março 30, 2019

A Analfabeta

Quando acabei de ler "O Grande Caderno", primeiro livro de Agota Kristof [1935-2011], senti-me tão impactado pela diferença do que tinha acabado de ler que tinha de saber mais sobre quem tinha escrito tal. Quem era esta Agota que tinha nascido na Hungria, de onde tinha partido aos 21 anos, em 1956, com um bebé de 4 meses ao colo, para se refugiar na Suíça? Sentia que o seu livro falava tanto a partir de dentro, do seu mundo pessoal, que só o poderia compreender compreendendo-a a ela primeiro. Descobri então que tinha deixado um pequeno livro de memórias, "A Analfabeta" (2004), nunca traduzido para português, que acabei por adquirir na língua original, o francês, a língua que Agota adotou como sua, desde que se refugiou na Suíça.

"A Rapariga do Tatra" (1905) de Marianne Stokes

A escrita segue de muito perto aquilo que está nos seus romances (entretanto já li o segundo, "A Prova" de 1989). A sua vida e família não serviram de espelho aos livros, mas emprestaram toda a dor e sofrimento provocados pelo roubo da infância e de identidade. Agota fala em algo em que nunca tinha pensado a propósito da União Soviética. Se na Rússia as pessoas viveram sob o jugo do comunismo, esse comunismo era emanado da sua própria cultura. Os restantes países, como a Hungria, foram obrigados a adotar uma língua que lhes era completamente estranha, obrigados a deixar de ler os seus próprios escritores, a estudar a história e geografia da Rússia, a sua cultura foi apagada, ou como ela diz, "sabotada", substituída pela cultura de um país estrangeiro. É verdade que isto é o que acontece quando uns países invadem outros, como fez Napoleão, ou Roma, mas supostamente não era isso que a União Soviética dizia ser, era supostamente uma União de países, era a URSS.

A Revolução Húngara de 1956, 3 anos depois da morte de Estaline, foi um golpe falhado. Muitos, como Agota, aproveitariam para fugir, porque como ela diz, a Hungria só viria a ser livre 33 anos depois.

E no entanto, ao ler as palavras de Agota, dou por mim a pensar em Portugal em 2019, e nas salas de cinema espalhadas pelas dezenas de shoppings nacionais, e em 99% dos ecrãs em que passam apenas filmes em inglês, professando, doutrinando tal qual Estaline fez, os hábitos e comportamentos dos portugueses com os valores dos EUA. E ligo o rádio, onde quem canta continua a fazê-lo em inglês, para depois ligar a televisão e abrir o Netflix, e continuar a ouvir inglês, e a ser invadido por problemas culturais que não são os meus, mas é como se fossem. E quando falo com as pessoas próximas, e recomendo um filme europeu, dizem-me, "não, obrigado, não gosto de ver cinema que não seja falado em inglês"! Agota passou a sua infância com uma fotografia a cores de Estaline no bolso, e nós?

Tudo isto acaba por dar ainda mais força à minha interpretação dos gémeos, na alegoria do primeiro livro de Agota, como potenciais faces de uma mesma moeda, o Comunismo e o Capitalismo.

"L'Analphabete" tem apenas 56 páginas. Começa assim:
“Je lis. C’est comme une maladie. Je lis tout ce qui me tombe sous la main, sous les yeux: journaux, livres d’école, affiches, bouts de papier trouvés dans la rue, recettes de cuisine, livres d’enfant. Tout ce qui est imprimé.
J’ai quatre ans.”
e termina assim:
“Je sais que je n’écrirai jamais le français comme l’écrivent les écrivains français de naissance, mais je l’écrirai comme je le peux, du mieux que je le peux.
Cette langue, je ne l’ai pas choisie. Elle m’a été imposée par le sort, par le hasard, par les circonstances.
Écrire en français, j’y suis obligée. C’est un défi.
Le défi d’une analphabète.”

março 27, 2019

Alegorias políticas da República Popular da Hungria

"O Grande Caderno" (1986) de Agota Kristof apresenta-nos uma alegoria seguindo os passos dos irmãos Grimm, não deixando de fora o horror e originando múltiplas leituras. Pouco procurei, mas rapidamente encontrei várias, desde as mais simples que sustentam uma defesa do estoicismo, a teorias assentes no menino selvagem do século XIX, ou ainda a defesa de uma "ética ingénua" segundo Zizek. Do que eu li, e tendo em atenção ao contexto da escritora, refugiada na Suíça mas originária da Hungria ditatorial (estado comunista entre 1949 e 1989), pareceu-me estar perante um ataque ideológico pungente aos valores comunistas, com um discurso centrado em três vetores: ética, justiça e controlo emocional. À medida que vamos entrando no livro, vamos percebendo que algo está errado, existe um choque entre os valores rasteiros, praticamente selvagens, e uma literacia elevada. Ou seja, choca-nos como personagens com tanta capacidade intelectual podem submeter-se, quase voluntariamente, a tal.

Excerto da capa de uma versão inglesa. A versão lida faz parte da edição portuguesa da Editora Asa que reune os três primeiros livros de Agota Kristof, sob o título "Trilogia da Cidade de K."

Para se poder compreender a alegoria, pelo menos desta forma que passarei a descrever, um dos caminhos pode passar pela leitura da obra de Dostoiévski, nomeadamente as suas últimas obras, para entender aquilo que tanto o incomodava no comunismo: a forma como impossibilitava o humano na sua especificidade, bom ou mau, mas na sua singularidade. Dostoiévski batalhou com todas as suas forças o comunismo, porque não acreditava no seus princípios, compreendeu muito antes da sua implementação os seus efeitos, o modo como o seu racionalismo igualitário, acabaria por destruir a emocionalidade humana, a base daquilo que nos torna todos diferentes, e no fundo, únicos.


