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janeiro 21, 2022

Primeiras obras literárias

As Primeiras Coisas” (2013) do português Bruno Vieira Amaral (1978) e “Antes de Partires” (2000) da irlandesa Maggie O'Farrell (1972) são obras que parecem não ter nada em comum além do facto de serem ambas primeiras-obras. Para mim, que as li em simultâneo, posso dizer que encontrei vários outros pontos de contacto, ainda que quando aprofundados resultem mais em contraste do que em similitude. No entanto, tratando estes pontos da abordagem e das competências de escrita dos autores pareceu-me suficientemente relevante agregar os dois num mesmo texto. Saliento ainda que ambas as obras foram premiadas com prémios nacionais para primeira-obra abaixo dos 35 anos, Amaral com o Prémio José Saramago, no valor de 25 mil euros, e O’Farrell com o Betty Trask Award, no valor de 20 mil libras. 

abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.

janeiro 05, 2020

“The Leftovers” (2014)

Ao acabar a primeira temporada de “The Leftovers” estava estupefacto com a escrita. Puro malabarismo thriller, só conseguia pensar em "S.", "Annihilation" ou “Lost”, e em todas as séries que se baseiam em grandes eventos inexplicáveis — como “Flashforward” ou “Under the Dome” — e nos agarram, e nos prendem, mesmo sabendo nós que não existem respostas. Entretanto percebi que o cocriador de “The Leftovers” tinha sido também o cocriador de “Lost”, Damon Lindelof, e que a série vinha recomendada pelo próprio Stephen King.  Como é que se consegue criar assim? A partir de tão pouco parecer dizer tanto, como se o dissesse diretamente a cada um dos espetadores, premindo os seus botões emocionais, mantendo-os ali presos ao fio narrativo, sabendo estes que nada há ali? Ajuda imenso a partitura de Max Richter que parece tudo fazer levitar e conduzir para um desejar acreditar, para entrar no mundo da série para sentir, sentir, sentir...
A principal técnica de escrita aqui usada é o mistério, tal como JJ Abrams revelou na sua TED, nada mais importa ao leitor/espectador. O virtuosismo assenta no conseguir apresentar o mistério de forma credível e levá-lo até ao limite, obrigando o recetor a imaginar tudo aquilo que é o seu próprio mundo, dentro do espaço que o autor lhe oferece. É isso que torna a abordagem tão emocionalmente poderosa, a dotação de carga pessoal.

Por outro lado, quando colamos o mistério ao sentido da vida humana tudo ganha outra dimensão, e é isso que tão brilhantemente foi feito aqui. Não existem respostas, porque não podem existir, tudo é um jogo, tudo é um questionamento contínuo, sem fim, aconteçam as coisas mais bizarras, ad hoc, aleatórias que aconteçam é a vida a ser apenas a vida... poderia escrever sem fim, e andaria sempre a volta disto, porque daqui não conseguimos sair, e por isso o melhor será deixar-vos com um conjunto de palavras que acabo de ler na Esquire, a propósito da temporada 3, mas que dão conta do que senti no final desta primeira temporada:
“Part of our human experience on this planet is finding peace in an existence defined by the unknown. Although we may seek calm in religion, in science, we'll never know the answers to those existential questions which have driven humanity since they crawled out of caves. Yes, we've unlocked a deeper understanding of physics and chemistry and comfort in Christianity or Buddhism, but that greater question—"why?"—will always be there.
The Leftovers never set out to answer these bigger questions. It's a TV show—that would be ridiculous. Instead, The Leftovers was about the journey that we all experience in contemplating mortality, confusion, religion, loss, grief, and our own mind.” Matt Miller, in Esquire, (2017)

novembro 10, 2018

A Índia de Salman Rushdie

Podemos não ligar a prémios, mas quando um livro é reconhecido com um Man Booker em 1981, e passados 12 anos, em 1993, na comemoração dos 25 anos do Booker, é escolhido como o "Booker of Bookers", e passados 27 anos, em 2008, na segunda comemoração especial dos Bookers, dedicada a festejar os 40 anos do prémio, volta a ser escolhido como "The Best of the Booker", teremos poucas razões para duvidar de que algo especial se apresenta nessa obra. E no entanto quando confrontamos estes dados com o nome do autor, Salman Rushdie, surpreende-se uma boa parte da audiência já que o nome é sobejamente conhecido, mas não por este livro, que foi apenas o seu segundo livro, mostrando mais uma vez como o efeito popular diz tão pouco sobre as obras. Aliás, essa falta de reconhecimento popular, também não se espelha na academia, onde "Os Filhos da Meia-Noite" é uma das obras mais estudadas nas universidades anglo-saxónicas. Dito tudo isto, fica de certo modo enquadrado o reconhecimento do livro, e permite-me avançar para a descrição da minha experiência com a obra que foi bastante impressiva.

