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setembro 13, 2020

O Verdadeiro Criador de Tudo (2020)

Miguel Nicolelis (1961) é um médico formado pela universidade de São Paulo e professor de neurobiologia na Universidade de Duke, EUA. A sua carreira tem sido recheada de prémios, reconhecimentos e louvores. Tornou-se popular com o projeto "Andar de Novo”, criado para a abertura do Mundial de Futebol 2014 (Brasil), que por meio de um exosqueleto, interfaces cerebrais e inteligência artificial permitiu a um paraplégico andar, chutar e marcar um golo. O projeto fez correr muita tinta, dentro e fora da academia, mas o principal resultado está neste seu livro "The True Creator Of Everything. How The Human Brain Shaped The Universe As We Know It" (2020), sob a forma de uma grande teoria sobre a realidade e o cérebro. 
Nicolelis abre o livro com a discussão do “Projeto Andar de Novo” focando-se sobre algo que parece um detalhe, mas que se torna central na discussão subsequente. No momento em que Juliano Pinto chuta a bola e marca golo, ele não grita “golo”, mas grita “I felt the ball! I felt the ball!”. O projeto pretendia criar um sistema de apoio artificial à locomoção da pessoa, que por ser tetraplégica deixou de controlar as suas pernas porque simplesmente não as sentia. Com este projeto, e com a tentativa de por meio de interfaces cerebrais colocar o cérebro a mexer as pernas por via de motores, o cérebro do paciente parece ter ido além, tendo conseguido realocar as sensações das pernas por via do sistema providenciado (ver imagem abaixo). 

Os exemplos disto são muitos, Nicolelis numa entrevista explica como o podemos fazer nós mesmos:
“coloque uma venda em uma pessoa normal como eu e você, e deixe passar  10, 15 minutos. Depois pegue um aparelho de ressonância magnética e peça a pessoa vendada para fazer uma tarefa tátil com as pontas dos seus dedos. [Com esse experimento] vamos detetar respostas táteis no seu córtex visual já. Isso sugere que existe uma conectividade entre o sistema sinestésico e o sistema visual (...) A gente encontra esse crosstalk de funções cerebrais por todo o lugar do córtex.”
O autor parte depois para uma discussão sobre a criação e seleção natural do nosso cérebro que teve impactos não apenas na morfologia mas no seu funcionamento em concreto, a partir do que vai iniciar a apresentação da sua proposta com o novo conceito de “informação godeliana”. Este tipo de informação, segundo Nicolelis, aproxima-se da informação digital, segundo descrita por Claude Shannon, com a diferença de ser analógica, mas mais do que isso, dada a sua imbricação natural com os tecidos, não formalizável, seguindo Godel. Mas é exatamente por possuirmos esse sistema de informação, que podemos reutilizar o cérebro de inúmeras formas diferentes. Ou seja, não existem área específicas para executarem funções no cérebro, elas podem ser realocadas, migradas, transformadas, em função da informação que recebem, abrindo espaço à “Teoria do Cérebro Relativístico”.

Com esta ideia estabelecida Nicolelis parte para discussão do cérebro enquanto criador da realidade que conhecemos. Imbuído do sistema de “informação godeliana” que permite construir a realidade nas nossas mentes de uma forma determinada, dá conta da impossibilidade desta informação ser replicada informaticamente e do modo como diferiria de uma qualquer espécie que tivesse surgido noutro qualquer planeta. O relevante desta proposta é que sustenta ideias discutidas pela filosofia desde a Alegoria da Caverna de Platão, para o que Nicolelis se suporta em Godel e contrapõe a ideia de que a matemática ou física sejam capazes de explicar algo além daquilo que o nosso cérebro possa compreender. 

Para o efeito transcreve um diálogo delicioso entre Albert Einstein e o Nobel da literatura, Rabindranath Tagore, ocorrido em Berlim a 14 julho 1930, que passo a transcrever:
Einstein: There are two different conceptions about the nature of the universe: (1) The World as a unity dependent on humanity. (2) The world as a reality independent of the human factor. 

