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julho 15, 2023

I Am, I Am, I Am

Humano. Feminino. Maternal. “Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva”. Quarto livro de Maggie O’Farrell que li nos últimos 2 anos, o que evidencia o quanto me apaixonei pelo seu trabalho desde que li “Hamnet”. A sua escrita não é meramente bela, é dotada de uma capacidade descritiva particular pelo modo como produz parágrafos longamente fluídos descrevendo ações a partir dos seus efeitos psicológicos. Tendo a compará-la, ainda que cada um na sua particularidade, a Jonathan Franzen e Zadie Smith. O conteúdo do que cada um destes tende a expressar não podia ser mais distinto, nomeadamente O’Farrell não é comparável em erudição, mas o seu realismo junto à pele é bastante mais cortante. O modo é tão relevante a ponto de neste livro de memórias discordar várias vezes da sua definição do mundo, mas a intensidade honesta e humilde da forma usada apaga toda a distância que existe entre esse seu mundo e o meu.

abril 25, 2023

Humanamente Possível (2023)

Sarah Bakewell é reconhecida por dois belíssimos livros, um sobre Montaigne (2010) e outro sobre a corrente do Existencialismo (2016), neste seu último livro — "Humanly Possible: Seven Hundred Years of Humanist Freethinking, Inquiry, and Hope" (2023) — foi à procura da definição de Humanismo. Partindo do estilo que a caracteriza — a fusão fluída de biografia, arte, história e filosofia — atravessa 700 anos de ideias para dar conta das origens, evolução e relevância do Humanismo, um termo apenas cunhado no século XIX, e para o qual ainda hoje temos dificuldade em encontrar uma definição que sirva a todos. Para o efeito, convoca as vidas e ideias de Petrarca, Boccaccio, Da Vinci, Erasmus, Montaigne, Voltaire, Spinoza, David Hume, Thomas Paine, Frederick Douglass, Robert G. Ingersoll, John Stuart Mill, Harriet Taylor, Bertrand Russell, Zora Neale Hurston, Thomas Mann e Vasily Grossman.

novembro 28, 2021

Universo sem sentimento

Perder o marido, ficando viúva com dois filhos, é uma experiência trágica com claros efeitos pós-traumáticos, mas usando a abordagem que a autora tanto gosta, a estatística, não é uma experiência nada incomum, nem agora, nem em toda a história da nossa espécie. Por outro lado, ser-se uma cientista de topo, premiada com uma bolsa MacArthur, a chamada "Bolsa dos Génios" no domínio da busca de inteligência fora da Terra, ou surgindo na capa da New York Times Magazine, com o título: "A Mulher Que Pode Encontrar-nos Outra Terra", é algo muito pouco comum, reservado a um número muito restrito de pessoas. Neste sentido, juntar as duas coisas poderia ter funcionado, poderia ter sido um memoir distinto. O problema acontece quando de frente batem e chocam espetacularmente a emocionalidade e as relações humanas de uma família com a racionalidade e abstração do mundo das ciências exatas. Ou seja, Sara Seager é uma cientista brilhante e com certeza teria sido muito interessante ouvi-la falar do seu trabalho e das complexidades da sua ciência, mas ouvi-la expor enormes incongruências de ser esposa e mãe, não tendo sequer noção destas é doloroso. Se no final nos diz que descobriu, apenas quase aos 50, que  era autista, a verdade é que não usou o livro, em parte alguma, para apresentar qualquer visão crítica das peculiaridades do seu comportamento. O seu discurso auto-centrado manteve-se igual, Seager é exatamente a mesma pessoa no final e no início do livro, nada mudou, e nesse sentido pergunta-se qual o interesse de um livro que não tem nada para dizer. Deixo alguns excerto de suporte a esta minha crítica:

outubro 17, 2021

Abelardo e Heloísa

Pedro Abelardo foi um filósofo francês que ficou conhecido pela tragédia proporcionada a partir do seu romance com a erudita Heloísa de Argenteuil. O seu legado é maior, teve grande impacto na filosofia e teologia da época medieval e influenciou o ensino tendo tido influência no surgimento da própria Universidade enquanto instituição. Ousado e muito à frente do seu tempo, muito deve, segundo ele, ao castigo que lhe foi infligido. O tio de Heloísa, após descobrir o casamento em segredo de ambos, mandou castrá-lo. Como legado pessoal, ficaram as cartas que escreveram um ao outro, numa época posterior e que podemos ler nesta obra. O texto das mesmas é bastante direto, expondo de forma clara o impacto dos acontecimentos sobre a pessoa de cada um deles.