"Os Filhos da Meia-Noite" (1981) de Salman Rushdie

Confesso que apesar da popularidade do autor, de que conhecia apenas a 'fatwa' ditada pelo seu livro "Os Versículos Satânicos" (1989) mas não tinha lido ainda nada, apanhou-me totalmente de surpresa. Já sabia tratar-se de realismo mágico, um género do qual nem sou particularmente fã, embora o género não dite a forma, sendo na forma que Rushdie mais impressiona, e no entanto quando olhamos para o pináculo do género, "Cem Anos de Solidão" (1967), é também aí a forma algo muito relevante, e "Os Filhos da Meia-Noite" segue e ombreia, colocando Salman Rushdie e Gabriel García Márquez, apesar de em continentes diferentes, no mesmo patamar.

Apesar de colocar Rushdie ao lado de Marquez, existe algo que os separa profundamente, é que Rushdie trabalha diretamente a partir da História, podendo quase dizer-se que o romance é histórico, já que as datas e os principais eventos e personagens da História da Índia são todos reais. Ou seja, o seu realismo mágico ganha um tom distinto, porque não entramos numa realidade completamente paralela, antes somos convidados a atravessar a realidade ao lado de personagens provindos, eles sim, de realidades paralelas. Ou seja, o livro procura retratar o surgimento da Índia enquanto país independente, e fá-lo através dos olhos de uma personagem dotada de capacidades dignas de um romance de ficção-científica (originadas no facto de ter nascido na meia-noite em que se iniciaria a independência da Índia, 15 de agosto de 1947), que vão servindo a comédia e sátira da sociedade indiana em todos os seus quadrantes, da religião à política, passando pelos militares e relação com os ingleses, assim como toda diferença entre classes (não faltam influências portuguesas nomeadamente em nomes de personagens).

Se tudo isto é muito interessante, aquilo que verdadeiramente me impactou nesta obra foi a sua forma escrita. Densa, pode-se dizer muito densa, e no entanto altamente acessível, o que é desde logo um feito. Esteja em modo descritivo, explicativo ou até dissertativo que por vezes assume rasgos de fluxo de consciência, Rushdie nunca se esquece do leitor, mantendo-o sempre dentro do ciclo do que vai sendo discutido (talvez menos no primeiro terço do texto, enquanto não entramos na lógica do autor), para o que recorre a pequenas redundâncias ou chamadas de atenção muito bem posicionadas, que não gera qualquer sensação de repetição mas antes funcionam como recompensa porque confirmam que estamos a entender o que nos está a ser contado.

A densidade torna o processo de leitura lento, com o texto a exigir muita atenção, já que cada parágrafo, cada linha, trazem sempre novos detalhes, o que obriga a uma leitura precisa, que impede o natural processo de leitura em blocos, capacidade que vamos desenvolvendo com a experiência de leitura que nos oferece competências que permitem antecipar o que sucede a cada palavra ou a cada conjunto de palavras, e por vezes até frases completas, bastando uma rápida sondagem da linha de texto para apreender o seu sentido. Rushdie consegue isto muito graças ao facto de não ter barreiras entre ficção e fantasia, o que lhe permite discorrer de modo, por vezes completamente alucinatório, explodindo em diversas perspectivas pequenos eventos, com descrições espaço-temporais ricas ao que junta personagens, que parecendo estereotipadas, são elas próprias também imensamente ricas, plenas de camadas contraditórias entre desejos e anseios.
"Procurava ela nesse tempo afastar da lembrança a aventura do hipódromo; mas não conseguia escapar à sensação de pecado que os cozinhados da mãe nela tinham desenvolvido; e não lhe era difícil ver nos calos uma espécie de castigo. Não só por em tempos ter penetrado no templo de Mahalaxmi, mas também pela impossibilidade de libertar o marido dos certificados alcoólicos cor-de-rosa;  e pelos modos rudes e pouco femininos de Macaca de Cobre; e pelo nariz descomunal do filho. Quando hoje penso nela, tenho a impressão de que à volta da sua cabeça começou a gerar-se uma bruma de culpabilidade; a sua pele escura segregava uma névoa negra que lhe toldava o olhar." (p.150) pequeno excerto exemplificativo da escrita de Rushdie
"Os Filhos da Meia-Noite" merece todo o estudo que lhe tem sido dedicado. Parei várias vezes a leitura para enquanto levantava os olhos me deslumbrar interiormente com o virtuosismo de Rushdie, com a forma como conseguia entrosar tantos eventos, ideias e sentimentos em tão poucas linhas, e como isso nunca era precedido ou seguido de momentos mais lentos ou menos densos, como se Rushdie tivesse uma necessidade de contar e contar mais e mais, e fosse possuidor de um poço infinito de ações e desenvolvimentos para relatar todo o mundo que passava pela sua imaginação. De certo modo, e apesar da História da Índia me ser algo distante, sinto que Rushdie plasmou o pulsar indiano nesta particular forma, nomeadamente quando olhamos à imensidade do país, com mais de mil milhões de cidadãos e a sua infinitude de deuses, que acaba proporcionando dificuldades à gestão do país e claro algum sentimento de caos contínuo. Por tudo isto, e se acessível, não sendo uma obra fácil é uma experiência verdadeiramente singular.

