a máquina com a forma mais humana possível, já que não existem seres humanos constituídos apenas por voz.
Além de Samantha, temos toda uma outra quantidade de problemas que não são abordados no filme, que cria aquela ideia de que quase tudo pode ser feito apenas por meio da voz, do som. Barrett fala na ideia de que o som passe a representar a nova Realidade Aumentada, em vez de sobrepormos imagens à realidade, sobrepomos o som. O que é interessante, não digo que não é, mas uma coisa é ter acesso a informação textual por voz, outra é trabalhar informação gráfica, visual, apenas por meio de som. A voz pode dar-me informações sobre o local em que estou, mas o modo como ganho compreensão desse local, é muito diferente se puder ter acesso a um mapa do espaço que me enquadra no contexto geral do lugar. Ou seja,
o problema do som, é que é um canal muito mais limitado, possui apenas um fluxo de transmissão e em modo contínuo, não posso fazer pausa e ficar a investigar o conteúdo, o que o torna muito difícil de ser trabalhado em termos de elementos de contexto.
Aliás neste sentido
os videojogos que Theo joga acabam sendo mais realistas, talvez também porque se tenham distanciado muito pouco daquilo que hoje já é possível fazer. A única parte verdadeiramente interessante dos videojogos de "
Her" foi a IA do pequeno personagem, aplicada no sentido de lhe atribuir uma pré-consciência. Ele não é um mero boneco ali à nossa espera, conversa conosco, chateia-se conosco e chama-nos nomes. Mas isto foi muito pouco explorado pelos designers do jogo. Em certa medida o design dos jogos foi feito à margem do design do filme e isso acaba por se tornar evidente.
Apesar desta minha visão menos concordante, continuo a pensar que "
Her" é um excelente filme, procurou dar respostas seguindo caminhos diferentes, propondo novas possibilidades. É um filme inteligente, reflectido e que vale a pena ser visto e revisto, porque vai continuar a ser capaz de despertar muita discussão durante os próximos anos.