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julho 06, 2019

O caos do social e a força do humano

Vi o filme, "Capernaum" (2018), sabendo pouco mais além de ter ganho prémios e um trailer visto na diagonal. Enquanto o via senti uma abertura de território novo — o caos do Líbano e os efeitos da crise dos refugiados do país vizinho, a Síria, de onde chegou na última década mais de um milhão de refugiados a um país feito de apenas seis milhões —, um mundo de que vamos falando, mas conhecemos mal, com uma perspectiva a partir de dentro, e uma forma de filmar de guerrilha, que garante simultaneamente enorme realismo e intensidade, a fazer lembrar o  melhor de Dardenne, com um pouco de Padilha e Zvyagintsev. “Capernaum” significa “caos” em árabe, e é isso que o filme nos dá a ver, o contínuo caos social, o caos que nós humanos produzimos na relação com os outros e com a realidade, um caos que sabemos ser parte de nós mas que nos habituámos a domar para criar a cultura sobre a natureza.





Falando o filme sobre tantas e imensas vertentes desse caos e dessa relação homem-natureza, foi com algum espanto que no final ao abrir o Letterbox me deparei com as críticas mais populares ao filme, não apenas com notas baixíssimas mas todas focando-se num único ponto desse caos: o controlo da natalidade. A história apresenta uma criança de rua que decide levar os pais a tribunal por o terem feito nascer, dizendo no final que aquilo que quer é que os pais não tenham mais filhos. Para a ala esquerda da crítica, caiu o “carmo e a trindade”, dizem-nos que isto é um filme eugénico, a realizadora logo atacada de pertencer à direita libanesa e andar a fazer dinheiro à custa dos pobres, um filme que não entende que o problema são os políticos e os senhores da guerra, e depois vem apontar o dedo aos pobres pais e ao sexo desenfreado. Estas críticas são imensamente populares, ainda para mais porque em contra-corrente à chamada burguesia de Cannes que ousou dar um prémio a tal filme, mostrando que quem vai a tais festivais é tudo gente que vive numa bolha e não percebe nada deste mundo.

Talvez todos estes pseudo-defensores dos direitos de todos terem os filhos que quiserem, devessem ter atentado na sigla que surge colada ao casaco da criança que percorre todo o filme e diz SPSS. Talvez pudessem ter parado para pensar que SPSS é um software usado pelas Ciências Sociais para compreender os problemas das sociedades, e ajudar a encontrar formas de melhorar as vidas dessas pessoas. Talvez se estes críticos compreendessem um pouco melhor o mundo em que vivem, soubessem que nos países ricos em que vivem, existe todo um sistema de saúde nacional montado, que faz exatamente isto, que tem todo um sistema de Planeamento Familiar montado que passa pela oferta de consultas, informação e acesso gratuito aos mais diversos meios anticoncepcionais, tudo para evitar o descontrolo e insustentabilidade dessa natalidade.

Mas o filme é muito mais do que essa banal defesa do controlo de natalidade, o filme mostra a que ponto pode chegar um lugar, Beirute, que já foi a Paris do médio-oriente nos anos 1960, e que por causa de uma guerra-civil motivada pela força das convicções religiosas, se deixou afundar e autodestruir. A realizadora, Nadine Labaki, já tinha atacado o problema das religiões no filme “Where Do We Go Now?” (2011) usando como fundo a Lisístrata de Aristófanes, dando conta de uma realizadora que não faz filmes apenas porque é giro, mas porque sente a necessidade de pôr o dedo na ferida. E isso mesmo voltou a fazer neste “Capernaum”, pondo a nu os problemas da sociedade libanesa mostrando-lhes o que vai mal no seu país, apontando o dedo sem pudor, e dizendo bem alto que é preciso fazer alguma coisa. Sim, porque existe uma sociedade libanesa que vê cinema, o filme não foi feito para os senhores europeus ou americanos poderem apreciar a arte que se faz nos países “pobres”.

Nadine Labaki e Zain Al Rafeea em rodagem. Numa entrevista Labaki refere que todo foi filmado sem quais acessos especiais nem cortes de trânsito, incluindo a atriz da Etiópia chegou mesmo a ser presa durante a rodagem por não ter papéis.