abril 26, 2018

Os últimos anos de Dostoiévski

São Petersburgo é uma das grandes capitais da arte e cultura europeias, muito graças a Pedro o Grande e aos que o sucederam na dinastia Romanov nos 300 anos seguintes, que sempre tiveram um enorme interesse pelo desenvolvimento destas áreas, ainda assim e no meio de tanta e tanta cultura que se pode por aqui encontrar, existe um talento que se destaca enormemente, Dostoiévski. Não nasceu cá, mas foi aqui que morreu e escreveu praticamente toda a sua obra. Por isso torna-se obrigatório visitar o museu que a cidade lhe dedica no qual podemos aceder ao apartamento em que viveu os últimos três anos da sua vida e onde escreveu o derradeiro, e profético, “Os Irmãos de Karamazov”.

Estúdio de trabalho de Dostoiévski

O apartamento está imensamente bem mantido. Nele podemos ver o quarto dos seus filhos, o escritório da esposa, e o seu estúdio, e não deixa de ser impactante como estes três cómodos apresentam todos mesas com utensílios de escrita. Toda a família se dedicava à escrita, as crianças eram educadas desde tenra idade não apenas na leitura, mas também na escrita, e a esposa, à semelhança de tantas outras esposas de grandes escritores, era quem corrigia as provas de Dostoiévski. O autor nutria uma profunda admiração pelos filhos, considerando-os a razão para estar vivo, no quarto destes podemos ver também vários brinquedos da época. A sua filha, Lyubov Dostoevskaya, viria a publicar, em 1920, um livro com as recordações do seu pai — "Dostoyevsky as Portrayed by His Daughter" — que segundo os historiadores não é muito factual, devendo-se muito ao facto de Lyubov ter apenas 11 anos quando Dostoiévski morreu, ainda assim fiquei imensamente curioso por conhecer este relato.

À esquerda, a mesa do quarto das crianças (Lyubov e Fyodor). À direita, a mesa da esposa Anna Grigoryevna Snitkina

Já tinha visto fotografias do último escritório de Dostoiévski, por isso não me surpreendeu propriamente, o que me tocou mais profundamente foi o relato, do sistema audioguia, sobre o último ano de vida, junto com os objetos ali mantidos. Falo especialmente da cigarreira, na qual podemos ver inscrita pela mão da filha, Lyubov, o dia da sua morte. Apesar de avisado pelos médicos, Dostoiévski fumou sempre até morrer, e de modo intenso enquanto escrevia pela noite adentro. O relógio do escritório foi também parado no dia e hora. Além disso, podemos ver várias fotografias da família, as mesas e cadeiras, espreitar a rua pelas janelas, sentir o espaço e a vida de quem ali terá vivido.

A caixa de tabaco de Dostoiévski com a inscrição pela filha da data da morte do pai — 28 janeiro 1881. Data antiga que no nosso calendário gregoriano corresponde a 9 fevereiro 1881.

Talvez a maior novidade, para mim, tenha sido a descoberta do impacto gerado pelo seu “Discurso a Puchkin” (deixo o PDF, em inglês) para a inauguração do monumento dedicado ao poeta em Moscovo, em 1880. Dostoiévksi terá desejado enaltecer a obra de Pushkin a um ponto mitológico, fazendo dele o representante máximo da alma russa, mas ao fazê-lo, e tão perto da sua própria morte, estava já bastante doente, acabou sendo ele próprio elevado a profeta. Quando terminou, o público chorava e gritava — Profeta, Profeta, Profeta — levando-o em braços. É a apoteose de Dostoiévski, que ainda desejava escrever a segunda parte de ”Os Irmãos Karamazov” mas já não teria tempo para tal. No museu encontram-se fotografias do evento em Moscovo, e descrições do que se passou nesse dia, e tenho de dizer que aceder a tudo isto, pela primeira vez e no espaço em que ele viveu, produziu em mim um forte impacto.