Tagore: When our universe is in harmony with Man. The eternal, we know it as Truth, we feel it as beauty. 

Einstein: This is the purely human conception of the universe. 

Tagore: There can be no other conception. This world is a human world—the scientific view of it is also that of the scientific man. There is some standard of reason and enjoyment which gives it Truth, the stan- dard of the Eternal Man whose experiences are through our experiences. 

Einstein: This is a realization of the human entity. 

Tagore: Yes, one eternal entity. We have to realize it through our emotions and activities. We realized the Supreme Man who has no individual limitations through our limitations. Science is concerned with that which is not confined to individuals; it is the impersonal human world of Truths. Religion realizes these Truths and links them up with our deeper needs; our individual consciousness of Truth gains universal significance. Religion applies values to Truth, and we know this Truth as good through our own harmony with it. 

Einstein: Truth, then, or Beauty is not independent of Man?

Tagore: No.

Einstein: If there would be no human beings any more, the Apollo of 
Belvedere would no longer be beautiful.

Tagore: No.

Einstein: I agree with regard to this conception of beauty, but not with regard to Truth.

Tagore: Why not? Truth is realized through man.

Einstein: I cannot prove that my conception is right, but that is my religion.

Tagore: Beauty is in the ideal of perfect harmony which is in the  Universal Being; Truth the perfect comprehension of the Universal Mind. We individuals approach it through our own mistakes and blunders, through our accumulated experiences, through our illuminated consciousness—how, otherwise, can we know Truth? 

Einstein: I cannot prove scientifically that Truth must be conceived as a Truth that is valid independent of humanity; but I believe it firmly. I believe, for instance, that the Pythagorean Theorem in geometry states it is something that is approximately true, independently of the existence of man. Anyway, if there is a reality independent of man, there is also a Truth relative to this reality; and in the same way the negation of the first engenders a negation of the existence of the latter. 

Tagore: Truth, which is one with the Universal Being must essentially be human, otherwise whatever we individuals realize as true can never be called truth—at the least the Truth which is described as scientific and which can only be reached through the process of logic, in other words, by an organ of thoughts [the brain] which is human. According to Indian Philosophy there is Brahman, the absolute Truth, which can- not be conceived by the isolation of the individual mind or described by word but can only be realized by completely merging the individual in its infinity. But such a Truth cannot belong to Science. The nature of Truth which we are discussing is an appearance—that is to say, what appears to be true to the human mind and therefore is human, and may be called maya or illusion. 

Einstein: So according to your conception, which may be the Indian conception, it is not the illusion of the individual, but of humanity as a whole. 

Tagore: The species also belongs to a unity, to humanity. Therefore the entire human mind realizes Truth; the Indian or the European mind meet in a common realization. 

Einstein: The word species is used in German for all human beings, as a matter of fact, even the apes and the frogs would belong to it. 

Tagore: In science we go through the discipline of eliminating the personal limitations of our individual minds and thus reach that com- prehension of truth which is the mind of the Universal Man. 

Einstein: The problem begins whether Truth is independent of our consciousness. 

Tagore: What we call truth lies in the rational harmony between the subjective and objective aspects of reality, both of which belong to the super-personal man. 

Einstein: Even in our everyday life we feel compelled to ascribe a reality independent of man to the objects we use. We do this to connect the experiences of our senses in a reasonable way. For instance, if nobody is in this house, yet the table remains where it is. 

Tagore: Yes, it remains outside the individual mind, but not the universal mind. The table which I perceive is perceptible by the same kind of consciousness which I possess. 

Einstein: If nobody would be in the house the table would exist all the same—but this is already illegitimate from your point of view—because we cannot explain what it means that the table is there, independent of us. Our natural point of view in regard to the existence of truth apart from humanity cannot be explained or proved, but it is a belief which nobody can lack—no primate beings even. We attribute to truth a super- human objectivity; it is indispensable for us, this reality which is independent of our existence and our experience and our mind—though we cannot say what it means. 