*** SPOILERS ***********************************

Os gémeos parecem originários do planeta Vulcano, mas isso apenas no diz aquilo em que se transformaram, já que todo o processo da sua insensibilização é descrito, seguindo toda uma cartilha de mandamentos, em que se obrigam a passar pelo indescritível para deixarem simplesmente de sentir. Ou seja, estamos perante filhos do grande regime, defensores de um visão historico-materialista, na qual o humano é moldado pelas condições materiais a que é sujeito. A ideologia não dá qualquer espaço à emoção, só a ética e a justiça podem garantir a igualdade. Não existe qualquer relação com o estoicismo aqui, pelo simples motivo de que os gémeos não buscam qualquer fim além do processo em si. Os gémeos são máquinas éticas de justiça, defendendo a igualdade de forma implacável.
"A Avó chama-nos:
– Filhos de uma cadela!
As pessoas chamam-nos:
– Filhos de uma Bruxa ! Filhos da puta!
Outros dizem:
– Imbecis! Vadios! Ranhosos! Burros! Porcalhões! Nojentos! Canalhas! Dejectos! Pedaços de merda! Malfeitores! Sementes de assassino!
Quando ouvimos estas palavras, sentimo-nos corar, as orelhas a arder, os olhos a picar, tremem-nos os joelhos.
Não queremos corar nem tremer, queremos habituar-nos aos insultos, às palavras que magoam.
Instalamo-nos à mesa da cozinha um em frente do outro e, olhos nos olhos, dizemos palavras cada vez mais atrozes.
Um:
– Cara de merda! Cu de cão!
O outro:
– Enrabado! Sacana!
Continuamos assim até que as palavras deixem de penetrar no nosso cérebro, nem sequer entrem nos ouvidos.
Exercitamo-nos desta maneira durante cerca de meia hora por dia, depois vamos passear pelas ruas.
Arranjamos maneira de ser insultados pelas pessoas e verificamos que conseguimos ficar indiferentes.
Mas também há palavras antigas.
A nossa mãe dizia-nos:
– Meus queridos! Meus amores! Meus tesouros! Meus adorados bebés!
Quando nos lembramos destas palavras, os nossos olhos enchem-se de lágrimas.
Mas teremos de esquecer estas porque, presentemente, ninguém nos diz semelhantes palavras e porque as nossas recordações são uma carga muito pesada de transportar.

Então recomeçamos o nosso exercício de outra maneira.
Dizemos:
— Meus queridos! Meus amores! Amo-vos... Nunca vos hei-de deixar... Nunca amarei mais ninguém... Nunca... Vocês são toda a minha vida...
À força de serem repetidas, as palavras vão perdendo o seu significado e a dor que trazem consigo atenua-se." (
pp. 24, 25)
Fui entretanto reler o Manifesto Comunista, e fiquei a refletir sobre a discussão que Marx e Engels fazem sobre a diferenciação entre o Proletariado e a Burguesia, no qual dão conta daquilo em que a burguesia transformava a sociedade no final do século XIX, que diga-se, em termos humanos, difere pouco daquilo que é hoje o capitalismo:
“Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais" ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "pagamento à vista".
“Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio."
"A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias."

in O Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels
Poderá este livro ser mais do que uma crítica ao Comunismo? Existirá aqui algo mais? Porquê gémeos? Será a resposta ao Comunismo o Capitalismo? Interrogo-me se poderiam estes gémeos serem a alegoria do Comunismo e Capitalismo, como faces de uma mesma moeda? Embora, tenha dúvidas sobre esta leitura, já que o comportamento dos gémeos, tirando talvez a parte final — em que uma dos gémeos leva consigo as jóias e o dinheiro, e serve-se do corpo do pai para atravessar a fronteira —, não é dada ao aproveitamento, ou tentativa de extrair ganhos, dos outros...

*** FIM SPOILERS ***********************************

Não admira que com obras destas, os intelectuais tenham sempre sido perseguidos pelos regimes ditatoriais.

março 23, 2019

Brincando com a mente, Claude Shannon

Claude Shannon [1916-2001] é um dos investigadores do século XX que maior impacto teve na sociedade do século XXI, contudo é praticamente desconhecido desta, e mesmo até de uma parte considerável da academia. Por isso, uma biografia sobre o seu legado — "A Mind at Play: How Claude Shannon Invented the Information Age" — é algo que não podemos deixar de celebrar, mesmo quando esta vai pouco além daquilo que surge na sua entrada na Wikipedia (inglesa). Se Shannon não soa a maior parte dos ouvidos, não é porque o seu contributo foi menor do que o de Alan Turing ou Albert Einstein, mas antes porque a sua maneira de ser, introspetiva e reservada, e toda uma vida sem qualquer escândalo, fez com que passasse ao lado dos holofotes de uma das indústrias que mais depende do conhecimento por si produzido, a comunicação social, e também por isso tivesse passado pela vida, ainda que contribuindo profusamente, de forma bastante despretensiosa.