Inauguração, em 1880, do monumento de homenagem a Pushkin em que Dostoiévski participou.

Dostoiévski não foi apenas um escritor, não foi sequer mero criador de movimentos literários, seja o psicologismo ou o existencialismo. A sua forma de estar no mundo deveu-se a muitas variáveis, as quais não podemos simplesmente atribuir à sua família, à prisão na Sibéria, à perda de dois filhos pequenos (uma com três meses, outro com três anos), ou à política. O que o destacou dos demais foi o seu profundo humanismo, o qual soube tão bem utilizar para descrever o ser-humano e as suas entranhas psicológicas.


Obras analisadas no VI:
"Os Irmãos Karamazov" (1881)
"Os Demónios" (1872)
"O Idiota" (1868)
"Crime e Castigo" (1866)
"Memórias do Subterrâneo" (1864)

agosto 28, 2017

Desgraça (1999)

Conhecia o filme homónimo mas não conhecia a escrita de Coetzee, por isso foi uma surpresa total esta leitura, tinha-a evitado durante anos por julgar que nada de novo aqui me aguardava. Sendo a história similar, ganha-se com a leitura porque a escrita é exemplar, e porque naturalmente o cinema não consegue dar a ver o que sente interiormente cada personagem na forma detalhada como Coetzee o faz. Embora tenha de dizer também que ganhei porque se passaram quase 10 anos desde a estreia do filme, tendo o meu mundo mudado e contribuído para enriquecer a minha compreensão da história criada por Coetzee.


Começando pela escrita, esta destaca-se por uma aparente simplicidade que no evoluir da leitura vamos percebendo ser fundamental para a narração neutral procurada pelo autor. Coetzee escreve de modo muito direto o que pensa e faz cada personagem, assumindo uma postura de brevidade, evitando adjetivação, evitando juízos. Ou seja, temos uma forma minimal e seca que funde escrita e narração, para nunca se abster de dizer o que está acontecer, abstendo-se apenas de dizer porque está a acontecer. Deste modo, e apesar de poder criar algum sentimento de perda de orientação no leitor, em essência o que Coetzee busca é que seja o leitor a criar os seus juízos. Assim, em termos estruturais, a obra é imensamente conseguida, unindo forma e conteúdo num discurso imensamente coerente.


Podemos dizer que Coetzee surge aqui nas antípodas de Victor Hugo (ler análise recente realizada a "Os Miseráveis"), o que é reconhecido pelo próprio Coetzee ao citar Hugo quase no final do livro. Apesar de ambos os autores estarem fortemente empenhados na luta social: Hugo usa e abusa do sentimento para manipular os leitores e os convencer da existência de um único caminho verdadeiro e correto; já Coetzee põe a nu as problemáticas por meio de conflitos que se opõem, mas não dá respostas sobre como as resolver, obriga os leitores a procurar as suas próprias respostas. Ou seja, Hugo é mais político, está mais preocupado em conduzir, enquanto Coetzee é filósofo, mais preocupado em fazer refletir. Se Hugo foi bem sucedido ganhando relevância política, Coetzee granjeou enorme resposta crítica e prémios literários.

Mas de que fala afinal “Desgraça”? Tenho de dizer que não é fácil sintetizar tudo o que é dito, aliás esse é um dos paradoxos mais interessantes da arte minimalista, quanto menos diz mais quer dizer. Não esquecendo que este é um livro com parcas 200 páginas, Coetzee ataca várias fantasmas sociais, desde logo o Pós-Apartheid, não fosse esta uma obra do fim do século XX escrita na África do Sul, mas não se fica por aí: fala de forma perfurante sobre os direitos da mulher; põe a nu os problemas da comunicação humana; dos efeitos do envelhecimento e seu existencialismo; dos direitos dos animais; do desejo sexual visto pela natureza versus cultura; e vários outros temas que vão surgindo colados a estes.