Tagore: Science has proved that the table as a solid object is an appearance and therefore that which the human mind perceives as a table would not exist if that mind were naught. At the same time it must be admitted that the fact, that the ultimate physical reality is nothing but a multitude of separate revolving centers of electric force, also belongs to the human mind. In the apprehension of Truth there is an eternal conflict between the universal mind and the same mind confined in the individual. The perpetual process of reconciliation is being carried out in our science, philosophy, in our ethics. In any case, if there be any Truth absolutely unrelated to humanity then for us it is absolutely non-existing. It is not difficult to imagine a mind to which the sequence of things happens not in space but only time like the sequence of notes in music. For such a mind such a conception of reality is akin to the musical reality in which Pythagorean geometry can have no meaning. There is the reality of paper, infinitely different from the reality of literature. For the kind of mind possessed by the moth which eats that paper literature is absolutely non-existent, yet for Man’s mind literature has a greater value of Truth than the paper itself. In a similar manner if there be some Truth which has no sensuous or rational relation to the human mind, it will ever remain as nothing so long as we remain human beings. 

Einstein: Then I am more religious than you are! 

Tagore: My religion is the reconciliation of the Super-personal Man, the universal human spirit, in my own individual being. 


** In a second meeting, on August 19, 1930, the extraordinary dialogue continued. **


Tagore: I was discussing... today the new mathematical discoveries, which tell us that in the realm of the infinitesimal atoms chance has its play; the drama of existence is not absolutely predestined in character. 

Einstein: The facts that make science tend towards this view do not say goodbye to causality. 

Tagore: Maybe not; but it appears that the idea of causality is not in the elements, that some other force builds up with them an organized universe. 

Einstein: One tries to understand how the order is on the higher plane. The order is there, where the big elements combine and guide existence; but in the minute elements this order is not perceptible. 

Tagore: This duality is in the depths of existence—the contradiction of free impulse and directive will which works upon it and evolves an orderly scheme of things. 

Einstein: Modern physics would not say they are contradictory. Clouds look one [way] from a distance, but if you see them near, they show themselves in disorderly drops of water. 

Tagore: I find a parallel in human psychology. Our passions and de- sires are unruly, but our character subdues these elements into a harmonious whole. Are the elements rebellious, dynamic with individual impulse? And is there a principle in the physical world which dominates them and puts them into an orderly organization? 

Einstein: Even the elements are not without statistical order: ele- ments of radium will always maintain their specific order now and ever onwards, just as they have done all along. There is, then, a statistical order in the elements. 

Tagore: Otherwise the drama of existence would be too desultory. It is the constant harmony of chance and determination, which makes it eternally new and living. 

Einstein: I believe that whatever we do or live for has its causality; it is good, however that we cannot look through it. 


O mais paradoxal de toda a apresentação do livro, e que dá conta também de alguns dos problemas do trabalho do autor e nomeadamente do relacionamento com outros cientistas, surge nas previsões relativamente catastróficas que faz para o futuro do humano, nomeadamente a partir da ligeireza com que discorre sobre os efeitos dos media, dos computadores e nomeadamente das redes sociais. 

Deste modo, quando fechei o livro fiquei a pensar: quanto do que li é tão novo como o autor nos quer dizer? Se gostei de ler, e ter contacto com as décadas de experimentos neurocientíficos de Nicolelis, também me questionei sobre quanto destas propostas não tinham já sido amplamente discutidas em profundidade pela filosofia, depois psicologia e agora pelas neurociências? O que liga Platão, Descartes e Godel se não exatamente esta ideia de que o cérebro é o criador de tudo? 