Existem dois contributos que são considerados como os marcos de Shannon, a sua tese de mestrado “A Symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits” realizada em 1937 e o paper "A Mathematical Theory of Communication" publicado em 1948. A tese de mestrado — realizada num MIT que ainda não era o que é hoje, apesar de ter sido onde encontrou e trabalhou com outro dos grandes pioneiros do digital, Vannevar Bush — é considerada hoje como a tese de mestrado provavelmente mais relevante de sempre, porque é nesta que são apresentados, pela primeira vez, os rudimentos que permitiriam transformar sistemas fixos de transmissão de energia, como os circuitos elétricos, em sistemas dinâmicos, que se adaptam em função das necessidades. No fundo a conversão de sistemas analógicos em sistemas, ditos hoje, digitais.
“This was the computer before the digital revolution: a machine that literally performed equations in the process of solving them. As long as the machine was acting out the equations that shape an atom, it was, in a meaningful sense, a giant atom; as long as it was acting out the equations that fuel a star, it was a miniature star. “It is an analogue machine,” said Bush. “When one has a problem before him, say the problem of how a bridge that has not been built will sway in a gusty wind, he proceeds to make a combination of mechanical or electrical elements which will act in exactly the same manner as the bridge—that is, will obey the same differential equations.” For the physicist or engineer, two systems that obey the same equations have a kind of identity—or at least an analogy. And that, after all, is all our word analog means. A digital watch is nothing like the sun; an analog watch is the memory of a shadow’s circuit around a dial.”
Esta conquista de Shannon só foi possível graças à sua formação dual, em Engenharia e Matemática. Ou seja, o seu conhecimento de eletrotécnica e o seu conhecimento de matemática, nomeadamente lógica, fez com que conseguisse juntar os dois mundos de conhecimento, a assim procedesse à construção de uma máquina que operava não em função do problema a resolver, mas antes em função de um sistema de lógica booleana. E assim temos que:
“It’s not so much that a thing is “open” or “closed,” the “yes” or “no” that you mentioned. The real point is that two things in series are described by the word “and” in logic, so you would say this “and” this, while two things in parallel are described by the word “or”... There are contacts which close when you operate the relay, and there are other contacts which open, so the word “not” is related to that aspect of relays... The people who had worked with relay circuits were, of course, aware of how to make these things. But they didn’t have the mathematical apparatus of the Boolean algebra (..) “I think I had more fun doing that than anything else in my life.” [said Claude Shannon]”.
“But the most radical result of Shannon’s thesis was largely implied, not stated, and its import only became clear with time. The implication gets clearer when we realize that Shannon, following Boole, treated the equal sign as a conditional: “if”. “1 + 1 = 1: if the current passes through two switches in parallel, a light lights (or a relay passes on a signal meaning “yes”). 0 + 0 = 0: if the current passes through neither of two switches in parallel, a light fails to light (or a relay passes on a signal meaning “no”). Depending on the input, the same switches could give two different answers. To take an anthropomorphizing leap — a circuit could decide. “A circuit could do logic. Many circuits could do enormously complex logic: they could solve logical puzzles and deduce conclusions from premises as reliably as any human with a pencil, and faster. And because Boole had shown how to resolve logic into a series of binary, true-false decisions, any system capable of representing binaries has access to the entire logical universe he described. “The laws of thought” had been extended to the inanimate world.”
A tese de mestrado é o cerne de todo o trabalho de Shannon, porque é o cerne da conversão do mundo real em digital. Obviamente que em 1936 não existia ciberespaço, nem existia internet, tal como não existia Microsoft, Apple, Amazon, Google ou Facebook, as 5 maiores empresas globais da atualidade. Por isso foi preciso continuar a investigação, aprofundar as possibilidades do seu trabalho, até à publicação do paper "A Mathematical Theory of Communication" em 1948, para que a sociedade conseguisse compreender o alcance do que tinha sido apresentado dez anos antes. Tal só seria possível a Shannon pelo ambiente em que trabalhava, e trabalharia durante mais de 15 anos, o Bell Labs:
“In 1925, Bell Labs was carved out of the phone company as a stand-alone entity, with custody shared jointly by AT&T and Western Electric. Walter Gifford, the president of AT&T, observed that the Labs, while nominally an arm of the phone company, could “carry on scientific research on a scale that is probably not equaled by any organization in the country, or in the world.” The goal of Bell Labs wasn’t simply clearer and faster phone calls. The Labs were tasked with dreaming up a future in which every form of communication would be a machine-aided endeavor. (..) When I first came there was the philosophy: look, what you’re doing might not be important for ten years or twenty years, but that’s fine, we’ll be there then. (..) That accumulation of talent paid tremendous dividends. In the span of a few decades, Bell researchers invented the fax machine, touch-tone dialing, and the solar battery cell. They engineered the first-ever long-distance phone call and synchronized the sounds and images in movies. During the war, they improved radar, sonar, and the bazooka, and they created a secure line to allow Franklin Roosevelt to speak to Winston Churchill. And in 1947, Bell researchers John Bardeen, William Shockley, and Walter Brattain created the transistor, the foundation of modern electronics. The trio would earn a Nobel Prize, one of the six Nobels given to Bell scientists during the twentieth century. (..) It was one thing for an industrial laboratory to hire qualified PhDs and put them to work on various pressing engineering problems. But Nobel Prizes? Pie-in-the-sky projects? Ten or twenty years of leeway? Even accounting for nostalgia, Thornton Fry’s judgment hardly seems out of place; looking back on the Labs, he called it “a fairyland company.”
Neste paper, de 1948, Shannon vai para além do que tinha apresentado na sua tese, porque converte o seu conhecimento, restringido ao desenho de lógica numa máquina, num modelo matemático capaz de calcular e prever com exatidão a informação que entra e a informação que sai, num circuito. Ou seja, criava o primeiro modelo de comunicações, capaz de converter impulsos eletrónicos em bits (nome adotado para a unidade de informação, e que chegou a ser designado por "shannons"), ou seja, de transformar Energia em Informação. Este modelo alarga completamente a relevância de Shannon, porque não só alarga o domínio da Eletrónica, fazendo-o colidir com o da Computação, mas vai mesmo até ao cerne da Comunicação. Ou seja, o modelo não diz apenas como é que podemos garantir que a informação que sai e que entra é igual, recorrendo a circuitos de lógica e matemática (probabilística), mas diz como é que a informação se comporta ao longo de todo um ciclo de comunicação, algo que surpreendentemente nunca tinha sido pensado, modelado, até 1948.

O modelo de Shannon é aplicável a todo e qualquer sistema de transmissão de informação, biológico ou artificial, sendo o primeiro modelo de comunicação alguma vez proposto.

Assim, temos que o conhecimento criado na tese mais o modelo proposto no paper, tornariam Shannon no grande responsável por uma vaga que dura até hoje, e que apelidamos de Revolução da Informação. Ou seja, as 5 maiores empresas do planeta em 2019, dependem completamente deste pedaço de conhecimento, já que tudo o que fazem, assenta numa continua conversão entre o mundo real e o mundo digital, pela digitalização de filmes, músicas, livros e todo o tipo de cultura, serviços e conhecimento, mas também de indústrias inteiramente construídas em exclusivo nos reinos do digital, tal como os Motores de Busca, as Rede Sociais ou as Clouds.



O resto do livro são fait-divers, alguns menos bons — como o rebaixamento de Norbert Wiener, ou as ausentes relações de Shannon com Turing ou Einstein. Do todo, o que retiro como novidade deste livro, e que ainda desconhecia, é o modo como Shannon criava conhecimento. Shannon era um maker, um tinkerer, e como Leonardo da Vinci, observava, experimentava e transformava a realidade em busca de respostas. Passou toda a sua vida a realizar experimentos, desde as primeiras máquinas capazes de jogar xadrez a ratos eletrónicos que conseguiam encontrar queijos em labirintos, até às suas duas últimas paixões, a construção de uniciclos e a modelação matemática do malabarismo. Daí o título do livro, “A Mind at Play”:
“But Shannon also placed a high value on his tinkering. “The design of game playing machines may seem at first an entertaining pastime rather than a serious scientific study,” he allowed, but there was “a serious side and significant purpose to such work, and at least four or five universities and research laboratories have instituted projects along this line (..) His goals were as grand as the means, at least at the time, were simple. “My fondest dream is to someday build a machine that really thinks, learns, communicates with humans and manipulates its environment in a fairly sophisticated way,” Shannon admitted. But he was not bothered by the usual fears of a world run by machines or a human race taking a backseat to robots. If anything, Shannon believed the opposite: “In the long run [the machines] will be a boon to humanity, and the point is to make them so as rapidly as possible...”

