Anil Seth é professor de neurociências computacionais, com uma formação de base em ciências naturais e um doutoramento em ciências da computação. O seu trabalho no domínio das ciências da consciência tornou-se uma referência nos últimos anos, sendo não só altamente citado pela academia, como seguido pelos média tradicionais. Para esse reconhecimento terá contribuído a TED que realizou em 2017, “Your brain hallucinates your conscious reality”, que conta com 14 milhões de visualizações, e pode ser vista como uma síntese de tudo aquilo que nos apresenta neste livro “Being You: A New Science of Consciousness” (2021).
Seth procurou uma forma diferente de abordar a Consciência por forma a evitar os problemas de que padecem outras abordagens, nomeadamente deixou de questionar o que é a consciência, passando a centrar-se na busca de explicações sobre como funciona a consciência. Deste modo, Seth construiu uma teorização imensamente robusta que ainda que contenha alguns problemas — excesso de funcionalismo e metáforas delimitadas pelas teorias da informação —, nos oferece uma visão muito clara e lógica do que está, ou pode estar, por detrás daquilo que somos.
A teoria segue uma tendência dos últimos 25 anos nas neurociências que olham para a dualidade corpo e mente como una e indissociável, de que António Damásio foi um dos percursores. Damásio defendeu que não existia emoção sem marcadores somáticos (registos de experiências anteriores fixados pelos nervos e sensores do nosso corpo). Seth defende que não existe consciência sem uma interação entre cérebro e corpo, daí que não acredite na hipótese de uma consciência criada pela IA, sustentada numa ideia simplesmente ilustrada pela seguinte frase: “Consciousness and intelligence are very different things. You don't have to be smart to suffer, but you probably do have to be alive.”
No resto deste texto, resolvi extrair um conjunto de citações da Ted Talk, da entrevista à Quanta, e do seu livro, e dar conta dos 4 pontos principais — A função da consciência; o como sou Eu; a percepção do livre arbítrio; e a Energia Livre — discutidos e defendidos por Anil Seth. No final, faço uma discussão mais crítica da proposta.
1- A Função da Consciência
Este é o primeiro grande ponto do livro, no qual Seth não se dedica a responder ao que é, mas antes ao como funciona. Aqui começa a abordagem de Seth, assente nos princípios computacionais da informação:
“Whenever we are conscious, we are conscious of something, or of many things. These are the contents of consciousness. (…) Imagine, for a moment, that you are a brain. Really try to think about what it’s like up there, sealed inside the bony vault of the skull, trying to figure out what’s out there in the world. There’s no light, no sound, no anything – it’s completely dark and utterly silent. When trying to form perceptions, all the brain has to go on is a constant barrage of electrical signals which are only indirectly related to things out there in the world, whatever they may be. (…) How does the brain transform these inherently ambiguous sensory signals into a coherent perceptual world full of objects, people, and places?” Book
“So perception -- figuring out what's there -- has to be a process of informed guesswork in which the brain combines these sensory signals with its prior expectations or beliefs about the way the world is to form its best guess of what caused those signals. The brain doesn't hear sound or see light. What we perceive is its best guess of what's out there in the world.” TED
“All this puts the brain basis of perception in a bit of a different light. Instead of perception depending largely on signals coming into the brain from the outside world, it depends as much, if not more, on perceptual predictions flowing in the opposite direction. We don't just passively perceive the world, we actively generate it. The world we experience comes as much, if not more, from the inside out as from the outside in.” TED
Seth aprofunda depois o modo como é processada a informação exterior, como é que a nossa consciência a transforma nas ideias internas sobre a realidade que está a experienciar. Para isso, usa o conceito de inferência bayesiana, em substituição dos processo de raciocínio lógico — dedutivo e indutivo —, para explicar como processamos o mundo.
“Abductive reasoning – the sort formalised by Bayesian inference – is all about finding the best explanation for a set of observations, when these observations are incomplete, uncertain, or otherwise ambiguous. Like inductive reasoning, abductive reasoning can also get things wrong. In seeking the ‘best explanation’, abductive reasoning can be thought of as reasoning backward, from observed effects to their most likely causes, rather than forward, from causes to their effects – as is the case for deduction and induction.