outubro 16, 2021

A vida de Thomas Mann (2021)

"The Magician", publicado no passado dia 7 de setembro, não foi o livro que esperava ler sobre Thomas Mann. A meio senti mesmo uma enorme desilusão, senti falta do que tinha imaginado que este livro seria. Tinha criado expectativas muito concretas. Mas Colm Tóibín surpreendeu-me. A partir desse meio, por via de toda a construção até ali, comecei a sentir cada vez mais Mann e o seu mundo. Continuo a sentir falta daquilo que eram as minhas expectativas, mas tenho de conceder que Tóibín criou uma obra admirável. Mann foi uma pessoa que viveu intensamente, mas interiormente, a ponto de nem a si mesmo (nos seus diários) se revelar. Alguém que passou pela vida, procurando sempre não perturbar nada nem ninguém, porque muito determinado em seguir o seu próprio caminho. Esta forma de estar levanta muitas objeções morais, mais ainda quando passou pela vida, mesmo nos momentos mais terríveis da guerra, com grande conforto. Mas o retrato oferecido por Tóibín é feito sem julgamentos nem endeusamentos, e talvez por isso mesmo, capaz de nos aproximar do que terá sido conviver com Mann.

janeiro 15, 2021

A literatura como Redenção

Chego a “La Familia Grande” (2021), de Camille Kouchner, depois de ter lido “Le Consentement” (2020) e de ter percebido que o fenómeno #metoo demorou, mas chegou a França, não na sua forma convencional, usando as redes sociais, mas por via da literatura. O relato é aqui tão, ou mais, cru que no livro de Vanessa Springora. Começa-se a ler e não se consegue parar, o voyeurismo e a expectativa tomam conta de nós. Aqui a família de suporte é bastante menos estereotipada, existem recursos, e acima de tudo educação certificada com os mais altos pergaminhos. Mas, nada disso serve para evitar o pior. No final, inevitavelmente, e mais uma vez, somos obrigados a questionar-nos sobre o valor da Educação que tanto prezamos, sobre o  Humanismo que tanto apregoamos. No final, mais uma vez, somos esbofeteados pela luta entre o racional e o emocional, ou, entre a consciência e o instinto. Este livro, pelos personagens que dele fazem parte, torna estas questões brutalmente presentes, obrigando-nos a mergulhar no mundo de valores em que nos habituámos a acreditar para tudo questionar.

dezembro 07, 2020

Viagem eletrizante por meio de palavras

A "Viagem Solitária" é uma das experiências de leitura mais gratificantes por que passei nos últimos anos, porque vem carregado de sensibilidade, mas especialmente porque nos abre a porta a um mundo distinto, difícil de conceptualizar mentalmente, o da transexualidade, tornando-a naturalmente humana. António Houaiss, o criador do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, escrevia como prefácio ao primeiro livro de João W. Nery, em 1984, "Leiam-no e humanizem-se.”

Transexual: "condição do indivíduo cuja identidade de género difere daquela designada no nascimento" (Dicionário Priberam) 