Quando questionado sobre a importância de podermos vir a desenvolver robôs e IA, Shannon foi muito claro e direto naquilo em que acreditava:
 “I believe that today, that we are going to invent something, it’s not going to be the biological process of evolution anymore, it’s going to be the inventive process whereby we invent machines which are smarter than we are and so we’re no longer useful, not only smarter but they last longer and have replaceable parts and they’re so much better. There are so many of these things about the human system, it’s just terrible. The only thing surgeons can do to help you basically is to cut something out of you. They don’t cut it out and put something better in, or a new part in (..) “We artificial intelligence people are insatiable,” he once wrote. Once machines were beating our grandmasters, writing our poetry, completing our mathematical proofs, and managing our money, we would, Shannon observed only half-jokingly, be primed for extinction. “These goals could mark the beginning of a phase-out of the stupid, entropy-increasing, and militant human race in favor of a more logical, energy conserving, and friendly species—the computer.”
E é isto, estas últimas palavras de Shannon acompanham-me desde que vi o filme “Artificial Intelligence:AI” de Spielberg e Kubrick, em 2001, tendo sido responsáveis pelo primeiro post neste blog. Uma nota final. Mesmo uma mente brilhante como a de Shannon, veria ser-lhe diagnosticada princípios de Alzheimer em 1983, sendo internado em 1993 já incapaz de reconhecer a família, vivendo até 2001.


Mais alguns links de interesse
O homem que transformou o papel em píxeis, VI
A Goliath among Giants, Bell Labs
Bell Labs Looks at Claude Shannon’s Legacy and the Future of Information Age, IEEE
1952 – “Theseus” Maze-Solving Mouse – Claude Shannon (fotografias)

Referência do livro: 
Jimmy Soni, J., Goodman, R., (2017). "A Mind at Play: How Claude Shannon Invented the Information Age". NY: Simon & Schuster

março 17, 2019

Leitura obrigatória: "Homem Invisível"

"Homem Invisível" (1952) de Ralph Ellison é um livro passível de infinitas interpretações que começam no título e nunca param de se nos oferecer à sua compreensão. Não é um livro de alegorias nem de filosofias, existe uma trama que nos agarra, é romance, são eventos que se sucedem numa história repleta de peripécias, que começam no sul quente dos EUA e desembocam na fervilhante Nova Iorque, mas não deixa de ser filosofia no seu estado bruto, aquilo que emerge do relatar do quotidiano, motivado pelo fulgor da profundidade e detalhe com que se preenche a explanação desse relato. Mesmo os momentos que fui considerando menos bons por alguma incoerência — diferença de tipos de discurso e alguns aparentes clichés narrativos — acabam no final fazendo sentido como um todo, evidenciando a narração adotada como inseparável da história e seus personagens.

Fotografia encenada com base no prólogo do livro "Invisible Man", criada por Jeff Wall, 2000, MoMA

Temos um personagem, negro, nos anos 1920/1930, nos EUA, de quem nunca sabemos o nome, que começamos por acompanhar num tradicional registo de romance de formação, mas que aos poucos vamos percebendo que de tradicional tem pouco. Inicialmente marcado por capítulos ou cenas da vida do personagem em crescimento, praticamente estanques, num tom diarista que choca com momentos de ação e espetacularidade, mas em que o espetáculo não é usado como fomento de heroísmo nem de anti-heroísmo, gerando verdadeiros anticlímaces, que no fundo acabam contribuindo para a o cerne do livro, a invisibilidade do personagem. A invisibilidade começa no interior do personagem, sendo o sentido mais imediato de leitura os efeitos que provoca no seu comportamento, mas que ao longo de todo o livro, e principalmente ao fechar do pano — a fuga e queda num buraco — acaba a refletir-nos a todos, àquilo que somos perante a sociedade.

"Compreender. Compreende? E bem pior do que isso. Os seus sentidos registam, mas o cérebro entra em curto-circuito. Nada tem significado. Ingere mas não consegue digerir. Já é... bem, Deus me valha! É só olhar para ele! Um zombi que caminha! Já aprendeu, não só a reprimir as emoções mas também a sua humanidade. É invisível, a encarnação viva do negativo, a realização perfeita dos seus anseios, senhor! O homem mecânico!"
Não raros momentos, pelo menos até meio, somos levados a pensar em autobiografia, memórias, mas com o desenrolar dos eventos vamos percebendo que essa é apenas uma secção do pano de fundo. Ellison deu várias entrevistas e escreveu, frisando que não se tratava de autobiografia, mas não era necessário, bastava desde logo atender às referências psicológicas e existenciais de Dostoiévski, góticas e fantásticas de Faulkner, ou alegóricas e pastorais de Twain. O registo move-se entre o realismo confessional, agravado pelo uso da primeira-pessoa, e a fantasia mitológica que roça o surrealismo, de onde originaram as minhas primeiras objeções, mas que no virar da última página, se percebe como sendo vitais para a total compreensão da dimensão da invisibilidade. É um livro que fala do humano em grande profundidade, para o que usa um tom descritivo do interior do personagem verdadeiramente perfurante. No entanto nada disso envolve grandes tiradas filosóficas, nem sequer grandes acontecimentos. Na banalidade do quotidiano o fantástico acontece, mas esse é-o apenas à superfície, já que rapidamente se converte em vulgaridade pela repetição entre passado, presente e potencial futuro.
"Ilusões que tinham acabado de ser varridas da minha cabeça: universitários que trabalhavam  para retomar os estudos no Sul; rapazes mais velhos, paladinos do progresso racial, cheios de planos utópicos para a construção de impérios comerciais negros; pastores cuja a única autoridade era a que conferiam a si próprios, sem igreja nem fiéis, sem pão nem vinho, corpo ou sangue; dirigentes comunitários sem seguidores; homens de sessenta anos ou mais, ainda presos aos sonhos pós-Guerra Civil, de liberdade dentro da segregação; seres patéticos que não possuíam nada, excepto sonhos de cavalheirismo, que tinham empregos insignificantes ou recebiam parcas pensões, todos fingindo estar envolvidos em empreendimentos mais vastos, embora obscuros, que influenciavam os comportamentos pseudo-aristocráticos de certos congressistas sulistas, diante dos quais se desfaziam em reverências e cumprimentos, como galos senis num quintal; multidão mais jovem pela qual sentia agora um desprezo apenas comparável ao que um sonhador desiludido sente por aqueles que ainda desconhecem que estão a sonhar" 
"Hoje em dia, o meu mundo é feito de infinitas possibilidades. Que frase! Ainda assim, é uma boa frase e uma boa atitude perante a vida; o ser humano não devia aceitar outra; isso, ao menos, aprendi debaixo da terra. Até que um grupo consiga colocar o mundo numa camisa de forças, essa definição é possível e viável."  
 Surpreende como um livro americano de 1952 consegue fazer-se valer de uma premissa tão contemporânea, e ao mesmo tempo adversa à própria cultura dos EUA, a arte de falhar. Num mundo e cultura tão direcionados ao sucesso só ganhar interessa, falhar nunca, criámos a vergonha e a desonra para quem falha, porque o falhanço é o símbolo da impossibilidade, incapacidade e da incompetência, espaço reservado a perdedores. Ora Ellison apresenta um personagem num romance de formação como homem novo e empoderado pela educação, mas que falha em toda a linha, sem contudo o apresentar como perdedor, já que é a partir desses falhanços na sua relação com o mundo, que ele cresce interiormente e aprende a conhecer-se. De certo modo, podemos aqui ler uma relação direta com as “Memórias do Subterrâneo” (1864) de Dostoiévski, no que toca à sua oposição ao mundo perfeito prometido pelo Comunismo através da apresentação de um mundo existencialista que pauta a condição daquilo que faz de nós seres-humanos.