Aquilo que se pode dizer é que Nicolelis acrescenta à teorização os modos efetivos de funcionamento do nosso cérebro que suportam essa ideia. Mas que o cérebro modelo e filtra a realidade, e nos faz ver de uma forma particular, acho difícil ter hoje dúvidas disso. A questão que se coloca é antes perceber, de que é então feita a realidade externa a nós, além da simulação mental que criamos? Claro que aqui batemos contra a parede da impossibilidade de sair fora do nosso espartilho cerebral, e talvez por isso mesmo tenhamos de concluir que somos apenas aquilo que o nosso cérebro nos permite que sejamos.

maio 31, 2020

Design de Experiência através do “Power of Moments”

“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.

dezembro 22, 2019

50 modelos de apoio à decisão

Encontrei este livro por acaso na Fnac, não o comprei logo, mas como não o esqueci acabei por o mandar vir. A razão porque me interessou tanto foi a dupla de conceitos: modelos e decisões. Em relação ao primeiro, é o modo como prefiro trabalhar a minha investigação, estou sempre à procura de situações, casos e exemplos em busca de padrões que possam depois ser replicados e potencialmente escalados, no fundo criar modelos de conhecimento. Em relação ao segundo, as decisões estão intimamente relacionadas com os processos de escolha humanos que são no fundo a base do design de interação, servindo amplamente desde as aplicações e jogos às narrativas interativas. Ou seja, olhei para este livro como um compêndio de ideias de potencial aplicação imediata, embora tal depois não tenha propriamente acontecido, mais porque parte dos modelos, os mais interessantes, já os conhecia, e os restante se distanciavam bastante do meu domínio de aplicação. Não esquecer que é um livro mais dirigido aos domínios da gestão.
"The Decision Book: Fifty Models for Strategic Thinking" (2008) de Mikael Krogerus e Roman Tschäppeler

Os 50 modelos são categorizados em 4 modos: melhoria do próprio; compreender-se melhor; compreender os outros melhor; e melhoria dos outros. Um conjunto de modelos são sobejamente conhecidos, alguns já mesmo enquanto teoria, deixo uma lista desses: Análise SWOT; Flow; Pareto Principle (80/20); Modelo da Cauda Longa; Compasso Politico; Ciclo do Hype; Difusão; Feedback, Pirâmide Marlow; Dilema do Prisioneiro; Capital de Bourdieu. Os autores utilizam estes modelos, mas adaptam-nos em função dos seus contextos, nomeadamente da realidade Britânica ou de conteúdos mais mainstream.
Modelo do Capital Social de Bourdieu

Por vezes surgem algumas generalizações nesses modelos algo questionáveis, mas o interessante está nos modelos, no modo como podemos triar os conteúdos usando-os. Ou seja, olhem para os modelos como formas de aplicação aos problemas, e não como teorizações do real. Por outro lado, como o livro é pequeno não sobra muito espaço para discussão e menos ainda aprofundamento, por isso olhem para o livro como cardápio, para depois ir atrás.
Modelo do Feedback

fevereiro 18, 2019

Elementos da Surpresa (2018)

"Elements of Surprise: Our Mental Limits and the Satisfactions of Plot", (2018) de Vera Tobin, é um livro académico sobre desenho de narrativa, que apesar de apresentar uma escrita por vezes leve e fluída, e um tema acessível, mais ainda pelos exemplos utilizados — "The Sixth Sense", "The Murder of Roger Ackroyd", "Great Expectations", "Emma", ou "Citizen Kane" —, não deixa de apresentar algumas componentes mais crípticas, com jargão próprio, que para quem não trabalha na área o pode tornar menos apetecível. Ainda assim, a sua essência é acessível a quem quer que sinta curiosidade pela temática e queira realizar algum esforço para entrar no discurso académico. Enquanto obra académica apresenta defensores e detratores [1,2], desde logo do campo da literatura que continuam a não ver com bons olhos a entrada da psicologia cognitiva no seu reino obscuro de pura especulação interpretativa. O que não deixa de ser ridículo, se olharmos para os estudos fílmicos onde a psicologia já entrou nos anos 1980, sendo talvez por isso mesmo que Tobin usa imensos exemplos cinematográficos lado a lado com exemplos literários, sem qualquer coibição e diga-se de forma imensamente refrescante para quem trabalha na área, cansado de divisões artificiais no campo da narrativa.