Não é imediato o acesso ao tema dos problemas da comunicação humana, mesmo quando Coetzee procura tornar isso implícito ao fazer de Lurie um professor universitário de Comunicação. Mas a verdade é que a essência do Apartheid nasceu da incapacidade de comunicar. Pode parecer ao lado, já que o racismo surge na frente e a comunicação é comumente vista como mero ato de transmissão de informação. Mas se olharmos àquilo que define a comunicação humana, e compreendermos que ela responde pelo ato de colocar em comum, ou seja, de conduzir os sujeitos num ato de comunicação a comungar uma mesma ideia, compreendemos melhor porque surjem os diferentes "apartheids" no mundo.

Nesta obra, Coetzee torna este ponto central, não apenas pelas desgraças que acontecem ao professor diretamente mas mais ainda indiretamente, por via da sua filha, Lucy, e da sua relação com o vizinho, Petrus. No diálogo que se vai construindo entre Lurie e Petrus, vai-se percebendo como ambos vivem em mundos de costumes muito mais distantes do que a simples cor da pele, e como só com enorme esforço e cedência se pode aprender a viver num mesmo mundo. De certa forma, o trauma da filha coloca este mesmo ponto em evidência, mas pelo lado dos direitos das mulheres. Porque se no caso de Petrus o que tolda a comunicação é a cor da pele, no caso de Lucy é o facto de ser mulher.

O mais impactante de tudo acaba sendo o quão difícil é para nós leitores ocidentais aceitar tudo isto. O facto de Coetzee lançar os dados e não criar guias de orientação, deixa-nos perdidos e sem respostas. Porque é que Petrus é assim? E Lucy, como pode ela continuar ali, aceitando? Terão algum problema, estes dois? Mas se em vez de procurarmos o problema neles o procurarmos em nós, como acaba fazendo Lurie, quando conseguimos chegar a comungar, então acabamos a compreender.

Não posso dizer muito mais, correndo o risco de estragar completamente o efeito surpresa da história para quem ainda não leu. Mas é disto que se faz a arte, de obras que nos obrigam a ir além da redoma do que somos feitos, que não se limitam a confirmar o mundo como desejamos e acreditamos ser. Que sendo difíceis e nos colocando em situações desconfortáveis, o fazem com um claro objetivo, o de nos enriquecer enquanto seres humanos.

dezembro 31, 2016

“O Pintassilgo” (2013)

Adorei “A História Secreta” (1992), gostei de “O Pintassilgo” (2013), se não tivesse lido “A História Secreta”, teria talvez adorado “O Pintassilgo”. Aconteceu-me exatamente o mesmo com Murakami, e os seus “1Q84” (2010) e “Kafka à Beira-mar” (2002). Bons escritores, mas que parecem ter apenas um mundo a oferecer. Talvez o problema nem seja deles, talvez eu espere demasiado, talvez espere algo que a literatura, enquanto arte, não pode dar. Poderá um escritor dar-nos múltiplos mundos distintos? Foi exatamente sobre isto, e por causa deste livro que acabei a escrever, há dias, “Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais”.

Capa da versão americana, e o quadro "The Goldfinch" (1654) de Carel Fabritius que serve de móbil à trama do livro.

Donna Tartt tem um estilo próprio, tem uma voz própria, escreve de forma fluída e lúcida. Fala das emoções sentidas num mundo contemporâneo carregado de deveres morais para com a sociedade. A sua primeira pessoa é instigante, mantém-nos agarrados ao pensar e sentir dos seus personagens, como se estivéssemos todo o tempo dentro das suas cabeças. Mas no final existe um certo vazio, por mais que tudo pareça rebuscar erudição. De certa forma, acontece-me exatamente o mesmo com as obras de Murakami.

Veja-se o mundo de Tartt. Em termos temáticos, temos um jovem que se procura, perdido no mundo, sozinho, tentando tornar-se adulto. Sim, também temos a arte, o quadro que está todo o tempo lá, como está a mãe, são ambos aquilo que mantém o jovem ligado ao mundo. A arte surge, ou parece surgir, como o elo que nos pode manter vivos, a beleza que torna o real suportável, e impede de marchar desta vida. Por outro lado, temos droga a rodos, é ela que acaba por verdadeiramente, em "O Pintassilgo" nos manter à tona. Em certos momentos questionei-me mesmo se Tartt não percebia mais de farmácia do que de arte. Mas é claramente o mundo particular de Tartt, em que cabe à droga funcionar como motor das pequenas tensões morais, já que simplesmente não existe sexo, como se os seus personagens fossem todos abstinentes. Como Tartt precisa do Yin e do Yang no desenho dos seus personagens, ao criar personagens puros na carne, impurifica-os pela droga. Muito anos passaram desde 1990, falta evolução no traço da escritora, algo que se agrava mais quando em muitos momentos a "voz" do personagem principal ecoa completamente o personagem principal de "A História Secreta".