Ralph Ellison [1913 — 1994]

É um romance magistral e, no entanto, é o primeiro do autor, mas se isso não for suficiente para nos impressionar, é também o único. Ralph Ellison publicou esta obra com 39 anos, depois de 7 anos completamente dedicados à sua escrita, e passaria os restantes 42 anos da sua vida a trabalhar no segundo romance que nunca publicaria, do qual nos deixaria mais de 2 mil páginas, de onde Charles R. Johnson acabaria por coligir 400 páginas e publicar o livro “Juneteenth”. Comparando com outros autores, não falando de torrenciais ou recordistas, é caso para nos interrogarmos porquê? Esta questão não se coloca apenas na literatura, surge em todas as áreas criativas, sendo a conclusão mais consensual: “que provavelmente o autor disse tudo o que tinha para dizer”. Aliás, voltando a Dostoiévski, as ideias dos seus cinco romances mais importantes — “Memórias do Subterrâneo”, “Crime e Castigo”, “O Idiota”, “Demónios”, “Os Irmãos Karamazov” — poderiam também talvez ter sido todas sintetizadas num único grande romance.

março 13, 2019

A Casa do Professor, de Willa Cather

"The Professor’s House" foi publicado em 1925, quando Willa Cather tinha acabado de passar os 50, idade relevante pela temática de fundo escolhido: a crise existencial de meia-idade. O livro, como indica o título, foca-se num professor universitário, no topo da carreira, resignado pela falta de objetivos, passando os seus dias a rememorar um passado que não volta. Não tem, nem de perto, a acuidade psicológica de "Stoner" (1965) de John Williams, mas o modo como Cather desenrola os personagens e as suas tramas, em tempos diferentes e provoca a intersecção entre mundos aparentemente desconexos, acaba gerando uma reflexão rica e imensamente desafiante.


O início da obra começa de um modo algo lento, com personagens pedantes, pouco atrativos, mas vai-se tornando familiar, até que na segunda parte muda completamente de registo. O segundo momento é preenchido por um texto que começou por ser um conto e Cather depois transformou neste livro. Quando descobri o processo de construção do livro, fiquei reticente quanto à sua leitura, já que me soava a aproveitamento e potencial extensão artificial do mesmo. Contudo o facto de se tratar de um campus novel, género que me interessa particularmente, acabou fazendo com que o lesse. E assim, iniciado esse segundo momento, senti inicialmente que não fazia qualquer sentido, que era um rasgo completamente ao lado. Mas o texto vai evoluindo, o personagem vai-se mostrando e dando, e vamos compreendendo o que está Cather a tentar fazer. No momento em que ligamos aquilo que parecem ser duas histórias diferentes, a leitura eleva-se, algo que é ainda mais enfatizado pela terceira parte, a final do livro.

Não vou detalhar nada do que acontece, menos ainda da experiência, já que os sentimentos proporcionados me tocaram de forma bastante pessoal e profunda, algo que não tenho interesse em discutir aqui de forma pública. Contudo, conto voltar ao livro num outro texto a propósito da comparação entre o sistema universitário em 1925 e hoje.

março 12, 2019

Leonardo

Walter Isaacson tem vindo a escrever biografias sobre vários criadores multidisciplinares, ou polímatas, — Benjamim Franklin (2003), Steve Jobs (2011) e Ada Lovelace (2014) — e alguns génios — Einstein (2009) e Alan Turing (2014) —, tendo a última, sobre Leonardo (2017), servido de síntese aos dois tipos de criadores, dadas as capacidades deste para abraçar múltiplas artes (desenho, pintura, escultura, música ou arquitetura) e múltiplas ciências (engenharia, geometria, cartografia, anatomia, biologia, astronomia, ou física), e em várias dessas ter aprofundado e conseguido revolucionar o conhecimento existente — técnicas de pintura (sfumato e luz), geometria (perspetiva e vistas de sólidos) e engenharia (sistemas e hidráulica). Pode-se até discutir o valor de algumas das suas revoluções, mas não se pode retirar o mérito e brilhantismo de cada uma dessas inovações, o que em síntese nos obriga a colocar Leonardo no topo dos criadores de conhecimento de toda a História.

Livro: Isaacson, W. (2017). Leonardo da Vinci. NY: Simon & Schuster

Por ter nascido como filho ilegítimo, Leonardo não teve acesso a uma educação formal, tendo-se iniciado como autodidata, o que aliado ao facto de ser esquerdino faria com que escrevesse da direita para a esquerda, em espelho (o que para algumas teorias da conspiração tinha como objetivo vedar o acesso ao seu trabalho). Só aos 14 anos foi iniciado na aprendizagem do desenho e pintura com Andrea del Verrocchio, tendo depois disso recorrido sempre a diferentes especialistas para aprofundar aquilo que desejava aprender de novo. Leonardo recusava o conhecimento presente nos livros, considerava que o conhecimento estava no mundo, e só se podia adquirir pela observação e experimentação desse mundo, era um empiricista.
“His quest for knowledge across all the disciplines of arts and sciences helped him see patterns. Occasionally this mode of thinking misled him, and it sometimes substituted for reaching more profound scientific theories. But this cross-disciplinary thinking and pattern-seeking was his hallmark as the quintessential Renaissance Man, and it made him a pioneer of scientific humanism.”
Esta sua abordagem à construção de conhecimento, e a imensidão de conhecimento desenvolvido, fazem deste seu empiricismo a sua principal genialidade, algo que só foi possível graças a um conjunto de características psicológicas que o sustentavam: a persistência, a resiliência, e uma curiosidade inumana. Leonardo não se interessava por tudo ao mesmo tempo, começava num tópico — perspetiva, sombras, movimento de água, circulação do sangue, etc. etc. — e investia todas as suas forças até esgotar o que podia apreender da realidade. Como exemplo, no campo da anatomia e fisiologia, dissecou dezenas de cadáveres, tendo chegado a abrir um porco em que o coração ainda batia, para estudar a movimentação do sangue, e assim perceber que o coração não era feito de 2, mas 4 ventrículos separados. O seu trabalho moveu-se sempre pela sede de saber, de conhecer, de descobrir o que não sabia e não lhe conseguiam dar respostas. Movia-se por via da observação ao que juntava o desenho não apenas para registar as observações, mas para compreender o real. Quando tentou responder ao problema matemático da quadratura do círculo, ainda tentou seguir pela via do cálculo, com a ajuda do matemático Luca Pacioli, mas incapaz da necessária abstração, acabaria por recorrer ao desenho para construir as suas respostas.