Here’s an example. Looking out of your bedroom window one morning, you see the lawn is wet. Did it rain overnight? Perhaps, but it could also be that you forgot to turn off your garden sprinkler. The aim is to find the best explanation, or hypothesis, for what you see: given the lawn is wet, what is the probability (i) that it rained overnight, or (ii) that you left the sprinkler on? In other words, we want to infer the most likely cause for the observed data.
Bayesian inference tells us how to do this. It provides an optimal way of updating our beliefs about something when new data comes in. Bayes’ rule is a mathematical recipe for going from what we already know (the prior) to what we should believe next (the posterior), based on what we are learning now (the likelihood). Priors, likelihoods, and posteriors are often called Bayesian ‘beliefs’ because they represent states of knowledge rather than states of the world.
(…)
Bayesian inference has been applied to great benefit in all sorts of contexts, from medical diagnosis to searching for missing nuclear submarines, with new applications emerging all the time. Even the scientific method itself can be understood as a Bayesian process, in which scientific hypotheses are updated by new evidence from experiments.” Book
A partir deste modo de conceber a Realidade, Seth vai dizer então que aquilo que vemos como Realidade não passa de um processo de Alucinação por parte da nossa consciência, mas não uma alucinação qualquer:
“Now, think about this for a minute. If hallucination is a kind of uncontrolled perception, then perception right here and right now is also a kind of hallucination, but a controlled hallucination in which the brain's predictions are being reined in by sensory information from the world. In fact, we're all hallucinating all the time, including right now. It's just that when we agree about our hallucinations, we call that reality.” TED
“These perceptual expectations shape our conscious experience. When we agree with each other about our hallucinations we call it “reality”; when we don’t we’re described as “delusional”. Book
Assim, a nossa alucinação controlada ganha respaldo, ou seja, é confirmada pelas alucinações controladas dos nossos pares. Quando todos alucinamos o mesmo, esta ganha um selo de autenticidade, de verdade partilhada, com o que passamos a gerir o mundo à nossa volta. Mas isto não é assim só porque nos parece funcionar bem de um ponto de vista da psicologia social, Seth explica porque acontece assim:
“Why do we experience our perceptual constructions as being objectively real? On the controlled hallucination view, the purpose of perception is to guide action and behaviour – to promote the organism’s prospects of survival. We perceive the world not as it is, but as it is useful for us.” Book
Ou seja, a consciência é a alucinação que melhor serve as nossas hipóteses de sobreviver neste planeta.
2 - Como Sou Eu?
No seguimento do ponto anterior, se a consciência é uma alucinação controlada, guiada pela necessidade de sobrevivência, de onde surge o Eu? Porque numa primeira leitura, e seguindo uma outra velha metáfora, o Eu poderia ser aquele que está sentado dentro do nosso cérebro a ver o “filme interior”. Contudo, não existe qualquer “filme interior” (algo que o próprio Seth diz ter reconhecido após uma interação com Daniel Dennett), já que a experiência da consciência é apenas a soma das diferentes alucinações produzidas. Assim:
“your experience of being a self, the specific experience of being you, is also a controlled hallucination generated by the brain. This seems a very strange idea, right? Yes, visual illusions might deceive my eyes, but how could I be deceived about what it means to be me? For most of us, the experience of being a person is so familiar, so unified and so continuous that it's difficult not to take it for granted. But we shouldn't take it for granted. Many experiments show, and psychiatrists and neurologists know very well, that these different ways in which we experience being a self can all come apart. What this means is the basic background experience of being a unified self is a rather fragile construction of the brain.” TED
“The self is not an immutable entity that lurks behind the windows of the eyes, looking out into the world and controlling the body as a pilot controls a plane. The experience of being me, or of being you, is a perception itself – or better, a collection of perceptions – a tightly woven bundle of neurally encoded predictions geared towards keeping your body alive. And this, I believe, is all we need to be, to be who we are.” Book
Não construímos a ideia do Eu apenas a partir da percepção do nosso corpo externo, usamos ainda a interocepção para aceder ao interior, a partir do que procedemos a uma construção de hipóteses:
“We don't just experience our bodies as objects in the world from the outside, we also experience them from within. We all experience the sense of being a body from the inside. And sensory signals coming from the inside of the body are continually telling the brain about the state of the internal organs, how the heart is doing, what the blood pressure is like, lots of things. This kind of perception, which we call interoception, is rather overlooked. So experiences of having a body are deeply grounded in perceiving our bodies from within.” TED
“What we consciously see depends on the brain's best guess of what's out there. Our experienced world comes from the inside out, not just the outside in. The rubber hand illusion shows that this applies to our experiences of what is and what is not our body. And these self-related predictions depend critically on sensory signals coming from deep inside the body. And finally, experiences of being an embodied self are more about control and regulation than figuring out what's there. So our experiences of the world around us and ourselves within it -- well, they're kinds of controlled hallucinations that have been shaped over millions of years of evolution to keep us alive in worlds full of danger and opportunity. We predict ourselves into existence” TED
