É o sexto tomo da série Assassin's Creed (AC), que por razões do flop ocorrido com o seu antecessor, “Assassin's Creed Unity” (2014), vinha obrigado a dar mostras de que a série não seria votada ao esquecimento. Syndicate conseguiu grande apoio da crítica, mas não se pode dizer o mesmo do público que, apesar de reconhecer as melhorias, sente estar apenas a obter mais do mesmo. Do meu lado, e por ter adorado Unity, não tinha qualquer ânsia de jogar Syndicate, contudo ainda bem que o fiz, já que o prazer que foi passear por Paris foi totalmente replicado com o passeio por Londres. Em síntese, Syndicate melhorou a jogabilidade, melhorou a sensação de ambiente vivo, incluiu duas personagens ricas, incluindo uma feminina, mas ficou-se quanto à história, nem mesmo os personagens históricos — Charles Dickens, Charles Darwin, Karl Marx ou Rainha Victória — salvam a fragilidade do guião.
Em termos da assinatura da série, a reconstituição virtual histórica da cidade, temos do melhor que esta última geração de consolas nos pode dar. A cidade de Londres está uma delícia, com todo controlo atmosférico — sol, chuva, nuvens — a funcionar em pleno, criando momentos de puro êxtase visual ao longo de todo o jogo. Poder fazer um leap-of-faith a partir do pináculo do Big Ben é verdadeiramente impactante, tal como poder aceder a áreas que no mundo real podemos apenas ver à distância, ou detrás de grades.
Esta componente foi ainda mais engrandecida graças à introdução de duas mecânicas — a condução de carruagens e o gancho de corda — que nos permitem passear por toda Londres de forma muito mais rápida, quase sem necessidade de recorrer aos portais fast travel, o que por outro lado garante um maior envolvimento da nossa parte com o ambiente, tornando o mundo de jogo mais orgânico, já que vamos encontrando as missões, e as side quests, à medida que vamos atravessando a cidade.
Na jogabilidade existe um incremento nos sistemas de colecta que permitem aumentar as recompensas pelo progresso no jogo. O mais relevante surge pela divisão dos bairros de Londres em áreas dominadas por templários que temos de ir eliminando para podermos garantir a segurança dos bairros. Apesar de se perceber o seu sentido quantitativo, acaba funcionando em termos qualitativos uma vez que se justifica totalmente no que toca à vida da cidade. Ou seja, é gratificante eliminar os templários totalmente de um bairro, e depois passar lá a seguir a perceber que as pessoas que lá estão, estão do nosso lado, e não contra nós, está longe de ser um mero colecionar de pontos ou jóias.
O menos da jogabilidade já não é novo, e assenta nas lutas. Percebendo a necessidade de ir evoluindo e ganhando experiência, na maior parte do tempo damos conosco em lutas em que não sabemos o que realmente estamos a fazer, não fosse o stealth, os puzzles e as coletas, e estaríamos nas missões apenas à espera dos pontos seguintes da história. Desta vez nem a evolução e compra de armas mais pesadas me fez sentir confortável nas lutas. Temos um jogo imensamente fluído, com personagens que literalmente voam verticalmente, que nos permitem atravessar quilómetros por meio de estruturas imensamente complexas, sem qualquer problema, mas quando deparamos com um inimigo, ou o matamos logo sem pré-aviso, ou entramos na luta e esperamos que termine após carregar estupidamente em botões ao acaso.
No campo da história é onde a Ubisoft nos perde totalmente, algo que é também já recorrente. No tomo anterior tivemos a Revolução Francesa, agora a Revolução Industrial, e nada disto é suficiente para criar verdadeiro drama, para nos agarrar e prender aos desejos dos personagens?! Diga-se que Evie e Jacob são fantásticos em termos de caracterização, mas em tudo o resto são meras marionetas da história, que é totalmente oca. Uma pena, muita pena, e só desejo que um dia os responsáveis da Ubisoft acordem e contratem alguém que realmente saiba escrever para os seus quadros. É inaceitável que com todo o talento aqui presente não se tenha investido a sério em escritores, sendo nós obrigados a assistir a uma história que se arrasta até ao final menos climático que alguma vez joguei, tornando tudo ainda mais ridículo ao evocar Charles Dickens.