“Elementos de Surpresa” trabalha como o próprio título refere: a emoção de Surpresa. É algo novo, já que temos tido trabalhos sobre quase todas as outras emoções básicas —Medo, Alegria, Tristeza, Nojo e Raiva —, tendo a surpresa sido deixada de fora, não que surpreenda, dada a sua complexidade em termos de valência. Ou seja, a surpresa tanto pode ter peso negativo como positivo, por isso funciona mais como quadro emocional e menos como catalogador de situações. Isto para se trabalhar com histórias e narrativas não é propriamente o ideal, já que aquilo que é mais relevante é o modo como as emoções contribuem para a significação do conteúdo. Tobin, foca-se na forma por excelência, ou seja, como é que o design da narrativa, e a gestão de informação, operam a surpresa junto dos recetores. Ainda que não se possa dizer, que de uma forma geral, seja completamente novo, podemos juntar aqui obras que têm trabalhado o Suspense, que não são muitas e a Curiosidade, que em muitos momentos do livro me fizeram pensar que eram tópicos a que a autora deveria ter dado um pouco mais de atenção.

Mas a abordagem de Tobin acaba seguindo muito de perto os meus interesses de investigação e as abordagens que tenho tentado seguir, que é de utilizar todo o conhecimento produzido pelas Ciências Cognitivas, nomeadamente no campo do “behavioural economic” com autores como Kahneman, Tverski, Thaler, Ariely, Levitt, entre outros, e assim tentar desconstruir, desmontar, o design das narrativas, nomeadamente os padrões e modelos como nos agarram, envolvem, imergem e transportam para for a de nós mesmos. Por isso, não posso dizer que tenha sido surpreendido pelos resultados obtidos pela autora e que nos apresenta, contudo servem não só para reforçar a abordagem que alguns de nós temos vindo a defender, contribuindo para o avanço do nosso conhecimento sobre a psicologia e design da narrativa.

O principal conceito utilizado por Tobin é o “curse of knowledge” (maldição do conhecimento), um dos muitos vieses cognitivos, que ela define como: “the more information we have about something and the more experience we have with it, the harder it is to step outside that experience to appreciate the full implications of not having that privileged information”. No fundo, é o problema que surge sempre que temos que explicar a alguém alguma coisa, para o qual é necessário um determinado contexto, detendo nós o contexto e a outra pessoa não. Acontece todos os dias em sala de aula, mas acontece sobre as coisas mais simples, quando por exemplo queremos explicar algo que acontece num filme a alguém, mas a pessoa não percebe sem lhe explicarmos todo o enquadramento do filme primeiro. O que este viés nos diz é que normalmente não nos apercebemos dessa diferença de possessão de informação, ou se nos damos conta, não percebemos a diferença que ela comporta para a compreensão do que se está a dizer. Ou pondo-nos a nós no lugar da vítima, quando tentamos compreender porque um filósofo disse o que disse há 2, 3 ou 20 séculos, sem o devido contexto podemos simplesmente não compreender o que está em causa nas palavras escritas nesse outro tempo.

Tobin usa este modelo de criação de sentido, para tentar explicar o modo como a narrativa consegue gerar surpresa nos seus recetores, definindo a surpresa da seguinte forma: “one in which information revealed late in the narrative reveals a new, transformative interpretation of what has gone before.” Claro que Tobin está interessada em surpresa elaboradas, ou como ela diz “well made”, e não no simples ato de surpreender, que como ela também diz "pode facilmente ser feito, basta por exemplo, matar um personagem sem pré-aviso", como tanto gosta de fazer George RR Martin. No fundo ela está focada nos chamados “twists” narrativos, tais como o célebre final de “The Sixth Sense”, ao que acrescento aqui um, entretanto esquecido, “The Crying Game”.