Julgo que a espécie de vazio que sinto com “O Pintassilgo” advém do facto de já não me encontrar no público alvo. É um livro sobre um jovem que se torna adulto, mas é um adulto contemporâneo, como tal, o seu mundo aos 25 anos, é o típico mundo dos 17. E é para esses que Tartt escreve, mesmo pensando que não o faz. O uso das técnicas de thriller envolvem muito bem o romance psicológico, sustentam e mantêm o leitor agarrado, mas tudo o que vai sendo desvelado sabe a pouco, porque na verdade não existe muito para dar dentro da cabeça de uma criança que sofre um grande trauma e passa o resto dos seus dias a tentar sobreviver emocionalmente. É uma viagem existencial, com todos os dramas da incompreensão, da perda, do amor não correspondido, do só contra todos, que por vezes roça o puro niilismo.

Para elevar o discurso, Tartt traz para o centro da discussão três autores e suas obras — Rembrandt, Dostoiévski e Proust — e consegue desta forma levar-nos a submergir, a aceitar muito do que tem para dizer sobre o Belo, a Arte e a Vida. Mas não chega. Não chega construir uma tese e colá-la nas últimas 30 páginas do livro, quando todo o livro parece tão pouco preocupado com essa tese. Acredito que teria sido inebriante, tivesse eu outra idade, aquelas últimas páginas em que tudo parece cozer-se, tudo parece ter sentido, tudo tem um desígnio, mesmo que tudo não o tenha, nem possa ter. Acaba sendo uma fuga existencialista, capaz de criar momentos de leitura apaixonantes, em que as páginas se vão virando sozinhas, criando horas bem preenchidas, mas que no final se arruma na prateleira, para esquecer.

Esta leitura serviu-me ainda para colocar em perspetiva o prémio Pulitzer. Cada vez me convenço mais que se deveria ter ficado pela área de eleição do seu fundador, o jornalismo, onde tem servido bastante melhor a sua função.

dezembro 20, 2015

Processos de criação narrativa escrita

Chuck Palahniuk é um escritor americano, internacionalmente consagrado pela obra “Fight Club” (1996), que deu origem ao filme homónimo de David Fincher (1999). Entre 2005 e 2007 Palahniuk desenvolveu um conjunto de ensaios sobre o processo de escrita, tendo criado um total de 36 textos que podem hoje ser lidos integralmente no site LitReactor.



Chuck Palahniuk fotografado por Jonh Gress

Palahniuk tem uma escrita dura, as suas obras rodam à volta do género conhecido por “ficção transgressiva”, ou seja, histórias de liberação das normas da sociedade pela força, o que faz deste um autor muito interessante em termos criativos já que o seu trabalho tem de obrigatoriamente fomentar uma constante troca de descrições entre as internalidades e externalidades, entre os pensamentos interiores dos seus personagens e a sua ação sobre o real. Assim, se da leitura dos ensaios resultar a ideia de que estes ensaios servem apenas uma escrita mais cinemática, ou seja exterior e visual, bastará pensar que a descrição psicológica dos personagens não pode existir sem consequência no real, algo que Palahniuk compreende muito bem.

Não li todos os 36 ensaios, até porque não estou à procura de me tornar num romancista, interessa-me mais conhecer os processos, para assim poder analisar melhor o que está por detrás da mente de quem cria. Interessa-me até mais o cinema e os videojogos, mas estes quando narrativos diferem muito pouco da literatura, o que faz com que qualquer bom realizador ou designer de jogos narrativos, seja obrigado a deter uma grande bagagem de leitura, reforçando assim a interligação entre estes três meios.

Em caso de dúvida reparem no processo de escrita mais fortemente referenciado por Palahniuk ao longo dos vários ensaios, o “unpacking”. Este processo não tem nada de novo é comumente conhecido como “desconstrução”, mas se Palahniuk opta em sua vez por “unpack”, não é por acaso, é porque dá conta, de um modo muito mais descritivo e visual, do que realmente se trata. Ou seja, o “tirar da caixa” ou “desempacotar” assume uma relação direta com o processo de expressão ou verbalização, isto é, de dar vida exterior a uma ideia que temos apenas na nossa mente, dentro da caixa, que vemos como o nosso cérebro, ou crânio. Assim quando temos uma ideia para algo que deve acontecer numa história não chega pensar a ideia em termos imaginários, é preciso realizar sobre essa todo um processo de desempacotação, capaz de traduzir essa mesma ideia em algo externo que a expresse. E é aqui que entram os outros meios, porque esse “algo” pode ter a forma de texto, mas pode ter a forma de filme ou de jogo, é indiferente porque o unpacking tem de acontecer sempre.