No fundo, a consciência de mim, o meu EU, é apenas a consciência da minha existência que me é garantida por um conjunto alargado de sinais e estímulos agregados pelo cérebro:
“For a conscious creature, there is something that it is like to be that creature. There is something it is like to be me, something it is like to be you, and probably something it is like to be a sheep, or a dolphin. For each of these creatures, subjective experiences are happening. It feels like something to be me. But there is almost certainly nothing it is like to be a bacterium, a blade of grass, or a toy robot. For these things, there is (presumably) never any subjective experience going on: no inner universe, no awareness, no consciousness.” Book
3 - Livre Arbítrio, um simulador futuro
Seth começa por retirar da mesa duas definições — “spooky free will” e o determinismo. A primeira, assume que uma qualquer entidade em nós, toma as decisões sem olhar a qualquer condicionante natural, porque se assim não for, então temos um determinismo que regula tudo aquilo que podemos ou não fazer. Seth diz, “Once spooky free will is out of the picture, it is easy to see that the debate over determinism doesn't matter at all.”
“free will is not illusory at all. So long as we have relatively undamaged brains and relatively normal upbringings, each of us has a very real capacity to execute and to inhibit voluntary action, thanks to our brain’s ability to control our many degrees of freedom. This kind of freedom is both a freedom from and a freedom to. It is a freedom from immediate causes in the world or in the body, and from coercion by authorities, hypnotists and mesmerists, or social-media pushers. It is not, however, freedom from the laws of nature or from the causal fabric of the universe. It is a freedom to act according to our beliefs, values, and goals, to do as we wish to do, and to make choices according to who we are.” Book
Mas o interessante da sua discussão acaba sendo mais uma vez a discussão em redor da função do livre arbítrio:
“our sense of free will is very much about feeling we ‘could have done differently’. This counterfactual aspect of the experience of volition is particularly important for its future-oriented function. The feeling that I could have done differently does not mean that I actually could have done differently. Rather, the phenomenology of alternative possibilities is useful because in a future similar, but not identical, situation I might indeed do differently. If every circumstance is indeed identical on Tuesday as on Monday, then I can do no differently on Tuesday than on Monday. But this will never be the case. The physical world does not duplicate itself from day to day, not even from millisecond to millisecond. At the very least, the circumstances of my brain will have changed, because I’ve had an experience of volition on Monday and paid attention to its consequences. This, by itself, is enough to affect how my brain can control my many degrees of freedom when setting out to work again on Tuesday.‡ The usefulness of feeling ‘I could have done otherwise’ is that, next time, you might.” Book
4. O que nos mantém coesos: Free energy
Este último ponto é o menos discutido, não aparece ainda na TED, mas é para mim o mais relevante de toda a teorização, ou pelo menos a parte mais original. Seth usa o conceito de Energia Livre
“I think the simplest articulation of the free-energy principle is this: Let’s think about living systems — a cell or an organism. A living system maintains itself as separate from its environment. For example, I don’t just dissolve into mush on the floor. It’s an active process: I take energy in, and I maintain myself as a system which maintains its boundaries with the world.” Quanta
“The free-energy principle is not itself a theory about consciousness, but I think it’s very relevant because it provides a way of understanding how and why brains work the way they do, and it links back to the idea that consciousness and life are very tightly related. Very briefly, the idea is that to regulate things like body temperature — and, more generally, to keep the body alive — the brain uses predictive models, because to control something it’s very useful to be able to predict how it will behave. The argument I develop in my book is that all our conscious experiences arise from these predictive models which have their origin in this fundamental biological imperative to keep living. ” Quanta
“We live with an exaggerated, extreme form of self-change-blindness, and to understand why, we need to understand the reason we perceive ourselves in the first place. We do not perceive ourselves in order to know ourselves, we perceive ourselves in order to control ourselves.” Book
“I eventually get to the point that consciousness is not there in spite of our nature as flesh-and-blood machines, as Descartes might have said; rather, it’s because of this nature. It is because we are flesh-and-blood living machines that our experiences of the world and of “self” arise. ” Quanta
Discussão crítica
Por mais que tenda a olhar criticamente para toda esta visão, profundamente devedora de um modelo computacional assente numa teorização de informação, à semelhança da crítica que fiz ao livro do mesmo ano, "A Thousand Brains: A New Theory of Intelligence" (2021) de Jeff Hawkins, a verdade é que a relação apresentada entre o corpo, a natureza e a evolução faz sentido. Esta abordagem leva-nos a ponto de se permitir conceber a consciência sem qualquer natureza excecional, apenas como uma parte natural de nós que serve para garantir a manutenção do corpo.