"The Sixth Sense" (1999)

"The Crying Game" (1992)

O livro apesar de constituído de múltiplos capítulos, tem toda a sua essência concentrada no capítulo “Poetics of Surprise”, é aqui que nos apresenta os 5 modelos de produção de surpresa — Frame shift, Managed reveal, Finessing misinformation, Burying information, Emotional involvement — a que chegou com o estudo e levantamento que realizou, e é no fundo aquilo que importa reter deste livro e do excelente trabalho da autora. Vejamos então cada um destes, para cada um destes aponto uma dimensão da produção narrativa mais facilmente reconhecível entre parêntesis.


— Frame Shift  (gag)
Este modelo assenta nos conceitos cognitivos — de frame, schema e contexto — que determinam os modelos mentais que utilizamos para compreender a realidade. Estes servem para enquadrar uma informação nova que nos chega, que nos ajuda a rapidamente assimilar a mesma, mas cria um conjunto de expectativas sobre o que se deve suceder a essa nova informação, mas que entram em choque sempre que essas expectativas não acontecem. Assim, gera-se um enquadramento na cabeça do recetor, conduz-se o mesmo numa direção de sentido, e no final faz-se uma curva de 90º. Aqui parece-me que teria sido relevante também Tobin dar conta do facto de ser o modelo mais utilizado pelos humoristas, no fundo a base daquilo que chamamos “gag” (piada que nos engasga pela surpresa). Deixo um exemplo:
 “Um oficial iraquiano chama os oito sósias do Saddam e diz: Tenho boas e más notícias. A boa notícia é que Saddam está vivo. Todos os sósias comemoram. A má notícia é que ele perdeu um braço.”
— Managed Reveal (fechamento)
Neste modelo a surpresa dá-se por meio de uma revelação de informação cuidada, estruturada, em jeito de explicação do que aconteceu, oferecendo uma nova perspetiva sobre o que aconteceu, que cose todas as pontas soltas e faz com que tudo ganha um sentido novo e coerente. Isto funciona muito bem porque lidamos muito mal com dados incompletos, temos de por qualquer meio fechar tudo aquilo que se abre, e por isso estas revelações que nos surpreendem são ainda mais prazerosas porque nos aliviam do stress da incompreensão.
Para além do fechamento, que já vem da Gestalt, e que serve perfeitamente à narrativa, existe ainda um conjunto de estudos que têm demonstrado o quão ávidos de explicações somos, e como o mero ato explicativo por si é suficiente para nos seduzir. A autor dá um exemplo, estudado, que tem demonstrado resultados, e que acontece quando uma pessoa quer passar a frente numa fila, bastando para o efeito oferecer uma explicação mesmo que esta seja vazia: “May I use the Xerox machine, because I have to make copies?

— Finessing misinformation (ilusionismo)
Este modelo serve imensamente bem ao cinema porque as suas origens estão umbilicalmente ligadas ao mundo do ilusionismo desde o grande Méliès. Assim, este modelo assenta na ideia de construção de ações de dissimulação. Aproxima-se do “frame shift”, embora aqui não se objetiva a desviar o foco explicativo, mas antes o foco de atenção, esperando que o recetor não se dê conta do que está verdadeiramente acontecer, e assim possamos no final apresentar a informação como novidade ou algo desconhecido. Tobin usa o viés do “anchoring”, próximo do “priming”, em que certa informação apresentada primeiro, condiciona aquilo que tendemos a pensar no momento seguinte, induzidos pelo que vimos ou ouvimos antes.
O modo base deste modelo assenta no desenho dos personagens, que vão debitando linhas que nos levam atrás dos mesmos, que nos convencem de ser algo, mas que no final se revelam ser outra coisa completamente. Aqui podemos enquadrar o personagem de Bruce Willis em Sexto Sentido.