A maior questão que a transsexualidade evoca junto da camada de indivíduos sexuais padrão é: "como sabemos que não é um problema mental?" E isso é uma barreira muito difícil de ultrapassar para muitos. O caso do João é excelente, porque quem lê esta obra aprende a ver o mundo pelos olhos de um transexual. Enquanto Joana nunca gostou do seu corpo, sentiu-se sempre atraído por mulheres, mas sem qualquer pensamento lésbico, sentia-se heterosexual completo. Ler as suas palavras, o modo como sentia e desejava, torna tudo cristalino. Mas se dúvidas houvesse, quem seria capaz de abandonar conquistas de décadas enquanto mulher para se transformar num homem perdendo direito a tudo. Joana era licenciada e mestre em psicologia, professora universitária, adorada pelos seus alunos e colegas. Ao prosseguir com a operação, em pleno 1977, e na clandestinidade, perdeu o direito a usar o nome e os pergaminhos. O João nasceu com 27 anos. A pessoa que era continuou a sê-lo, num corpo diferente, mas para a sociedade passou de mulher Mestre a homem Analfabeto. Deixou o Rio e a academia e tornou-se agricultor no interior do Brasil.

O relato de algo assim impacta tudo aquilo que assumimos como realidade padrão. Mas maior do que isso é sem dúvida a frontalidade e lírica do relato. João, desde a infância demonstrou uma sensibilidade e empatia absolutamente à prova de ferro. A forma como escreve, como vê o mundo que sempre o mal-tratou, compreendendo a dificuldade desse mundo em relacionar-se com o diferente, o aparentemente impossível, o quase extra-terrestre, é digno de laudo.

“Havia um abismo entre como me viam e como me sentia.”

“Transformei-me literalmente num marginal, pois vivia à parte, à margem. Não pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritário e discriminado. Não me sentia mulher nem homossexual. Ainda desconhecia todas as categorias “inventadas” em meados do século XX. Sabia que não era aprovado pela maioria. Em que grupo existente me enquadrava?” 

“Vislumbrei duas saídas: acabar comigo ou lutar contra o impossível. Não queria morrer. Sabia que só teria uma vida. Embora fosse uma desgraça, toda trocada, não haveria outra chance. Estava vivo sem comparações.”

A leitura do livro ajuda-nos a compreender como sente alguém a intensidade de estar vivo num corpo que não corresponde ao conceito de si. Como a componente sexual pode funcionar, sentir prazer e atingir o orgasmo, mesmo não existindo recursos físicos apropriados à função esperada. A mente toma conta da biologia e encarrega-se do frémito. O livro fala também de quem envolve a pessoa, da dificuldade de lidar com a não aceitação, de lidar com a mudança, coloca a questão sobre o passado que deixa de existir e o novo presente, tudo na mesma pessoa, na mesma irmã que passa a irmão. É um relato carregado de detalhe sobre o humano e as teias sociais que o sustentam, tão vitais e ao mesmo tempo tão frágeis.

Por isso, este livro do João, que nos deixou em 2018, não presta apenas homenagem a todos os transexuais do mundo, ele é um hino à humanidade, à nossa capacidade de nos transcendermos, de sermos tolerantes e abertos ao outro, qualquer que seja a sua condição. É uma obra magnífica, por tudo o que o João tem para nos dar, e pelo modo electrizante como dá conta do mundo ao seu redor, capaz de nos agarrar na primeira página e só nos largar na última. 

Façam um favor a vós mesmos, leiam-no, o vosso mundo será mais precioso.


[Nota no GoodReads.]

setembro 25, 2020

Do poder, autoridade e responsabilidade

"O Consentimento" ("Le Consentement") (2020) é um livro de memórias que teve o impacto de uma bomba na sociedade francesa aquando do seu lançamento em janeiro de 2020, e que sai na próxima semana em Portugal. O livro de Vanessa Springora, editora literária francesa com 47 anos, dá conta de uma fase na sua vida, no início dos anos 1980, em que se viu envolvida sexualmente com o escritor francês, Gabriel Matzneff, reconhecido em França mas praticamente desconhecido no exterior, na altura ela com 14 anos, ele com 50. Matzneff não era apenas reconhecido como escritor, em surdina dizia-se também que era pedófilo, o que nunca impossibilitou a continuada publicação da sua obra pelas maiores editoras francesas, a receção de prémios de carreira e até subvenções estatais. Foi preciso esperar mais de 30 anos e por um livro de memórias para a sociedade francesa acordar.