Um filme destes facilmente cairia na exploração da pobreza, do sentimento fácil, apelando meramente à pena e compaixão, mas nem aí têm razão os seus detractores, apenas no final Labaki permite uma tal sequência. Todo o filme está centrado num personagem que é uma criança de 12 anos, Zain, muito franzina, mas imensamente resiliente, que nunca se vai abaixo por mais fundo o lugar em que se encontre, luta sempre, até ao final. Não há aqui qualquer exploração sentimentalista, antes existe sim o enaltecimento das qualidades humanas, daquilo que nos motiva a lutar todos os dias, a justiça, e daquilo que mantém os humanos em pé, a solidariedade e a empatia. Labaki utiliza os personagens como veículos da força humana capaz da sobrevivência nos mais inóspitos lugares, lutando contra todos os problemas recorrendo à inteligência armados pela justeza.

Temos de aceitar que a construção de Zain é magistral, não apenas pela performance ímpar da criança (ela própria um refugiado sírio na Líbia, hoje a viver na Noruega com os seus pais) mas pela composição criada para a sua apresentação, que põe em evidência desde o início o modo como a inteligência e o espirito crítico faz a diferença num mundo em que todos se limitam a seguir os exemplos à sua volta. Os seus pais quando questionados pelo tribunal é apenas isso que dizem, que foram assim tratados pelos seus pais, e por isso como eles continuam a fazer o mesmo. Mas Zain não se limita a fazer o mesmo que os seus pais ou os amigos do bairro, porque Zain não se limita a estar parado em casa, todos os dias tem de partir à luta, empurrado pelos pais e pela necessidade de alimentar todos aqueles irmãos. E é dessa luta diária que Zain extrai que lutando poderá conseguir mais, que fazendo outras opções poderá chegar a algo diferente, e não limitar-se a aceitar o mínimo que lhe querem oferecer. Existem duas cenas absolutamente excecionais e instigantes, uma inicial em que Zain dá a sua camisola à sua irmã para que ela consigo controlar o fluxo menstrual, e possa esconder à sua mãe que já entrou na puberdade, e uma outra em que Zain surge a aperfeiçoar o sotaque sírio para poder dirigir-se a um centro de apoio a refugiados sírios e assim conseguir comida para ele e para o bebé de 1 ano de quem toma conta.

Podemos dizer que o filme arrisca excessivamente, que quase se poderia ler como um dedo apontado à parte da sociedade em questão, atirando-lhes todas as culpas pelo seu insucesso, que é uma clara visão de direita, de que os pobres são pobres porque o querem ser. Mas querer ver tal mensagem no filme de Labaki, só pode partir de quem se ocupa de deturpação das mensagens e convicções dos outros. Se realmente o problema fosse esse, e fosse isso que corresse nas veias de Labaki, porque raio iria ela mostrar que pode brotar tanta inteligência de uma criança vinda de uma família tão indigente? Porque raio colocar em cena uma refugiada da Etiópia que tem de fugir para a clandestinidade porque os patrões ricos para quem trabalha não admitem empregadas grávidas? Porque raio colocar tanta enfâse nas repugnantes leis que permitem ter homens a casar com crianças de 11 anos?

Ainda bem que a crítica internacional soube compreender esta obra e agraciar a sua receção, só tenho pena que os júris do BAFTA e do Oscar não tenham também compreendido, tendo deixado-se seduxir por um muito inferior "Roma" (2018).

maio 21, 2017

Realismo Duro

É poderosa a capacidade de Cristian Mungiu de colocar no ecrã as complexidades das vidas modernas, de a partir das suas superfícies de normalidade conseguir extrair interstícios das suas fragilidades. Algo que não pode ser estranho ao facto do filme ser dirigido mas também escrito pelo próprio, mas ainda mais ao facto de Mungiu ter pensado inicialmente seguir uma carreira como escritor em vez de cineasta, tendo começado por estudar literatura e só depois cinema. "Graduation" (2016) é um grande filme que podia ter sido um grande livro. Mungiu aborda a luta da família para suceder no meio de uma sociedade que exige competências e resultados aos seus filhos, tudo permeado pela fina linha que regula a moral entre a honestidade e o ‘danem-se todos os outros’, e por um país, a Roménia, que escapou ao comunismo e procura agora edificar-se numa nova filosofia de vida capitalista.