— Burying information (cavalo de Tróia)
Este padrão assenta na introdução de informação de forma encapotada, aproximando-se do ilusionismo, embora aqui não se procure fazer divergir a atenção, mas apenas só que o recetor não se aperceba dessa mesma informação. Tobin usa um conjunto de preceitos criados por colegas anteriormente, Emmott e Alexander [3] e que listo aqui também:

         Técnicas para esconder informação
"1. Mention the item as little as possible.2. Use linguistic structures which have been shown empirically to reduce prominence (e.g. embed a mention of the item within a subordinate clause).
3.  Under-specify the item, describing it in a way that is sufficiently imprecise that it draws little attention to it or detracts from features of the item that are relevant to the plot.
4.  Place the item next to an item that is more prominent, so that the focus is on the more prominent item. Hence, when fore- grounding is used it may have an automatic effect of down- playing nearby items, like a spotlight that makes items around the light less noticeable.
5.  Make the item apparently unimportant in the narrative world (even though it is actually significant).
6.  Make it difficult for the reader to make inferences by splitting up information needed to make the inferences.
7.  Place information in positions where a reader is distracted or not yet interested.
8.  Stress one specific aspect of the item so that another aspect (which will eventually be important for the solution) becomes less prominent.

— Emotional involvement (engajamento)
Aqui Tobin entra diretamente no domino que mais tenho trabalhado do engajamento humano com artefactos, e que tem múltiplos nomes, dependendendo da área científica por onde nos aproximamos. Desde o “narrative transportation”, à “presença” , passando pelo “flow” de Csikszentmihalyi (no meu livro "Emoções Interactivas" fiz uma tabela de conceitos similares com cerca de 15 conceitos [4]).  Assim Tobin, usa estes modos de inteira absorção por parte das obras como potenciais modos de geração de surpresa, pelo simples facto de que quando inteiramente absorvidos na experiência, muitos dos detalhes do que vai acontecendo nos passam ao lado, não nos damos conta, e por isso a obra vai manipulando o nosso pensar por via do nosso sentir.  Como ela diz “the more engaging and vivid the story events are, in fact, the less vigilant readers are about policing source information.”


Ficam assim as cinco principais estratégias para desenvolver surpresa numa narrativa, seja em que meio for. São estratégias pensadas por meio da psicologia cognitiva, mas que descrevem aquilo que o guionista faz, na maior parte do tempo sem saber que o está a fazer. Técnicas passadas pela experiência, que se socorrem de vieses cognitivos que todos, enquanto leitores, espectadores, e jogadores sofremos. O facto de terem sido aprimorados, ao longo de séculos de produção de narrativa, faz com que se tenham tornado tão naturais, no sentido em que não nos conseguimos aperceber da persuasão e manipulação de que somos alvo. A força destes vieses, e por isso destas técnicas, é tão grande que mesmo sabendo da sua existência, como acontece no final da leitura deste texto ou do livro da Tobin, continuamos a deixar-nos surpreender à medida que as vamos encontrando, como acontece com a maior partes dos vieses cognitivos.


REFERÊNCIAS
[1] Robert Appelbaum (2018) Joseph North, Literary Criticism (..) Vera Tobin, Elements of Surprise (..), Studia Neophilologica, DOI: 10.1080/00393274.2018.1550624
[2] Thomas Manuel, 2018, Do Writers Care for What Psychology Has to Say About the Curse of Knowledge?, in The Wire
[3] Emmott, C., Alexander, M., (2014). Foregrounding, burying, and plot construction. In The Cambridge Handbook of Stylistics, edited by Peter Stockwell and Sara Whiteley, 329–343. Cambridge: Cambridge University Press.
[4] Nelson Zagalo, (2009), Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, CECS/UM, Gracio Editor, Coimbra, Portugal, p.400, ISBN: 978-989-96375-1-1. Ver páginas 203-205.