O livro de Springora está muito bem escrito, é curto, não se perde em detalhes, vai direto ao assunto após uma breve contextualização familiar. Nota-se uma enorme atenção ao modo como tudo é dito, tanto na identificação de pessoas, como de lugares e instituições. Springora é uma editora, sabe o que faz, e aquilo que não se deve fazer. Não existem descrições gráficas, que seriam expectáveis num livro que é quase como um grito de revolta contra o seu país, tanto para exposição de raiva, como de vingança, assim como pela tentativa de trazer para junto de si as pessoas por via da tragédia. Mas ela não deixa de nos agarrar, pelo caminho contrário, expondo o seu sentir, antes, durante e depois. Questionando quem devia ter agido durante e desde então.

Springora escreve com enorme sabedoria, com enorme sensibilidade, vai ao fundo da questão que não é o pedófilo em concreto, mas o efeito do pedófilo sobre a criança que se é quando se tem 14 anos. O título fala de consentimento, mas que consentimento pode dar quem não tem direito a conduzir um carro ou a votar? E como pode a sociedade menosprezar e atacar quem por lá passou, sem se dignar a tudo fazer para defender estas pessoas e ajudá-las a sair do buraco para onde foram atiradas?

Não me apetece falar da história do escritor, a quem nada reconheço, nem sequer conhecia o seu nome antes de ler este livro. Dos 50 livros que terá escrito, só um surge amiúde referido quando se fala de si, "Les moins de seize ans" ("Os menores de 16 anos") de 1974. Um livro em que defende, de forma lasciva e atroz, o direito ao "amor" por crianças, rapazes e raparigas, mas que lhe serviria para defender, literariamente, aquilo que fazia na vida real, f@der jovens dos 8 aos 14 anos, em França e nas Filipinas. 

Aquilo de que tenho mesmo de falar, e que foi o que me levou a ler este livro, é a razão pela qual a sociedade francesa permitiu a um personagem desta envergadura reinar — escrever crónicas em grandes jornais, ser entrevistado pelas televisões, ganhar prémios nacionais — sem nunca ser questionado. É preciso regressar a Maio de 1968, para perceber como este dissimulado conseguiu tamanho feito. Num tempo em que era "Proibido Proibir" ele soube envolver-se na luta pela libertação sexual para defender o seu fetiche, e com isso levar nomes de peso atrás. Confesso que fiquei incomodado ao descobrir, neste livro, que manifestos de Matzneff, em defesa da despenalização das relações sexuais entre menores e adultos, lançados no final dos anos 1970, receberam o apoio de alguns dos monstros sagrados da elite francesa — Roland Barthes, Gilles Deleuze, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Jacques Derrida. Salva-se o facto de saber que entre os poucos que recusaram assinar estiveram Marguerite Duras e Michel Foucault. A influência de toda esta elite faria com que o personagem conseguisse chegar aos favores de poderosos, na política François Miterrand, no dinheiro, o riquíssimo Yves Saint Laurent. 

Repare-se que isto não são histórias de 1700, ou 1850, nem sequer 1950. Estamos a falar dos anos 1980. E Springora não foi a única, como se sabe mais no final do livro, existiu também uma Nathalie, e sabe-se agora por via do NYT, que existiu antes de Springora, Francesca Gee, para não falar das crianças em Manilla. Quantas mais existirão? A polícia francesa abriu um inquérito para apurar sobre mais vítimas. 

"Vanessa Springora Acreditamos em Ti"

O personagem tem agora 83 anos, tinha doado todos os seus manuscritos à biblioteca nacional francesa para serem preservados "para a eternidade". Nesses incluiam-se cartas escritas pelas mãos das meninas que violou, histórias pessoais e fotografias deslas que usou para escrever vários dos seus pseudo-livros. Temos de agradecer a Springora a coragem para obrigar toda a sociedade francesa a tirar a cabeça da areia, e a rever todo mal feito, porque como ela diz:

A longo de anos circulei dentro da minha própria jaula, cheia de sonhos de assassinato e vingança. Até ao dia em que a solução finalmente se apresentou, ali, na frente dos meus olhos, tão óbvia: agarrar o caçador na sua própria armadilha, prendê-lo num livro.