Mungiu não é nenhum novato, já nos deu os belíssimos “4 Months, 3 Weeks and 2 Days” (2007) e “Beyond the Hills” (2012). “Graduation” (2016) é um regresso ao contemporâneo urbano, do filme de 2007, ao desatar das teias sociais e dos sentires de cada ser individual em face das injustiças e das incapacidades de lidar com as mesmas. Mungiu apresenta-nos a história de uma família que lutou para dar o melhor à sua filha única, e chegados ao final do liceu vê como único caminho possível, numa Roménia degradada, mandá-la estudar para Inglaterra. O filme vai concentrar-se sobre o casal, os seus desejos e problemas, e o modo como a corrupção ainda contamina muitos dos meandros da sociedade romena. Contudo Mungiu não faz uma crítica de cima, Mungiu leva-nos para dentro dos problemas e obriga-nos a empatizar com os personagens, a sentir o que eles sentem, e a pensar no que faríamos no lugar deles, o que torna a experiência da obra densa e muito impactante.

Christina Mungiu na rodagem de "Graduation" dando indicações aos atores.

Em termos criativos, Mungiu consegue elevar a sua expressão por meio de um texto profundo, trabalhado muito bem pela montagem da obra nas suas intensidades, fazendo com que duas horas pareçam uma, e por uma direção de atores que assume uma naturalidade impressiva, tornando completamente real o texto. No campo mais plástico, a cinematografia apesar de naturalista é trabalhada com imenso cuidado, gratificando-nos com forte saturação, o que cria um contraste entre o deslavado comunista e o desejo do novo capitalista. Tudo isto é acompanhado por uma faixa de som na qual não existe música além da diegética (no carro e em casa), mas que está sempre carregada de sonoridades ambiente, como os telefones que tocam, as pessoas que conversam entre si, os carros, as portas, tudo mexe sonoramente, dando uma ideia de vida ativa e intensa, na qual temos de nos encontrar e trilhar as nossas difíceis escolhas. Impossível não pensar em Dardenne, Haneke ou Farhadi.

É melancólico, porque é profundamente humano, é verdade que existe vida para além dos problemas que se apresentam, porque em meio à tragédia existe sempre tempo e espaço para a comédia, mas o modo como termina o filme é bastante significativo, já que torna inevitável a comparação com o cinema americano, nomeadamente o modo como são tratados estes momentos de graduação, que nos questiona ainda mais sobre a diferença de mundos, de realidades e sentires. Por tudo isto, não admira que Mungiu tenha levado de Cannes o prémio para melhor realizador por este filme.

Trailer de "Graduation" (2016)

fevereiro 28, 2017

Eu, Daniel Blake, sou um Cidadão

Brutalmente honesto. “I, Daniel Blake” (2016) é um filme sobre a dura realidade de milhões de cidadãos que vivem em 2017 num suposto mundo ocidental, moderno e rico. Não é sobre a Inglaterra, sobre a direita política britânica, não é sobre a privatização dos serviços de Segurança Social, é sobre tudo isso, mas é também sobre todo o estado de subsistência da governação europeia.



Da Inglaterra à Grécia, de Itália a Portugal, as resoluções de governação pouco têm divergido. Incapazes de dar resposta às necessidades dos cidadãos têm-se limitado a criar formas de protelar resoluções, na esperança de que os problemas se resolvam por si. É isto que “I, Daniel Blake” cabalmente demonstra, porque é isto que tem vindo a acontecer. Em Portugal até já o pudor perdemos, falando em "peste grisalha" ou na necessidade de se "começar a morrer mais cedo".

Todos sabemos que vivemos uma das eras mais difíceis em termos governativos. A velocidade de mudança é extenuante, e muitos dos nossos cidadãos não têm formas de se adaptar. Nem sequer precisamos de falar de Automação ou Inteligência Artificial, tudo está a mudar demasiado depressa e ninguém tem mapas ou guias para ajudar a navegação. Por outro lado, não é menos verdade que nunca existiu tanta desigualdade em todo o planeta, com a divisão 1%/99% que nos mais recentes dados mostraram que 8 pessoas apenas no planeta detinham o mesmo que os restantes 50%. Quando olhamos aos gastos de um fim-de-semana de um presidente americano na sua estância de férias, e colocamos lado a lado com a dura realidade de milhões de cidadãos, interrogamo-nos sobre o que está a passar-se à nossa volta.

Ken Loach pegou em Kafka e injetou-lhe vida humana. Mas Loach não ganhou a Palma de Ouro em Cannes por contar uma boa história, ganhou porque criou uma obra que se transcende como devem fazer as grandes obras de arte. Porque a arte não existe para servir egos, a arte existe para expressar ideias, existe para chamar a atenção e moldar a sociedade. A arte é aquilo que nos resta enquanto resposta civilizada ao desmoronamento da sociedade.

"I, Daniel Blake, am a citizen,
nothing more and nothing less."