Sólidos geométricos desenhados por Leonardo Da Vinci para o livro "Divina Proportione" (1506) de Luca Pacioli.
“During this period of intense anatomical study, Leonardo made 240 drawings and wrote at least thirteen thousand words of text, illustrating and describing every bone, muscle group, and major organ in the human body for what would have been, if it had been published, his most historic scientific triumph. ”
“His studies at times became such a deluge of details that they reveal more about his passion than about water’s dynamics. He spent hours fixated on flowing water, sometimes observing it and at other times manipulating it to test out his theories. In one part of the Codex Leicester he crammed 730 conclusions about water onto eight pages, causing Martin Kemp to comment, “We may feel that the boundary between dedication and obsession has been overstepped.”
“He was mainly motivated by his own curiosity (..) He was more interested in pursuing knowledge than in publishing it. And even though he was collegial in his life and work, he made little effort to share his findings. (..) This is true for all of his studies, not just his work on anatomy. (..) when he died, Leonardo would leave -- only piles of unedited notebook pages and drawings. (..) Over the years, and even centuries, his discoveries had to be rediscovered by others.” 
"[Leonardo] began scientifically by arguing that the embryo does not breathe in the womb because it is surrounded by fluids. “If it breathed it would drown,” he explained, “and breathing is not necessary because it is nourished by the life and food of the mother.” Then he added some thoughts that the Church, which believed that individual human life begins at conception, would have considered heretical. The embryo is still as much a part of the mother as her hands and feet are. “One and the same soul governs these two bodies,” he added, “and one and the same soul nourishes both.”
Em termos artísticos Leonardo foi um de vários da Renascença italiana, pertencendo ao trio destacado — junto a Michelangelo e Raphael —, um destaque que não se deveu apenas ao seu trabalho, mas também ao trabalho de quem analisou e escreveu sobre ele, quem o enalteceu e legou conhecimento sobre as obras, não é por acaso que Isaacson cita abundantemente Vasari. A mestria dos artistas de Florença era grande, mas a criação de estrelas das artes, algo que nunca até então tinha existido, só foi possível graças a um trabalho elaborado de comunicação, e foi isso que Vasari fez ao escrever a primeira obra da História de Arte: “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), com 650 páginas. Claro que a tudo isto se juntam as condições ótimas proporcionadas a estes artistas pela elite financeira de Florença, Veneza e França.

1) 1489 – 1490, "Dama com Arminho", óleo sobre madeira, 54 cm × 39 cm; 2) 1490 – 1496, "La Belle Ferronnière", óleo sobre madeira, 62 cm × 44 cm; 3) 1513 - 1516 "S. João Batista", óleo sobre madeira, 69 × 57 cm; 4) 1503 - 1517, "Mona Lisa", óleo sobre tela, 77 cm × 53 cm. O exemplo máximo da arte e ciência de Leonardo foi a Mona Lisa, que começou a ser desenhada em 1503, esteve na sua posse até à sua morte, tendo sido trabalhada sempre que descobria outras formas de pintar.

Estudo da luz e sombra de Leonardo

Mas para Leonardo a arte não era diferente de todos os seus restantes interesses. Claro que muitas das encomendas que foi tendo eram no campo da arte, mas nem sempre respondia aos pedidos, e menos ainda ao que se pedia. O facto de ter passado toda uma vida focado no desenho fez com que revolucionasse a pintura, não tanto pelo virtuosismo da repetição, mas pelos ganhos que o conhecimento adjacente (anatomia, fisiologia e geometria) lhe foi granjeando (ver imagem com evolução das expressões faciais). Assim como quis tanto descobrir o interior do coração de um porco, quis conhecer o poder do efeito da perspetiva, que também ganhou bastante com todo o estudo imensamente aprofundado que fez sobre a luz e sombra (ver “A Última Ceia”). Para mim, Leonardo não foi artista nem cientista, foi ambos, mas foi acima de tudo o primeiro Designer. Movia-se no sentido de compreender o real, esboçava esse real para compreender o seu funcionamento, chegar às suas qualidades intrínsecas, a partir do que depois projetava teorias e possibilidades, algumas mais sólidas, outras, pura fantasia especulativa.


O fresco "A Última Ceia" 1495–1498, acima recortado do seu ambiente, e abaixo visto do lugar imaginado por Leonardo, para se ter a noção completa da perspectiva atente-se no efeito de profundidade conferido à parede. 

O livro de Isaacson pode não ser o livro mais completo sobre Leonardo, mas isso nunca nenhum o será. Pode também não ser o mais imparcial, mas isso é difícil quando nos detemos a analisar alguém como Leonardo. Mas é uma excelente biografia por se concentrar nos elementos base da genialidade intelectual de Leonardo, e deixar de lado outros tantos aspetos que poderiam ser discutidos — a família, os lugares, os problemas com a homossexualidade —, que são claramente menores. Leonardo representa para a humanidade o apogeu da cognoscência, e por isso é como tal que interessa lê-lo e conhecê-lo, mais do que como ser-humano, pois era praticamente inumano.
“The sexual act of coitus and the body parts employed for it are so repulsive that, if it were not for the beauty of the faces and the adornment of the actors and the pent-up impulse, nature would lose the human species.” Leonardo Da Vinci
No próximo dia 2 de Maio de 1519,  a data da sua morte faz 500 anos, e no entanto não paramos de descobrir feitos e obras. Só neste mês de março já vão duas, o esboço da Mona Lisa nua e a única escultura sua sobrevivente, no qual se pode ver um cristo sorridente. Se existe personagem da história que pode servir-nos de inspiração, que pode ajudar-nos a lutar contra as nossas crises existenciais, é Leonardo.

"A Morte de Leonardo da Vinci" (1818) por Jean Auguste Dominique Ingres. Na tela podemos ver o rei de França, Francis I, recebendo o último sopro de Leonardo.

março 10, 2019

Balança de justiça moral da História

Tenho muitas dúvidas sobre o histerismo condenatório que decorre à volta do legado de Michael Jackson em virtude do documentário "Leaving Neverland" (2019). Estive a reunir um conjunto de nomes ao longo da história com rabos de palha, desde Caravaggio (assassinato) e Da Vinci (pedofilia), a Einstein e Pessoa (declarações racistas), ou Heidegger e Hamsun (defensores do nazismo), passando por Picasso ou James Brown (autoritários e violentos), para tecer um argumento geral, mas acabei por desistir da ideia.