Mais info:

Dossier Le Figaro, 2020 

A Pedophile Writer is on Trial, NYT, 02.2020

Quand des intellectuels français défendaient la pédophilie, France Culture, 01.2020

Long-Silenced Victim of a Pedophile Writer Gets to Tell Her Story, NYT, 03.2020

Affaire Matzneff : son livre “Les moins de seize ans” retiré de la vente, la police s’en mêle, Telerama, 01, 2020

French publishing boss claims she was groomed at age 14 by acclaimed author, The Guardian, 27.12.2020

33 anos depois, Vanessa acusa escritor famoso de pedofilia, Sábado, 01.2020

abril 03, 2019

A Odisseia como romance primordial

Ou a Odisseia é uma narrativa demasiado complexa para o tempo em que se diz que foi criada, ou desde então nada de novo aprendemos... Neste livro, Uma Odisseia: Um pai, um filho e uma epopeia (2017), apresenta-se um conjunto de memórias que dizem respeito ao primeiro semestre de 2011, em que Mendelsohn lecionou a Odisseia, no Bard College (EUA), e a que o seu pai, com 80 anos, assistiu. No final desse semestre, pai e filho, fizeram um cruzeiro no Mediterrâneo para visitar os locais por onde passou Ulisses antes de chegar a casa. Mendelsohn cose as aulas e a interpretação da Odisseia com a sua relação com o pai, criando uma narrativa emocional, carregada de factos históricos e literários assim como de sentimento humano, capaz de conduzir pai e filho a “casa”. Não sendo uma grande obra, a escrita e estrutura deixam algo a desejar, é uma belíssima viagem.


É um livro que só faz sentido ler depois de se ter lido a Odisseia. A leitura está constantemente a levar-nos de volta à nossa experiência da Odisseia, com as diferentes interpretações que vão sendo apresentadas, não só alargando o nosso conhecimento, mas também densificando as nossas memórias dessa leitura, algo que contribuirá para que a viagem de Ulisses se sedimente ainda mais em nós. Não posso dizer que Mendelsohn se alargue muito, para quem tiver dedicado um pouco a leituras adicionais à Odisseia, a Homero, e aos gregos, não encontrará nada de muito novo, ainda assim o modo como tudo vai sendo apresentado, é não só imensamente agradável como enriquecedor da experiência do texto original.

Mendelsohn e o pai na viagem ao Mediterrâneo

A vista do Bard College, dando conta de um lugar propício ao estudo da Odisseia.

Voltando ao início, se já tinha esta ideia quando li a Odisseia, agora fiquei completamente certo disso, a Odisseia não é um épico, é um romance. Procurei depois sobre isto, e encontrei pelo menos dois autores que desconstruíram este argumento (ver abaixo referências), demonstrando como a Odisseia apresenta todos os ingredientes base daquilo que viriam a ser os romances pós D. Quixote. A saber:

. O amor maior pela mulher do que pelas deusas.
. O amor da mulher que tece e destece uma camisola, esperando 20 anos.
. O naufrágio e a perda de tudo.
. A origem da cicatriz, a gestão da emoção e drama.
. A educação de Telémaco.
. A moral, a compaixão, o amor, as emoções, as traições, o casamento, os filhos, os pais e mães, os deuses, os servos.
. Constelação de personagens que sustentam a moral de Ulisses.

Excerto do paper "The "Odyssey" as Romance" de John Dean

A Odisseia é a matriz de tudo o que foi escrito desde então, e por isso ou é tão brilhante que não a conseguimos até hoje suplantar, ou então, o modo como foi feita, o facto de ter sido testada previamente durante séculos como história oral, fez com que adquirisse traços daquilo que faz de nós seres humanos — sociais, afetivos e cognoscentes — tornando-se mais num modo como pensamos e exortamos o mundo, deixando de ser mero artefacto escrito.