No geral, é uma boa experiência, principalmente por nos permitir reviver uma das cidades mais emblemáticas do globo, que apesar de se apresentar como era há 150 anos tem ainda muita semelhança com os dias de hoje. Um mundo de jogo repleto de ação e possibilidades que garantem mais do que uma experiência narrativa, uma experiência imensamente lúdica.
A VentureBeat conseguiu uma entrevista longa e exclusiva à volta do storytelling nos videojogos com duas das mais importantes figuras femininas dos videojogos da atualidade, Amy Hennig responsável pelos três primeiros jogos da série Uncharted, incluindo os guiões, e Jade Raymond produtora dos dois primeiros "Assassin’s Creed" e "Watch Dogs". A entrevista não traz nada de muito novo, mas é sempre bom perceber que existe sintonia entre a indústria e a academia.
Amy Hennig (1965), diretora e guionista
Jade Raymond (1975), produtora
A entrevista reflete muita da discussão patente na academia relacionada com a Agência, Autoria, Liberdade, Interatividade. Questões como Hennig lança, “in the literal sense, is there a story if there’s no author?”, são centrais nas nossas preocupações no que toca ao desenvolvimento da narrativa num meio que tem permitido evoluir uma estrutura que estava de algum modo estagnada nos restantes meios. Claro que apesar de a história ser central no puxar da carroça emocional do jogador, tudo isto só faz sentido, como diz Henning quando um videojogo nos faz “sentir algo através das mecânicas”.
Apesar desta insistência na narrativa, que assumo como minha obsessão nos videojogos, temos de ser mais abertos, e condescender que nem tudo pode ou deve ser feito da mesma forma. Raymond diz a determinado momento algo próprio do senso comum, mas que muitas vezes esquecemos,
“Different players are looking for a different amount of authorship and a different amount of agency. We’re trying to find how to push and redefine that type of narrative-driven experience. We’re looking for more player agency and different types of interaction.” Raymond
Reforçado por Hennig de novo quando o entrevistador fala da sua dificuldade em lidar com a complexidade dos mundos de jogo abertos, “It’s like what we said – different tastes for different players. Not everybody likes the same movies. Not everybody is going to like the same type of game.”
Nos últimos anos tenho dado comigo a gostar mais e mais de mundos de jogo abertos que multiplicam as possibilidades de acesso narrativo, que no fundo ampliam a minha agência sobre o mundo e história, mas compreendo que é algo bastante complexo e exigente para o jogador, embora admitamos que se usarmos bem as ferramentas disponibilizadas pelos HUDs facilmente nos conseguimos orientar. Claro que gosto de mundos abertos, mas porque sou ajudado pelos designers, discordo totalmente da ideia de jogar num mundo aberto sem qualquer sistema de referência como ainda na semana passada defendia Mark Brown no seu Game Maker's Toolkit.
Game Maker's Toolkit "Following the Little Dotted Line" (2015) de Mark Brown
Tudo isto se reflete no modo como Hennig, alguém com enorme experiência em termos de direção e escrita para videojogos, define a abordagem do storytelling aos videojogos:
“there’s no right way to do it. The right way is what works for your audience, and that’s all kinds of things. There are games that have linear stories, games that have branching stories, games that have minimal story – you’re inferring the story as you play. But they’re all effective (..) Our challenge as game designers is not so much to be dogmatic about the right or wrong way to tell stories." Hennig
Tenho mais dificuldade em seguir Hennig quando se escuda na interpretação como forma de interatividade.
