Mostrar mensagens com a etiqueta norwegian_list. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta norwegian_list. Mostrar todas as mensagens

fevereiro 10, 2021

Clássicos: O Livro de Jó

“O Livro de Jó” faz parte dos “Livros poéticos e sapienciais” do Antigo Testamento, e terá sido escrito entre o VII e o IV séculos a.C., sendo um dos livros da Bíblia cristã mais amplamente citados dentro e fora do contexto religioso. Santo Agostinho cita-o, Tomás Aquino declara a história verdadeira, Martinho Lutero usa-o para definir a santidade. Na literatura, cita-se como a primeira grande obra existencial servindo depois, ao longo de séculos, a múltiplos autores na evocação do significado do humano — de John Milton (“Paraíso Perdido”) a Carl Jung (“A Resposta a Jó”), passando por Dostoiévski (“Os Irmãos Karamazov”) ou Kafka (“O Processo”) ou mais recentemente Terrence Malick (“A Árvore da Vida”). O núcleo do texto assenta no questionar da justiça ou moral divinas, ou como a teologia prefere definir: “o problema do mal” que se equaciona segundo a questão: “Por que sofrem os justos?"

"Filhos e Filhas de Jó desiludidos por Satanás" (1826) gravura de William Blake 

dezembro 23, 2020

Lu Xun, "O comunismo comia crianças"

"O Diário de Um Louco" (A Madman's Diary) (1918) de Lu Xun é um dos livros escolhidos pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo, e não é um livro fácil, apesar de pequeno, por causa da distância temporal e cultural. Não sou especialista em cultura chinesa, menos ainda na do início do século passado, por isso senti dificuldade em compreender o seu verdadeiro alcance numa primeira leitura. Isto agrava-se, porque o texto está escrito como metáfora o que obriga a pesquisa de contexto, sem o que faz parecer tudo muito indiferente. 

Uma cópia de "O Diário de um Louco" no Museu de Lu Xun, Pequim

Lu Xun conta a história de um homem semi-esquizofrénico que sofre de problemas da perseguição e que acredita que os seus amigos, vizinhos e familiares querem não só matá-lo, mas principalmente comê-lo. A meio do conto, percebemos que o personagem está completamente ensandecido, ou parece estar, porque em todo o lado só vê canibais.

Vamos ao contexto. Lu Xun parece pretender com esta história dar conta daquilo que a sociedade chinesa estava a fazer ao indivíduo chinês. A não permissão do livre pensar, o ter de ser igual a todos os demais, é visto por Xun como um processo de canibalização do ser humano. O ato de comer humanos representa o modo como a sociedade chinesa operava na eliminação das diferenças, aniquilando o individual para alimentar o colectivo, criando uma massa homogénea que não se questiona.

Enquanto lia o texto questionei-me sobre uma ideia que é costume ouvir quando se defende o comunismo no nosso país, e noutros lugares: "afinal os comunistas não comem crianças ao pequeno-almoço". No Expresso existe um artigo que só liga a frase aos regimes de Estaline e Mao e a períodos de fome que terão conduzido a surtos de canibalismo. Contudo, parece-me que a origem desse mito é anterior, e reside nesta obra de Lu Xun, não só pelo reconhecimento que o texto teve e continua a ter, mas acima de tudo pela frase com que o conto termina:
"Talvez ainda haja crianças que não tenham comido homens? 
Salvem as crianças...
Esta frase surge no final completamente desligada do resto do texto, já que nunca antes se fala das crianças, mas a interpretação mais comum é simples: Lu Xun já não acreditaria ser possível salvar aqueles que tinham sido endoutrinados, era preciso esperar pelas próximas gerações e para isso era preciso salvar as crianças.


O conto pode ser lido completo no portal Marxists.org.

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

abril 18, 2019

A civilização faz-se do contar de histórias

Há algum tempo que queria ler Mahfouz, o Nobel de 1988 dava-me alguma garantia de existir ali trabalho relevante, além de facilitar a triagem de uma cultura que tendemos a desconhecer. Comecei por procurar a Trilogia do Cairo mas como comecei a seguir a lista das 100 Obras do Instituto Norueguês do Nobel, e nesta vem este "Os Filhos do Bairro" (1959), acabei por optar por começar por aqui. Não li mais nada sobre o livro, apenas aceitei a recomendação da lista, entrei de olhos fechados, e mesmo assim o impacto foi grande. Provavelmente se tivesse lido algo mais sobre o que estava por detrás da mesma teria conseguido ler mais nas entrelinhas, contudo ler [1] no final continuou a permitir-me expandir a leitura e a sua compreensão, além de poder comparar as minhas interpretações com as mais consensuais. Mas se a história e sua premissa são belíssimas, imensamente poderosas e carregadas de significado, acabei por me entusiasmar mais ainda com a forma e estrutura (claro defeito da área que investigo).