"O Tempo protege a Verdade dos ataques da Inveja e Discórdia" (1642), Nicolas Poussin

Cada caso é um caso, e cada pessoa tem níveis de aceitação diferentes em função da especificidade do legado e daquilo de que é acusada. Não é possível criar uma regra fechada que sirva uma análise generalista, pela simples razão de que os atos se opõem, ou seja, temos por um lado pessoas que serviram a sociedade, contribuindo com um legado considerado imensamente rico e relevante, por outro, essas mesmas pessoas cometeram crimes contra valores relevantes dessa sociedade. No fundo, trata-se de colocar na balança da justiça moral da História e chegar a um número que penda para o lado positivo ou negativo, mas como facilmente se depreende, nada disto é passível de medição, acabando por cair no subjetivismo de cada um.

Na verdade, qualquer vida escrutinada ao detalhe — quanto mais impactante e famosa tiver sido, mais escrutinada é, indo da exposição pública de cartas a diários íntimos — não pode encontrar apenas perfeição. Por muito mau que nos soe, e até ofenda, podemos contentar-nos pensando que afinal não passaram de meros humanos, que santos e deuses existem apenas na nossa imaginação.

março 09, 2019

Efeitos visuais de drogas

Bryan Lewis Saunders (1969) é um artista americano, já com uma longa carreira em vários domínios — pintura, video, performance, poeta, etc. Descobri o seu trabalho através do documentário de David B. Parker, "Art of Darkness" (2014), tendo-me impressionado particularmente a sua obra "Under the Influence", que consiste num conjunto de auto-retratos criados sob a influência de múltiplas drogas. A curiosidade sobre os efeitos das drogas é natural, mas conhecê-los e compreendê-los é bastante difícil, não só pela dificuldade de aceder às substâncias, mas acima de tudo pelos riscos que implicam (Saunders sofreu vários problemas neurológicos, apesar de não irreparáveis, no processo). Os efeitos das drogas, tal como o de qualquer outra experiência humana, são altamente subjetivos, ainda assim este trabalho abre-nos uma pequena janela sobre alguns esses efeitos.

Lithium (ref), tratamento depressão. Sobredosagem: vertigens, alterações neurológicas.

Absolut Shatter (ref), +- cannabis concentrado. Efeitos: humor e euforia

Abilify (after 3 months usage 3x maximum dose) (Aripiprazole), Usado como antipsicótico. Efeitos sobredosagem: depressão

Aderall (Wikipedia), usado para ADHD. Efeitos - estimulante cognitivo e focagem.

Alcohol (ref.) Efeitos: sedação, amnesia, incontinência, etc.


Absinth (ref) inebriation. Efeitos: espécie de lucidez bêbada

Cocaine (ref.) Efeitos: perda de contacto com a realidade, felicidade intensa

LSD (ref.) Efeitos: estados mentais alterados

Haloperidol (ref). Usado para esquizofrenia. Efeitos: potencial repetição de movimentos, sedação

Opium (ref) - Efeitos: analgésico, desaceleração do processamento mental

Na página do Saunders é possível ver muitos mais auto-retratos realizados sob efeito de mais substâncias. Algo que salta à vista nestas imagens é claramente a influência cultural da droga em questão. Questiono, seriam as obras iguais se Saunders não soubesse que droga estava a tomar em cada momento? Muito provavelmente não, e isso diminui a objetividade destas janelas, ainda que possamos dizer que as pessoas que tomam drogas, tomam-nas na ânsia por determinados efeitos prescritos pela medicina ou cultura, e desse modo as suas experiências das mesmas nunca são desligadas dessas expetativas.

março 08, 2019

Multimodalidade e expressividade nos videojogos

Acaba de ser publicado na revista científica Observatório o artigo "Multimodality and Expressivity in Videogames" no qual abordo a multimodalidade e expressividade nos jogos digitais, sob a perspectiva da comunicação audiovisual, discutindo dimensões críticas em relação à alfabetização e experiência dos videojogos. Começo por apresentar uma visão geral sobre como criamos sentido a partir dos media audiovisuais, para depois enquadrar o foco na natureza cognitiva multimodal dos jogos digitais. Segue-se uma discussão sobre as razões que fazem com que os jogos digitais se tenham tornando mais relevantes do que o vídeo, discutindo as diferenças dos dois meios em termos de aprendizagem, nomeadamente na distinção entre as representações vicárias e enativas.


Ao longo da discussão, realizada no artigo, dou conta das novas possibilidades abertas pela multimedia e jogos digitais, tanto na integração de diferentes modos, como pela oferta de um novo modo, a interatividade, que, como argumentou Bruner, abre novos espaços de representação pela enatividade. Além disso, demonstro como os jogos aproveitam a motivação para extrair comportamentos ativos dos jogadores, ou seja, as ações solicitadas pelo design de jogo que garantem o engajamento e interesse em continuar a jogar para além das abordagens simplistas (estímulos extrínsecos).

Aceder ao artigo completo que se encontra em acesso aberto.

março 06, 2019

Uriel da Costa (1585-1640)

Uriel da Costa nasceu no Porto, em 1585, sob o nome Gabriel da Costa Fiuza, enquanto cristão-novo. Depois de anos de estudo, incluindo passagem pela Universidade de Coimbra, o desalento com a religião cristã faz com que se converta ao judaísmo e emigre para a Holanda. Se a religião cristã o tinha afastado, o judaísmo de pouco lhe iria valer. Uriel ficaria na história internacional pela luta que empreendeu contra o obscurantismo religioso, tanto cristão como judaico. Na Holanda o impacto com o seguidismo dos escritos enquanto verdade absoluta, faz com que inicie todo um processo de ataque ao status quo, tendo escrito dois livros sobre o tema — "Propostas contra a Tradição" (1616) e "Exame das Tradições Farisaicas" (1623) —, pelo que seria excomungado, e o seu segundo livro queimado publicamente, e condenado a pagar uma multa avultada. Anos depois de viver em isolamento, decidiu volver à congregação, não com verdadeira crença, mas pela insustentabilidade da sua situação. A sua readmissão foi realizada por meio de 39 vergastadas públicas e ainda pelo pisoteamento das pessoas da sinagoga portuguesa de Amsterdão. Tudo isto pode ler-se no seu testemunho final "Exemplar Humanae Vitae" (1640).