“One form of interactivity is interpretation. I find poems and lyrics more interactive than a non-fiction book, because I’m actively engaged in interpreting that experience through the collision of metaphor and information. Games are like that.” Hennig
Bem sei que assim é do ponto de vista cognitivo, mas isso em nada se diferencia de qualquer outro meio narrativo, e acaba mesmo por chocar com o que ela defende logo a seguir que deve surgir como central no desempenho de um videojogo
“Our goal as game-makers, always, is to make sure we enable as much player agency and choice as possible within the space that makes sense in the game.“ Hennig
Claro que temos o reverso da medalha, e que ela bem expõe naquilo que se supõe ser uma história,
“story implied authorship. It implies intent and structure. A well-told story generally doesn’t meander. It has very specific landmarks and beats and upturns and downturns and obstacles and reversals. It has a resolution that you want to feel both surprising and inevitable. That’s story." Hennig
No fundo, andamos nesta batalha há décadas, e estamos longe de ter encontrado uma solução, como acaba dizendo Raymond
“I don’t think anyone has found the secret recipe, though. Like you said, some games are striving for 100 percent player agency, and you end up getting lost or missing the story entirely or off on random quests to fetch things. On the opposite end of the spectrum, you feel like you have no agency. You’re just doing quick time events, pressing buttons. Neither of those is the answer. But I think there’s a sweet spot, and that’s what excites me personally. We have to find out what the perfect interactive game can be.” Raymond
Noutra parte da entrevista a discussão aborda uma complexidade que para nós académicos, menos habituados a lidar com as complexidades da produção de um artefacto, menos ainda destas dimensões, tendemos a esquecer, as cutscenes. Vistas de fora parecem ser tapa-buracos, estratégias estudadas para desculpar a inabilidade e fazer progredir o jogo narrativamente, quando no fundo os criadores gostam menos delas que nós, como já ontem lia no livro “Extra Lives” (2010), Clint Hocking (diretor criativo de "Far Cry 2" e "Splinter Cell: Chaos Theory") dizer a Tom Bissel:
Clint Hocking, diretor e guionista
"I despise cut scenes, we have a mandate, actually, not to use cut scenes. It's not necessarily engraved in stone, but most of us believe we need to try to tell a story in an interactive way (..) The constraints that they bring are significant. Once a cut scene is built and in the game, you can't change it. You're done. A lot of my work on the original Splinter Cell was building cut scenes, which is a massive waste of time. They were taking my time away from making the game more fun.” Hocking
Algo que surge aqui quando Raymond e Hennig procuram dar resposta a essa inabilidade de dar conta da progressão e consequências no jogo
Raymond: "But I feel like the link should be —If, for example, you’re writing 2000 lines of dialogue for your story anyway, wouldn’t it be easier to just say, “I have these five bits I’m tracking. How many civilians have you killed?” And just reflect that somehow in the story, so that when you encounter someone, they comment, “Okay, you must be a real badass now, because you’ve been driving like an asshole."
Hennig: "But if you have a game that has cinematics, now you have to maintain all these branches."
No final fica a interessante reflexão de Raymond sobre a que objetivamos com os videojogos, que no fundo não é diferente do que fazemos com o cinema e literatura, embora aqui talvez possamos ver isto de modo ainda mais objetivo, discreto e concreto:
“When I think about games — You go to school and you take tests. You get it back and you got a 90. Great, good job, you’re a smart kid, pat on the back. After you finish school you go out in the real world. You get evaluations at your job, but it’s all in this soft style. Who knows? It’s not like I got the math questions right. I don’t really know how well I’m doing. Your life is missing that sense of clear accomplishment and doing well. Promotions are so vague. What I love about games is that a lot of these systems are trying to boil down the rules we deal with in real life into something simple. You can have the sense of clear satisfaction that you don’t necessarily get in real life after you finish school.” Raymond
Isto é central, os mundos narrativos decorram no meio que decorram têm como missão central dar sentido à nossa vida, e fazem-no simplificando a sua complexidade, a sua variabilidade, e a sua infinitude.
Tinha enormes expectativas em relação a “Assassin’s Creed Unity” essencialmente por retratar um dos períodos históricos que mais admiro, a Revolução Francesa. É um período fulcral da era moderna que ficou marcado pelo grito: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Parece um simples mantra, mas foi imensamente relevante na mudança das nossas vidas, o destronar das hierarquias sociais, ainda que muito se tenha revirado novamente por via da economia de mercado, mas o mundo mudou e isso temos de o agradecer a quem lutou pela mudança, e que nos permite hoje gritar: “Viva a Liberdade”.