Posso dizer que do que li fiquei deveras impressionado. Palahniuk não floreia nem tenta construir teorização sobre o processo de escrita, é muito direto e concreto. Ou seja, os conselhos que vai descrevendo são dirigidos a questões muito práticas, questões que raramente ouvirão numa aula de literatura, porque não dizem respeito à estética mas apenas e só ao processo de criação artística. Apesar disso, o modo como descreve o que tem a dizer segue toda uma postura académica, com uma estrutura metódica e focada na aprendizagem, com os textos ordenados segundo uma composição tripartida: 1) pequena história introdutória que dá vida ao conceito; 2) discussão e desconstrução do conceito; 3) trabalho de casa ou sugestões para aplicar os conceitos. Assim resolvi escolher alguns excertos que mais me chamaram a atenção, e transcrevi para aqui algumas passagens:


3: Using “On-The-Body” Physical Sensation
“It’s one thing to engage the reader mentally, to enroll his or her mind and make them think, imagine, consider something. It’s another thing to engage a reader’s heart, to make him or her feel some emotion. But if you can engage the reader on a physical level as well, then you’ve created a reality that can eclipse their actual reality. The reader might be in a noisy airport, standing in a long line, on tired feet – but if you can engage their mind, heart and body in your story, you can replace that airport reality with something more entertaining or profound or whatever.”
..
“Words like “searing pain” or “sharp, stabbing pain” or “throbbing headache” or “ecstatic orgasm” don’t evoke anything except some lame-ass paperback thriller book. Those are the cliches of a cheating writer. Little abstract short-cuts that don’t make anything happen in the reader’s gut.
No, you want the pain – or whatever physical sensation – to occur in the reader, not on the page. So un-pack the event, moment by moment, smell by smell. Make it happen, and let the sensation of pain occur only in the reader.”

6: Nuts and Bolts: “Thought” Verbs (online)
“In six seconds, you’ll hate me. But in six months, you’ll be a better writer. From this point forward – at least for the next half year – you may not use “thought” verbs.  These include:  Thinks, Knows, Understands, Realizes, Believes, Wants, Remembers, Imagines, Desires, and a hundred others you love to use. ”
..
“Instead of saying:  “Adam knew Gwen liked him.” You’ll have to say: “Between classes, Gwen was always leaned on his locker when he’d go to open it.  She’d roll her eyes and shove off with one foot, leaving a black-heel mark on the painted metal, but she also left the smell of her perfume.  The combination lock would still be warm from her ass.  And the next break, Gwen would be leaned there, again.” In short, no more short-cuts.  Only specific sensory detail: action, smell, taste, sound, and feeling.”
..
“Thinking is abstract. Knowing and believing are intangible.  Your story will always be stronger if you just show the physical actions and details of your characters and allow your reader to do the thinking and knowing. And loving and hating.”
..
“Un-pack. Don’t take short-cuts.”

16: Learning from Clichés… then Leaving them Behind
“One of the best self-teaching methods is to “ape” or mimic the style of writers you enjoy.
..
We learned to write the way so many apprentice painters learn to copy masterpieces in museums. This is a fun, effective way to learn another writer’s techniques from the inside, duplicating them until they come naturally in your own work. Then, you can create variations on the techniques, breaking the rules and combining them with the techniques you’ve learned by copying other writers. That way, by mixing and sampling and copying – not just writers but people you hear speaking, telling stories next to you at Starbucks – that’s how you develop a personal, signature “voice” for your own work.
Don’t worry, even if you become a parrot, echoing the voice of another writer in everything you write – you’ll get past that. You’ll get bored and evolve. Another voice will arrive to teach you something new. Most of us seem to create ourselves from the behavior modeled by our peers. We pick and choose speech patterns and gestures and mimic them. The ones that work, we incorporate into our daily presentation. It’s the same with writing styles.”

19: Effective Similes (Diferentes da Metáfora)
“I hate similes. Tose phrases that compare one thing to another. “Her hair had the softness of rabbit’s fur.” Or, “His cheeks were like raw meat.”

Anytime you want to use a simile, a metaphor will usually work better. Stronger. Instead of: “Being married to Jim was like driving five years down a dirt road”... the stronger version is: “Being married to Jim was five years of driving down a dirt road.” Or better yet, “Being married to Jim left you shaky as a five-year drive down a dirt road.”