Contudo, e Seth cita também Lisa Feldman-Barrett, esta abordagem parte do fundamento do Quadro em Branco, com a Consciência a ser apresentada como mero gestor de hipóteses. Porque se a abordagem evolucionista do comportamento pode servir para explicar parte daquilo que somos, como Denis Dutton fez muito bem com a Arte, na verdade estas abordagens ficam aquém da complexidade daquilo de que somos feitos. Movemo-nos por mais do que necessidades fisiológicas. É impossível atirar borda fora tudo o resto de que necessitamos e que depende da volição da nossa consciência.
Feldman-Barrett diz que as emoçoes não são inatas porque não existem marcadores biológicos da emoção. Ou seja, não é possível identificar qualquer componente biológica que funcione como produtor de emoções em todos nós. Contudo, se formos além, também não deverão existir marcadores biológicos da personalidade, ou da vontade humana, e no entanto tais elementos não deixam de circunscrever aquilo que constitui a nossa consciência. Se Freud nos via como movidos pela vontade do prazer, Alfred Adler pela vontade do poder, e Frankl pela vontade do significado, de alguma forma temos de dar conta de marcadores que enviesam totalmente a nossa capacidade para calcular probabilidades e agir sobre o mundo. Podem não existir marcadores biológicos, ou podemos simplesmente não ter encontrado forma de os identificar. Contudo, esses marcadores continuam a fazer parte da nossa psicologia e naturalmente da nossa consciência.
A consciência pode ter nascido de uma necessidade fundamental de suporte à vida. Mas a linguagem que sustenta as relações humana não tem por base esse desígnio, e é ela a maior responsável pelo incremento da complexidade com que o nosso cérebro interpreta a realidade. Precisamos de sobreviver, e contamos com a Consciência para nos manter enquanto identidade única, mas sobre ela, contamos com múltiplas outras dimensões que formam e condicionam essa identidade. Não podemos simplesmente atirar tudo borda fora, com a desculpa de que não existe qualquer homúnculo ou de que não existem elementos físicos que o suportem. Precisamos de continuar a trabalhar e a aprofundar para chegar a compreender efetivamente de que é que somos feitos.
Boa tarde Nelson, há algum tempo que não falávamos. Como sabe, sigo as suas sugestões, desde que se encontrem no espectro do meu gosto e que o meu intelecto consiga alcançar e assim cheguei a Max Richter, que desconhecia. Ouvi os Infras 5, 3 e 8 mas o que me despertou a atenção foi o De Profundis e como tudo está ligado como diz sabiamente Humboldt, dei comigo a recordar o livro de José Cardoso Pires.
ResponderEliminarA grande mais-valia da Internet é a partilha; deste modo, aqui lhe deixo um registo mais melódico mas menos profundo, que gosto bastante e oiço amiúde: Ólafur Arnalds - happiness does not wait.
É de uma indescritível beleza para mim esta peça musical, embora o seu título seja angustiosamente inquietante.
Um abraço
Obrigado Joaquim. Eu também gosto muito do Olafur Arnalds, e esta música que me deixou, é belíssima, e muito próximo do estilo do Max Richter. São verdadeiros escapes, fugas para mundos de sublime.
EliminarMuito interessante.
ResponderEliminarInteressante, e depois impressionante :)
EliminarA consciência pode ter sido formada pela homeostase, com o objetivo da manutenção da vida. Mas ela possui aspectos de autodestruição também, como o próprio corpo naturalmente. E também mutável, em termos de percepção da realidade e visão do mundo
ResponderEliminarInteressantíssimo, nunca tinha pensado nisso, no facto da homeostase também conduzir à destruição. Existe algum livro ou autor que aborde isso mais em concreto?
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