“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.
A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.
Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.
Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.
A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.
Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.
Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.
A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.
Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.
Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.
O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.
O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.
Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.
Na generalidade,
“Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.
Publico hoje um novo texto no IGN, "O Inferno de Assassin's Creed" a propósito da comparação de experiências de histórias entre formatos distintos, o livro e o videojogo. Para a comparação criei um caso comparativo com "Inferno" (2013) de Dan Brown e "Assassin's Creed II" (2009) da Ubisoft, ambos trabalhos que apenas experienciei este ano, pela primeira vez.
"Assassin’s Creed 5" (ou Unity) promete tornar-se no mais importante videojogo da série, e as razões para tal são várias, desde logo porque a acção se situa em França, país de onde são originários os responsáveis máximos da Ubisoft. Mas também porque o momento histórico escolhido para este volume, a Revolução Francesa, é um dos mais incisivos da série, tendo em conta o contexto atual que vivemos, sob o reinado do capitalismo selvagem (1% vs. 99%), próximo dos reinados que se viviam em França antes da revolução.
Assim e para demonstrar o empenho que a Ubisoft está a colocar neste novo tomo, além dos váriostrailers e vídeos históricos, de gameplay e do engine, foi agora publicado uma curta de animação que retrata os momentos históricos que antecedem a acção do jogo. O filme poderia ser apenas uma acção de marketing, mas é mais do que isso, é uma obra criada por Rob Zombie, fundador da banda White Zombie e realizador de vários filmes do género de horror, e conta ainda com a ilustração de Tony Moore, o célebre desenhador da banda desenhada "The Walking Dead" (2003) de Robert Kirkman.
"Rob Zombie’s French Revolution" (2014) de Rob Zombie
Em termos formais, gostei muito da animação criada por Nick Young, motion designer, a partir do trabalho de Tony Moore. As várias técnicas utilizadas para conferir movimento ao desenho através do corte, fundamentadas no uso de "squash and stretch" e na excelência do manuseamento do movimento de câmara, demonstram que para fazer uma boa animação, as competências não estão no desenho, mas na noção de movimento, e na capacidade de potencializar as tecnologias para imprimir esse movimento aos objectos. É óbvio que o desenho é fundamental, o trabalho de Tony Moore contém em si mesmo já uma enorme dimensão dinâmica, mas cabe ao animador depois conferir o movimento, a animação. Fica o making of realizado que dá mais algumas pistas interessantes sobre todo o trabalho.
Behind-the-scenes of Rob Zombie’s French Revolution
A série “Assassin’s Creed” (AC) da Ubisoft representa um feito inestimável no campo da representação histórica audiovisual. Com base num fio de história suportado por uma ficção templária, o primeiro da série, “Assassin’s Creed” (2007), aborda a Terceira Cruzada, a luta entre o cristianismo e islamismo no início do primeiro milénio. O segundo volume, "Assassin’s Creed II" (2009), inicia-se passados 400 anos, na Renascença Italiana, período nobre de emergência da razão e arte, mas também do início da decadência da igreja. Neste terceiro volume, mudamos de continente, passaram-se mais 250 anos, a América prepara-se para lutar pela Independência. Cada um destes jogos permite-nos viajar e experienciar, de forma participativa, momentos fascinantes da história fazendo uso de níveis de realismo audiovisual extremamente gratificantes.