Referências
Hubert McDermott (1989), Novel and Romance: The Odyssey to Tom Jones, Palgrave Macmillan UK
John Dean, (1976), "The "Odyssey" as Romance", in College Literature, Vol. 3, No. 3, The Homeric Epic, pp. 228-236

março 30, 2019

A Analfabeta

Quando acabei de ler "O Grande Caderno", primeiro livro de Agota Kristof [1935-2011], senti-me tão impactado pela diferença do que tinha acabado de ler que tinha de saber mais sobre quem tinha escrito tal. Quem era esta Agota que tinha nascido na Hungria, de onde tinha partido aos 21 anos, em 1956, com um bebé de 4 meses ao colo, para se refugiar na Suíça? Sentia que o seu livro falava tanto a partir de dentro, do seu mundo pessoal, que só o poderia compreender compreendendo-a a ela primeiro. Descobri então que tinha deixado um pequeno livro de memórias, "A Analfabeta" (2004), nunca traduzido para português, que acabei por adquirir na língua original, o francês, a língua que Agota adotou como sua, desde que se refugiou na Suíça.

"A Rapariga do Tatra" (1905) de Marianne Stokes

A escrita segue de muito perto aquilo que está nos seus romances (entretanto já li o segundo, "A Prova" de 1989). A sua vida e família não serviram de espelho aos livros, mas emprestaram toda a dor e sofrimento provocados pelo roubo da infância e de identidade. Agota fala em algo em que nunca tinha pensado a propósito da União Soviética. Se na Rússia as pessoas viveram sob o jugo do comunismo, esse comunismo era emanado da sua própria cultura. Os restantes países, como a Hungria, foram obrigados a adotar uma língua que lhes era completamente estranha, obrigados a deixar de ler os seus próprios escritores, a estudar a história e geografia da Rússia, a sua cultura foi apagada, ou como ela diz, "sabotada", substituída pela cultura de um país estrangeiro. É verdade que isto é o que acontece quando uns países invadem outros, como fez Napoleão, ou Roma, mas supostamente não era isso que a União Soviética dizia ser, era supostamente uma União de países, era a URSS.

A Revolução Húngara de 1956, 3 anos depois da morte de Estaline, foi um golpe falhado. Muitos, como Agota, aproveitariam para fugir, porque como ela diz, a Hungria só viria a ser livre 33 anos depois.

E no entanto, ao ler as palavras de Agota, dou por mim a pensar em Portugal em 2019, e nas salas de cinema espalhadas pelas dezenas de shoppings nacionais, e em 99% dos ecrãs em que passam apenas filmes em inglês, professando, doutrinando tal qual Estaline fez, os hábitos e comportamentos dos portugueses com os valores dos EUA. E ligo o rádio, onde quem canta continua a fazê-lo em inglês, para depois ligar a televisão e abrir o Netflix, e continuar a ouvir inglês, e a ser invadido por problemas culturais que não são os meus, mas é como se fossem. E quando falo com as pessoas próximas, e recomendo um filme europeu, dizem-me, "não, obrigado, não gosto de ver cinema que não seja falado em inglês"! Agota passou a sua infância com uma fotografia a cores de Estaline no bolso, e nós?

Tudo isto acaba por dar ainda mais força à minha interpretação dos gémeos, na alegoria do primeiro livro de Agota, como potenciais faces de uma mesma moeda, o Comunismo e o Capitalismo.

"L'Analphabete" tem apenas 56 páginas. Começa assim:
“Je lis. C’est comme une maladie. Je lis tout ce qui me tombe sous la main, sous les yeux: journaux, livres d’école, affiches, bouts de papier trouvés dans la rue, recettes de cuisine, livres d’enfant. Tout ce qui est imprimé.
J’ai quatre ans.”
e termina assim:
“Je sais que je n’écrirai jamais le français comme l’écrivent les écrivains français de naissance, mais je l’écrirai comme je le peux, du mieux que je le peux.
Cette langue, je ne l’ai pas choisie. Elle m’a été imposée par le sort, par le hasard, par les circonstances.
Écrire en français, j’y suis obligée. C’est un défi.
Le défi d’une analphabète.”