Desenho ficcionado de Uriel da Costa ensinando o jovem Espinosa. Espinosa tinha apenas 8 anos quando Uriel morreu, é provável que a revolução que provocou tenha tido influência no pensar Espinosa, de resto não se encontrou qualquer outra ligação entre ambos.
"Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente à verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force à compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel." Último parágrafo de "Exemplar Humanae Vitae", na tradução do latim de A. Epiphanio da Silva Dias
Cerimónia de Inauguração da Grande Sinagoga Portuguesa em Amsterdão, Holanda, 2 de Agosto,  1675

O livro "Um Bicho da Terra" (1984), de Agustina Bessa-Luís, procura ser uma biografia romanceada da vida de Uriel da Costa, mas apresenta enorme densidade de factos, dando conta de maior preocupação em não se desviar da realidade, do que em dar a conhecer a pessoa por detrás do mito. Agustina realiza um trabalho agarrado à cronologia, esquecendo que as pessoas são feitas de ideias e não de espaços ou datas. Falta uma ideia ou núcleo de suporte à intenção do livro, o que faz com que o relato faça tudo parecer mero sucedâneo de eventos. O romancear não funciona não apenas pela torrente de factos, mas também porque Agustina está mais centrada no detalhar do contexto do que em dar vida às ações dos seus personagens, por outro lado a biografia perde-se porque o relato sofre do tom da inverosimilidade própria do romance.

O título da obra de Agustina é a tradução de um pseudónimo usado por Uriel, Adam Romez (bicho da terra).

Quanto à veracidade do que é dito, dizer que Agustina fez um grande trabalho de investigação, contudo esse trabalho acabou sendo ultrapassado pela investigação posterior. Desde logo a capa do livro e o texto, fazem referência à proximidade entre Uriel e Rembrandt, lançando da suposição de que a pessoa no quadro "Philosopher in Meditation" (1632) poderia ser Uriel. Ora os mais recentes estudos em volta do quadro dizem-nos que a pessoa nele não deverá ser sequer um filósofo, mas apenas um homem idoso sentado à janela, tanto que o título é hoje bastante contestado, não sendo sequer o original da obra.

A obra de Agustina não é a primeira sobre Uriel, nem a última, já que data de 2012 o livro "A Figura de Uriel da Costa na Obra de Karl Gutzkow" (632 pp.) de Rogério Paulo Madeira. No ano anterior, 1983, o académico francês Jean-Pierre Osier publicava "D'Uriel da Costa à Spinoza" (299 pp.), e bastante antes, em 1922, Carolina Michaëlis dedicava todo o estudo académico, "Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras" (180 pp.). Anteriormente a estes trabalhos académicos, podemos encontrar, em 1847, uma peça de teatro "Uriel Acosta: a tragedy in five acts" por Karl Gutzkow, e em 1880, uma ópera, "Uriel Akosta" de Valentina Serova.


Mais alguma informação online:
Ushi Derman, Uriel da Costa: the Story of a Nonbeliever, December 19, 2018
Arlindo Correia, Uriel da Costa, 12.9.2006
Wikipedia inglesa e portuguesa

Romance ou ensaio?

"Jerusalém" (2004), de Gonçalo M. Tavares, situa-se num espaço de ação restrito, delimitado por um círculo de personagens que se organizam numa estrutura detetivesca, baseada na formula de mistério (que oferece informação a conta-gotas, para nos agarrar pela ânsia por respostas a quem?, quando?, como? e porquê?), e fá-lo imensamente bem, já que se sente dificuldade em pousar o livro depois de o começar. A particularidade da obra decorre do modo como sobre esta narração tipo é injectado um conjunto de conceitos complexos — o mal, a racionalidade, a loucura e a religião — que nunca chegam propriamente a ser detalhados. O autor opta por trabalhar as ideias de modo simbólico por forma a alargar o seu significado, mas também para poder fugir ao registo de ensaio e manter-se na circunscrição do romance.


Assim, temos um livro com capacidade para chegar a um público alargado, já que a leitura é facilitada pela enorme capacidade de retenção da nossa atenção, embora muito desse público chegue ao final sem saber muito bem o que fazer com todas as respostas que entretanto o autor lhes parece oferecer. Primeiro porque as respostas são-no apenas no que à trama diz respeito, já o simbólico é deixado completamente em aberto, criando um conflito no leitor,  entre o recorte perfeito da trama e a indefinição do seu significado. Para quem ouse ler nesse simbolismo, encontrará as suas próprias respostas aos problemas enunciados, e é isso que o autor espera, quem não o ousar ficará à porta do livro.

Como em todo o artefacto simbólico, as leituras que se fazem do significado da obra dependem mais da experiência e mundo do leitor do que daquilo que o autor coloca no artefacto. As pistas espalhadas ao longo das 250 páginas levantam em nós associações de ideias, fazem-nos trabalhar para a compreensão do que estamos a ler. Cada personagem é uma peça do puzzle de Tavares, mas este nunca a coloca no seu lugar, cria-as e fá-las dançar na nossa frente, instiga-nos a colocá-las no tabuleiro por nós imaginado. Todas as peças estão interligadas, o que nos diz que fazem todas parte de um mesmo quadro, mas aquilo que as liga são meras ações de causa-efeito, o que importa é o que cada um representa nesse quadro — o médico visionário e o médico carrasco, a mulher louca e o amante louco, o filho que não é filho e o assassino. Todos são meros humanos, dotados de imperfeição, comportando significado, ainda que simbólico, sobre o modo como o mal acontece, de onde surge e como se sustenta.
“Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem saudável, e ele — como qualquer criança – procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação de roubo: alguém ou algo me levou uma parte — parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual — então o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, diz Theodor Busbeck de modo mais directo." in "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares
No final, percebemos que é uma obra talhada em busca da perfeição, que tudo está como está, da primeira à última página, com um objetivo concreto. Nada é dito ao acaso, tudo é perfeitamente racionalizado, ainda que tudo pareça nascido da loucura (repare-se no discurso exacerbado pela repetição), e só esta dicotomia granjearia nota máxima. Mas na verdade o artefacto falha em elevar-se acima da aparência de perfeição, pela falta de robustez nos conceitos que defende, já que não são suficientemente aprofundados. Fica tudo demasiado à superfície, com as leituras a surgir completamente divergentes. É um livro de 250 páginas, mas com mais espaços em branco do que de texto, de modo que na verdade não chega a passar das 100 páginas. Os livros não se medem em número de palavras, mas os temas também não são todos iguais, e tratar assuntos desta complexidade em tão breves resenhas de ideias, serve apenas no abrir de portas. Como o livro faz parte uma série — "O Reino", composto de 4 livros incluindo este — é provável que a leitura da série completa dê acesso a algo que só este livro não consegue dar. Vi entretanto que os 4 livros que compõem a série O Reino — "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser", "Jerusalém", "Aprender a Rezar na Era da Técnica" — foram editados, em 2017, num único livro (800 pp.), o que deverá fazer pleno sentido.

março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.