Dos três, e porque não só as tecnologias evoluem mas os artistas vão passando a deter melhor conhecimento dos motores de jogo, o terceiro é o que apresenta um nível visual mais elaborado e rico em detalhe. Desde a animação dos personagens, ponto alto de toda a série e que se destaca no mundo dos videojogos, aos ambientes e cenários, a perfeição gráfica, sonora e de movimento abunda. Jogar AC3 é um constante deleite, a contemplação constante de um mundo que já não existe que parece emergir de cada vez que ligamos a consola. Viajar por Boston ou Nova Iorque entre 1700 e 1800, interagir com os seus habitantes, encarar os seus costumes, é uma delícia. O director de arte, Chinh Ngo, referencia a inspiração na técnica de pintura chiaroscuro, na qual Caravaggio foi exímio, como central no desenvolvimento visual de AC3,
“I was inspired by the chiaroscuro style of painting. They are filled with contrasts, saturate colors, light and dark. Very early on in the production I knew I wanted to bring these visual contrasts, these colors, into the art direction for all the night shots. That may differ a bit from the end result but that’s a part of the challenge for the art direction.” [fonte]
Em termos de design de jogo temos do melhor, mas também temos do pior. AC3 tem uma curva de entrada baixa, ao fim de 5 horas estamos ambientados, e percebemos as possibilidades do jogo, sentimos a mestria emergir, e a partir daí começamos a viver a experiência participatória. Por outro lado, muito do que descobrimos, do potencial de jogo, acaba tendo pouca relevância para a história principal. Ao contrário de AC2 em que muitos dos elementos que apanhávamos (ex. páginas do codex, etc.) ou do dinheiro que conseguíamos, contribuíam para melhorar as nossas competências no mundo de jogo, aqui é tudo muito secundarizado. AC3 deixa para trás o foco no personagem, e diria mesmo a relação entre jogo e narrativa, para se focar na acção e história, procurando sempre que possível potencializar a fluidez, evitar as pausas e as demoras.
Mas o pior do design surge nas falhas de implementação. Das corridas aos saltos e ataques que falham, à minuciosidade de execução de alguns segmentos de missões. De modo a tornar AC3 verdadeiramente deslumbrante visualmente, grande parte das nossas acções no jogo são profundamente trabalhadas em termos de animação. Esta abordagem dificulta imenso a gestão da interacção, acção e uso de animação pré-gravada. Uma das cenas mais fantásticas que se pode apreciar quase desde início é o atravessar do interior de casas, quando entramos em casas nas quais não é suposto existir interacção, somos levados por meio de uma animação até ao outro extremo da casa, ou por exemplo quando matamos alguém, ao movimento normal de uma acção do braço, pode suceder-se uma animação com uma vista de câmara de cima que enfatiza o assassinato. Tudo isto torna a gestão técnica destes momentos por parte do jogo muito mais complexa. Deste modo, ao longo do jogo vão acontecendo falhas que nos obrigam a repetir sequências, criando irritação porque o personagem não reage como esperado, porque o mundo não se dá. Estes problemas não estão sempre presentes, mas são pouco admissíveis ao nível de um jogo deste porte.
Sendo um jogo tão focado na narrativa, no conteúdo, aquilo que tem para dizer é bem trabalhado e suficientemente detalhado e suportado. Por outro lado o design do storytelling acaba por falhar no momento crucial, o fechamento. Ou seja, estamos ali para contribuir para a independência dos EUA e para salvar o nosso povo, mas tudo isso passa e acontece, sem que se sinta um clímax. Não existe o desenho de uma curva emocional que nos estimule, nos suspenda, para que depois queiramos acreditar no seu desvelamento e sentir a recompensa. No final parece mais que se buscou um discurso documental, de descrição daquela época, em que nos deixaram participar, mas posto isso, continua tudo igual a si próprio, antes e depois da nossa actuação ali.
Por outro lado, julgo que o problema talvez assente também no facto de terem procurado estabelecer uma relação muito mais forte entre a história do passado (dentro do Animus) e o presente. Isto foi um erro, porque AC vale o que vale pelas histórias dentro do Animus, a corrente ficcional do presente, assente nas guerras entre sucessões de templários é demasiado frágil, sem coerência, e totalmente incapaz de motivar, seja o jogador seja o espectador. Não joguei ainda o 4, mas espero ansiosamente pelo 5, e aquilo que me move é a Revolução Francesa, não os templários.
No cômputo geral AC3 é uma experiência bastante rica para quem se interesse pela componente histórica. Poder dialogar com George Washington ou Benjamin Franklin, participar em momentos históricos como - a Boston Tea Party, o Great Fire of New York, as Battles of Lexington and Concord, ou a Declaration of Independence - é entusiasmante e envolvente. Tudo isto suportado por uma obra de qualidade estética ímpar, porque mesmo quando a jogabilidade não acerta a atmosfera nunca se esvai por completo, mantendo-nos interessados no continuar do desvelamento da narrativa.