“Limit your similes. Every time you compare something inside of a scene to something that’s not present, you distract your reader – taking them out of the moment – and losing energy. “The preacher’s hands were like pale birds,” forces us to picture birds, then maybe doves, maybe some other white birds, pigeons, nesting or flying, blue sky, clouds, and we’re lost. To avoid this, use only your strongest similes, and try to reuse them. Consider, “The preacher’s pale hands curled together in his lap, nested still and tight as a pair of dead birds.” Again, unpack the verbs – exactly how is one thing similar to the other. And describe the actual item before comparing it to something else.”


Por fim deixo um conselho meu sobre o modo de usar estes 36 ensaios. Não vejam neles as linhas mestras das quais não se podem desviar, mas antes linhas orientadoras que nos podem ajudar a progredir. Todo este tipo de trabalho é sempre muito atacado por estar a tentar normativizar processos artísticos, do meu lado sou totalmente contra tais ataques, já que não é nada disso que se procura aqui. Interessa apenas aqui iluminar um caminho possível, criar atalhos para a compreensão da arte, no fundo transmitir conhecimento sobre um processo, aquilo que passamos todo o tempo a fazer enquanto professores. Mas é verdade que se não aceito os ataques pela normativização, tenho de admitir que existem aqui alguns perigos, como é normal em qualquer atalho.

O primeiro diz respeito ao tipo de conhecimento em questão, porque sendo um processo de criação artística que depende de forte conhecimento tácito, levanta obstáculos à apreensão por mera transmissão de informação. Ou seja, não é possível verdadeiramente apreender nenhuma das técnicas descritas nestes ensaios sem realizar um grande investimento experimental, passar horas e horas a escrever, produzir centenas e centenas de páginas, até que estas regras, aqui tão simples, se tornem parte da natureza de quem as pretenda dominar.

O segundo perigo ou problema, assenta sobre o potencial de se poder criar a ideia, errónea, de que conhecendo o processo que os escritores usam deixa de ser necessário passar pelas obras que estes criaram. Não podemos esquecer que aquilo que temos aqui é apenas um conjunto de estruturas, de sínteses de padrões de escrita, uma espécie de esqueletos que suportam a carne, as histórias. Para quem quer escrever, realizar ou desenhar jogos, é preciso consumir muita carne, pois só esta poderá dar base suficiente para a criação de novas histórias. Sem a leitura em profundidade e diversidade é impossível produzir algo que vá para além do senso comum, ou da imitação superficial do que nos rodeia no dia-a-dia, daí que a leitura seja fundamental para qualquer criador, não apenas o escritor, mas também o realizador e o designer.


Os ensaios não estão em livre acesso, o que me levanta muitas objeções, nomeadamente porque os textos foram oferecidos pelo autor, que os poderia ter transformado em livro e vendido, mas optou por não o fazer. Deste modo têm duas opções, se vos interessar o site, que apresenta muitos outros conteúdos além destes, inscrevem-se e fazem download, de outro modo podem procurar online e irão encontrar várias compilações dos 36 textos, deixo um exemplo.

setembro 05, 2014

Colaboração com o IGN Portugal

Iniciei este semana uma nova colaboração, no campo da escrita, com o IGN Portugal. Depois de ter passado os últimos dois anos a escrever para a Eurogamer, na qual publiquei 80 textos sem interrupção, resolvi em Abril 2014 fazer uma pausa. Entretanto em Julho 2014 surgiu o convite da IGN para escrever algo nos mesmos moldes, mas com um foco mais aberto. O IGN diferentemente da Eurogamer, não se foca apenas em videojogos, mas opera também com conteúdos de Cinema e Tecnologia, perfazendo assim um leque de temas que já trato aqui no Virtual Illusion.


No IGN irei escrever para a secção Behind Media, uma secção que terá contributos de vários autores, e procurará dar conta, de uma forma mais aprofundada, do que está por detrás da superfície. Ou seja, deverão ser discutidos aspectos criativos e de desenvolvimento dos videojogos e cinema, assim como dar conta de novas tecnologias que forem surgindo e que possam abrir novas possibilidades estético-expressivas.


No primeiro texto, publicado esta semana, São Videojogos, não são Jogos nem Transmediapor ser inaugural, dediquei-o à discussão terminológica e conceptual do meio dos videojogos, dando conta de alguns movimentos recentes no campo das tecnologias de videojogos (saída da Kinect da Xbox One)