março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.

fevereiro 18, 2019

Diferentes modos de lidar com a tragédia

"Sorte" (1999) de Alice Sebold é um livro feito com base num dos grandes conflitos da humanidade, o estupro, que apesar de nos conduzir até ao interior de quem o sentiu na pele, não se deixa afundar no drama e tragédia, próprios da temática, assumindo uma postura confiante, de quem no meio da agrura e sofrimento nunca se deixa cair, não porque assim tem de ser, mas mais por algo que o livro acaba por revelar ao longo das suas páginas, a personalidade da pessoa, a força interior ou o modo particular como Alice vive a sua própria realidade.

Alice Sebold

“Sorte” é um livro de memórias, escrito como romance, e por vezes a personalidade franca e frontal da autora faz parecer tudo demasiado simples, fácil. A tragédia está lá, com os seus momentos altos de explosão e os baixos de negrura, mas o livro é sobre Sebold, e não sobre uma violação, ou pelo menos assim nos faz sentir Alice. Mas talvez também por isso não admire quem não se tenha conseguido ligar com o sofrimento da escritora, já que ele não é pronunciado, não é dominante. A isto não será com certeza alheio o facto de os seus pais terem pensado, e terem-no dito à própria Alice, que de entre as duas filhas, preferiam que lhe tivesse acontecido a ela, a menos introspectiva, mais alegre, divertida e cabeça no ar... Talvez tivessem razão, sendo no entanto preciso ser-se bastante alienado para se dizer tal a uma filha, mas muito do que fazem os seus pais é no mínimo estranho, ou pelo menos assim parece pelo modo como Alice olha para eles...
"Desde então pensei sempre que nos dicionários deviam dizer a verdade sobre a palavra violação. Não é apenas uma relação sexual forçada; violação significa invadir e destruir tudo." (p.178)
Não admira uma certa leveza que se sente ao chegar ao final da leitura apesar do que está em questão, e principalmente do brilhante primeiro capítulo focado no assunto e que funciona autenticamente como um estar dentro da cabeça de Alice durante todo o seu processo de revisitar a violação, como se víssemos através das janelas dos seus olhos as nauseabundas ações do violador. Mas isto também nos diz algo sobre a escrita, mais focada na ação e exterior, ainda que vista do ponto de vista da Alice. Porque ela não fala do que sente, fala mas não se detém, vai contando e descrevendo cada passo, um atrás do outro, seguindo um processo algo mecânico de contar histórias que agarra o leitor, por meio do “e a seguir” que faz virar páginas atrás de páginas. Porque por mais trágico que tudo tenha sido, Sebold não definha, não quebra, nem se deixa arrastar, não é assim que sente o mundo, ao contrário da sua família.

Sinopse: "No túnel onde fui violada, um túnel que outrora fora a entrada subterrânea de um anfiteatro, um lugar de onde os actores irrompiam para cima e para a frente, situado por debaixo dos assentos da multidão, uma rapariga fora assassinada e desmembrada. A polícia contou-me essa história. Comparada com ela, disseram, eu tinha tido muita sorte."

Aliás, não tendo lido o seu segundo livro, “Visto do Céu” (2006), vi o filme homónimo (2009), e li algumas resenhas do livro, parece-me que este tratamento que dá a sensação de ser feito apenas à superfície do sentir é uma marca sua. Quando olhamos para a violação ou rapto de menores, só conseguimos ver as trevas e a podridão do humano, Sebold consegue ainda assim encontrar luz, encontrar algo de positivo a que se agarrar. Ficamos com a sensação de que Sebold não vai ao fundo dos problemas, e poderíamos até pensar que é porque nunca os sentiu, mas como se vê por estas memórias, a questão está longe de ser falta de autenticidade ou de sentir, é antes uma forma de estar. Aliás, agora que escrevo estas linhas, penso que talvez o título do livro e o parágrafo que abre a sinopse não tenham sido usados de modo irónico como sempre pensei, mas talvez reflitam exatamente o caminho que Sebold decidiu trilhar dentro de si.