Para mim, a premissa base de "Os Filhos do Bairro” assenta na explicação do mundo que temos como fruto do contar de histórias. A esta junta-se uma segunda, a mais debatida, da explicação do modo como surgiram as religiões e todo o seu impacto nos processo de civilização das sociedades. O registo escolhido é parabólico, num tom muito semelhante ao das “Mil e uma Noites” (800), mas poderíamos dizer também ao Velho e Novo Testamentos ou o Alcorão. A menção a estes últimos é intencional, já que a história que se conta tem por base as três religiões abraâmicas, ou monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Muitas das sínteses que se veem do livro falam sobre um conjunto de histórias, transparecendo quase a ideia de que se trata de um livro de contos, mas nada poderia ser mais errado. A estrutura apenas parece apresentar-se como um agregado de histórias, porque quando analisadas as suas relações, e compreendidos os seus objetivos e alcance damo-nos conta do facto de estarmos perante um romance não só completo, mas imensamente poderoso enquanto soma das partes. A estrutura é bastante distinta da matrioska das Mil e Uma Noites, porque funciona numa base de sucedâneo evolucionário, aparentemente natural mas com uns pós de sobrenatural, acabando por colocar em evidência, quase como representado sobre  um tabuleiro de ideias, todas as perspectivas religiosas e pós-religiosas. Existe algo de teleológico no romance, mas ao mesmo tempo diria que mais do que explicar o fim, Mahfouz está focado no chegar ao como, e é esse que acaba tornando a estrutura do romance (o sucedâneo de mundos evolutivos), tão mais relevante, porque acaba enunciado em si mesma aquilo que nos conta.

Ou seja, Mahfouz usa o contar de histórias, os seus processos, para literalmente discutir o mundo em que vivemos e aquilo que somos enquanto sociedade e espécie. Podia ter-se socorrido do ensaio argumentativo, mas preferiu a narrativa com todo o seu fervilhar dramático. Na verdade, o que Mahfouz faz é pegar nas qualidades narrativas, aquelas que tendemos a usar mentalmente para compreender o mundo, para nos dar a ver como funciona esse mundo. Este modo é muito mais eficaz que o ensaístico, já que usa a forma mental como construímos conhecimento, como nos relacionamos com o mundo, que contém sempre um lado humano que o ensaio, pelo seu traço racionalista, tende a deixar de fora. Por outro lado, o uso das histórias é ainda mais vital quando o foco da explicação do mundo assenta numa análise dos livros de histórias de cada religião, as mais importantes para a civilização em análise, ao que Mahfouz não deixa de juntar o correspondente atual, o Humanismo, com a sua ausência de Deus.

Naguib Mahfouz

Não vou detalhar os personagens, quem representam em cada história, porque efetivamente representam personagens da mitologia que suportam a nossa civilização. Aliás, é por causa dessa representação tão clara que a obra foi banida no Egipto durante décadas, mas pior do que isso, Mahfouz sofreu uma tentativa de assassinato [2] em 1994, 35 anos depois do livro escrito, o que dá bem conta do quão perfurante o livro consegue ser em termos religiosos, mas vou mais longe, o que  lhe aconteceu poderia ter sido mais uma das histórias contidas neste livro, o que torna todo o livro e o seu autor ainda mais coerentes e relevantes.


"Os Filhos do Bairro" é uma obra dotada de grande genialidade formal, que nos faz refletir em profundidade sobre a sociedade que temos, mas acima de tudo sobre aquilo que somos enquanto espécie. Não apresenta uma escrita muito elaborada, não sei o quanto se terá perdido na tradução, mas o cuidado estético e a mensagem poderosa fazem com que encaixe completamente no perfil do Nobel, ao lado de Saramago, Naipaul ou Marquez.


Nota: A Penguin criou todo um guia de questões [3] muito interessantes no apoio à leitura da obra de Mahfouz que pode servir clubes de leitura, assim como o uso das suas obras nas escolas.

Referências
[1] The Allegorical Significance of Naguib Mahfouz's, 1989 
[2] From ‘Children of the Alley: The Story of the Forbidden Novel’, 2019
[3] “Children of the Alley Reader”’s Guide, Penguin 

agosto 30, 2018

Pippi das Meias Altas (1945)

Confesso que comprei e li este livro apenas por surgir na lista das 100 Obras Literárias do Mundo compilada pelo Instituto Norueguês do Nobel. A Astrid Lindgren foi um dos 54 autores que contribuíram para a definição da lista, falecendo no ano de publicação da mesma (2002). Confesso ainda que a Pipi não faz parte do meu imaginário de criança, apesar de conhecer o nome desde sempre, só fiquei a conhecer o universo quando os meus filhos, há um par de anos, andaram a ver a série na televisão.

Esta edição da RdA apresenta-se numa belíssima capa dura. 

Dito isto, a minha aproximação à obra foi neutra em termos nostálgicos, embora influenciada pela respeitabilidade que a lista lhe confere. Tendo o texto sido escrito para um público com 7 anos, dificilmente poderia sentir muito a leitura, por isso procurei mais compreender de que era feita e como comunicava com o seu público-alvo.

Existe aqui uma fórmula evidente: o exagerar das capacidades, ações e intervenções da protagonista, que vão servindo os leitores mais novos com doses de surpresa, espanto e muito humor. A estrutura do livro é feita de quadros simples que definem um dia, e em cada dia existe um acontecimento que marca a experiência das crianças. A escrita segue raciocínios simples, por vezes limitando-se a descrições em sucedâneo mas que se ajustam à idade.

Quanto ao conteúdo, e principalmente a personagem, tenho de dizer que sai bastante do discurso politicamente correto a que nos temos habituado, tanto para os dias de hoje como em 1945. Aliás, na altura gerou fortes reações dos pais e escolas, e hoje continua a fazê-lo, basta ler algumas resenhas aqui no GoodReads. A Pipi é altamente irreverente, não se dobra a nada nem a ninguém, o que não deixa de ter um lado positivo, nomeadamente por ser uma menina. Quantas personagens femininas existem no nosso imaginário capazes de impor respeito a rufias, ladrões e polícias, que não têm medo de nada, nem sequer fantasmas. Não admira que a Pipi se tenha tornando num enorme símbolo do feminismo.