Comprei "Assassin’s Creed II" (ACII) alguns meses depois de ter saído, na sua edição Game Of The Year (GOTY), e ao longo dos últimos quatro anos fui jogando ao ritmo de uma Sequência (capítulo) por ano. Por se tratar de um "mundo aberto" acabava sempre por me perder pela imensidão do jogo sem nunca avançar muito. Esta última vez decidi que o queria terminar, mas nada me tinha preparado para o que iria acontecer depois de chegar a Veneza. Fiquei completamente apanhado, passei um fim-de-semana quase completo de volta do jogo, e nos dias da semana que se seguiu, não via a hora de chegar a noite, para poder deitar os miúdos, sentar-me no sofá, e viajar até à Renascença.
A partir do momento em que passamos a dominar as lógicas da economia e das viagens rápidas entre cidades, o jogo ganha toda uma nova dimensão que facilita a progressão e o fluxo narrativo. O facto de o design assentar numa lógica de mundo aberto, do tipo "Grand Theft Auto", funciona muito bem, potenciando uma imensidade de possibilidades de jogabilidade que um design linear não consegue criar. Por outro lado o facto de ser tão aberto, dá-se menos às lógicas de afunilamento próprio da estrutura narrativa, tendendo a alongar-se. Nesse sentido acabei por ficar com pena de ter comprado a edição GOTY, já que essa traz os dois DLCs que correspondem às Sequências 12 e 13 que não estavam no jogo original. Isto porque no original o jogo salta da memória 11 para a 14, sendo explicado que as memórias 12 e 13 se danificaram e não podem ser acedidas. Na verdade quando chegamos ao final da sequência 11 percebemos que o final está mesmo ali a um passo, e por isso ter de fazer a sequência 12 e 13 acaba por se sentir como uma extensão narrativa por via da mera repetição. São quatro horas que se adicionam ao jogo, mas adicionam pouco à história.
O melhor de ACII acaba por ser inevitavelmente a apropriação histórica dos locais, personagens e acontecimentos do período da Renascença italiana. Podemos visitar as cidades de Florença, Veneza, Roma e as regiões de Forli e Toscana nos anos 1500. Não se trata de uma mera representação da Renascença, mas uma simulação fruto de imensa pesquisa histórica por parte dos autores, de imensas viagens aos locais reais por parte dos artistas, tudo apoiado por académicos, especializados no período histórico da Renascença. Cada local destas cidades que visitamos, permite-nos aceder a uma área específica de informação real sobre o monumento em questão, a sua história e alguns eventos mais marcantes aí realizados. Podemos praticamente fazer turismo em ACII, porque os edifícios estão mesmo ali, assumem toda a magnitude que possuem na realidade, devido ao excelente trabalho de simulação 3d realizado. De cada vez que subimos a uma torre para realizar a sincronização de um “viewpoint” a impressão visual do espaço histórico é extasiante. A visão do espaço associada ao “leap of faith” que podemos fazer do alto para os pequenos montes de palha, ou para água, fazem destes simples “viewpoints” uma das mais estimulantes gratificações do jogo. As cidades de Veneza e Florença são deslumbrantes, assim como as áreas abertas da Toscana e Forli nos ajudam a respirar e nos impelem a viajar dentro do jogo. Para contribuir para uma apropriação mais fidedigna, nessas viagens não usamos dinheiro atual mas florins, a moeda emitida pelos poderosos bancos de Florença na Renascença, dominados pelos Pazzi e depois pelos Medici.
"Leap of faith" realizado para a água em Veneza
O detalhe da animação e da roupa em movimento.
No caso das personagens, podemos dialogar com uma imensidade destas baseadas em pessoas reais da Renascença tais como Leonardo Da Vinci, Lorenzo di Medici, Caterina Sforza, Rodrigo Borgia, Nicolau Maquiavel, entre outros. Do mesmo modo alguns dos eventos e assassinatos são baseados em factos reais, tais como a rivalidade entre os Medici e os Pazzi, a fogueira das vaidades de Savonarola, o Carnaval de Veneza, e muito daquilo que diz respeito aos Borgia, os mesmos que em 2011 se tornariam personagens centrais de uma série de televisão de enorme sucesso. A contribuir para que os personagens sejam ainda mais salientes no universo do jogo está todo o cuidado com a sua ilustração e animação. As roupas e os movimentos condizem com cada classe da sociedade, e no caso de Ezio o design dos seus movimentos são extremamente graciosos, muito ajudados pela roupa cheia de folhos que carrega e que cria uma noção do movimento muito mais completa.
Carnevale de Veneza
Conspiração dos Pazzi para assasinar os Medici
Rodrigo Borgia
Por isso quando falo em viajar no tempo até à Renascença italiana digo-o com uma convicção que é conferida por toda a qualidade artística do jogo, e as suas possibilidades de interacção. ACII é muito mais do que um rol de assassinatos, é uma aula interactiva de história capaz de enriquecer os nossos horizontes. Neste campo só gostava que as lojas de arte tivessem muito mais quadros para adquirirmos Julgo que não houve o devido cuidado com esta parte. Nas armas temos várias dezenas, enquanto os quadros não chegam à dezena. Tendo em conta que falamos de um dos períodos da história de arte mais relevantes, teria sido interessante trabalhar este domínio com mais cuidado.
Em termos de design ACII enfrenta os problemas tipo dos jogos abertos, a enormidade do espaço que complexifica e retarda a realização de acções, e ainda a narrativa difusa. Apesar disso foi conseguido um bom equilíbrio, o facto de existirem formas rápidas de realizar as viagens entre as cidades, minimiza muitos problemas. Os mapas detalhados permitem também aproveitar os espaços em que estamos para realizar várias tarefas antes de embarcar logo para a missão seguinte mais distante. Existem além das missões das sequências, várias outras tarefas que nos mantêm motivados como: renovar a vila de Ezio; adquirir armas, armaduras, tecidos e quadros; encontrar as páginas do codex de Da Vinci importantes para aceder ao final do jogo; subir aos viewpoints para poder ter mapas mais detalhados; realizar assaltos a túmulos que não são mais do que enormes puzzles espaciais, complexos mas bastante gratificantes; encontrar glyphs que abrem para puzzles visuais que contribuem para o desenvolvimento da narrativa de Desmond; e ainda actividades como entregas de correio, corridas, apanhar criminosos, etc. Uma grande parte destas atividades são opcionais, outras obrigatórias, mas a forma como se entrelaçam no design de jogo e da narrativa levam-nas a querer realizar várias, contribuindo para um balanceamento entre o "mundo aberto" e as acções que podemos ir fazendo ao nosso ritmo.
Um dos problemas clássicos do design e narrativa, surge no desenho RPG de Ezio, porque se é verdade que podemos trabalhar para tornar o nosso personagem mais ágil, astuto e eficiente, assim como podemos adquirir armas e armaduras mais poderosas, os nossos adversários também se vão tornando cada vez mais difíceis. Se isto faz sentido em termos de progressão de jogo, não o faz narrativamente, já que o meu personagem acaba por não se tornar verdadeiramente mais forte, ou seja mais temido pelos outros. No fundo a progressão do meu personagem acaba por ser algo ilusória, ou seja acontece mais ao nível da caracterização, enquanto as suas acções de fundo, no mundo de jogo, se transformam muito pouco.
No final julgo que ACII acaba sendo o melhor trabalho da série, muito por causa da simulação histórica, e da forma como aproveita essa simulação para desenvolver o jogo e a narrativa. Também porque a história de Desmond, que gera o arco que envolve toda a série, é um tanto rebuscada, uma colagem de pequenos elementos conspirativos sobre ideias já um tanto gastas da ficção científica e dos romances históricos, resultando em algo pouco interessante. Ezio é a personagem que nos importa, e tudo o que envolve.