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dezembro 19, 2015

"Jane Eyre" (1847)

Um livro poderoso que nos fala da essência do devir humano, da sua luta constante por se individualizar sem perder a ligação social, algo que assume tanto mais valor por ser atribuído a uma mulher, e mais ainda por ter sido escrito por uma mulher em 1847. Foi preciso um espírito muitíssimo independente, sagaz, profundamente estruturado e educado, para fugir à rede de convenções que a aprisionariam por essa altura. É um romance obrigatório, mais ainda para qualquer mulher que, ainda hoje passados mais de 160 anos, continua a ter de lutar contra muitas dessas convenções.

"É uma falta de consideração condená-las ou ridicularizá-las quando se empenham em fazer mais ou em aprender mais que aquilo que os costumes decretaram ser necessário para o seu sexo." (p.149)
Das várias heroínas clássicas — Elizabeth Bennet (Orgulho e Preconceito, 1813), Catherine Earnshaw (O Monte dos Vendavais, 1847) ou Emma Bovary (Madame Bovary, 1857) — Jane Eyre destaca-se cabalmente, não se afirmando por nenhuma das caraterísticas convencionalmente atribuídas às mulheres: como a fragilidade, embora dotada dela; assim como a loucura, motivo do granjear de complexidade narrativa, embora também dotada dela. Jane Eyre representa muito mais do que uma mulher à procura de ser feliz, ela representa o ser-humano que se procura a si mesmo, que busca encontrar o seu lugar na sociedade sem contudo permitir que o seu enredamento a impeça de viver como sente, nem que para isso tenha de colocar a sua vida em questão.
"Eu não sou pássaro nenhum, e não há rede capaz de me prender. Sou um ser humano livre, dotado de vontade própria, que agora vou exercer deixando-o." (p.333)
Mas ser dotada de capacidade para fazer valer a sua liberdade não faz de Jane alguém que perdeu a sua feminilidade. Ao contrário do que acontece com algumas das personagens emancipadas do entretenimento contemporâneo — Ellen Ripley, Sarah Connor, Lara Croft, etc. — que na ânsia por responderem à paridade homem/mulher, acabam por assumir ideais gerais masculinos, como ainda recentemente referia num texto no IGN. Jane não é apenas forte, é-o mas sem nunca perder toda a sua sensibilidade, quando segue a sua vontade própria não deixa de se preocupar com quem fica, fazendo uso de toda a sua capacidade empática para se colocar no lugar do outro, algo profundamente feminino.

Charlotte Brontë deve este idealismo à época vitoriana em que se formou, mas deve-o provavelmente mais ainda a toda a sua formação e educação, que desde cedo lhe permitiu iniciar atividades de criação escrita, para o que se propôs imaginar novos países, novas lutas e costumes. O que não deixa de contrastar com este seu livro, o seu maior legado, que é cabalmente autobiográfico, mas que ao mesmo tempo dá conta de uma biografia fora dos cânones do seu tempo. Daí que se me sugira refletir sobre o quanto dos seus mundos imaginários serviriam de simulação do real que experienciava, uma espécie de jogo de hipóteses e ações. Que provavelmente foi graças a toda essa fértil imaginação, devidamente verbalizada em textos e assim mais forte e real, que Charlotte conseguiu criar um forte ideal do mundo, do qual retirou grande parte da energia que lhe permitiu lutar contra as amarras das convenções.
"Os preconceitos, como é bem sabido, são mais difíceis de erradicar dum solo que nunca foi arado ou fertilizado por meio da educação; ficam tão enraizados como ervas daninhas entre as pedras" (p.446)
Jane Eyre surge como defensora da educação como garante do livre arbítrio humano, servindo-se da dúvida metódica para compreender o mundo em que vive, e assim questionar a moral assim como a religião, nunca as desprezando, mas antes procurando elevar a sua compreensão.
"Deus concedeu-nos, em certa medida, o poder para sermos obreiros do nosso destino..." (p.474)
Todo este livro é uma luta, do princípio ao fim, uma luta para nos questionar, nos fazer compreender quem somos. Como romance, que trata o inevitável enlace homem/mulher, é muito mais do que o desenrolar dos conflitos que levam aos seus encontros e desencontros, isso é aqui mais decoração temática, já que o foco está na demonstração cabal da igualdade de direitos e deveres que os unem. O fundamento deste romance é um ideal perseguido pela sua autora, que para lá chegar nos leva através de um caminho árduo, com muitas dúvidas e questões que pesam sobre ela, mas também pesam sobre nós, leitores, conduzindo-nos pela mão até bom-porto.
"Não lhe estou a falar com a linguagem dos costumes, das convenções nem sequer da carne mortal... É o meu espírito a dirigir-se ao seu espírito, como se ambos já tivéssemos passado pela sepultura e nos encontrássemos agora aos pés de Deus, como iguais que somos!" (p.332)
Tudo aquilo que Charlotte transpõe para esta obra continua imensamente atual e relevante, mas se a sua mensagem passa, não é apenas pela qualidade das suas ideias, deve-o muito também a toda a sua imensa força expressiva. Seguindo uma estrutura em primeira-pessoa, envolvida por uma escrita que vai do escorreito ao intrincado, sempre bastante elaborada, é capaz de imprimir um realismo verdadeiramente impressivo a todo o seu relato.


Edição lida: Charlotte Brontë (1847), "Jane Eyre", Editorial Presença, 2011, 596p

julho 15, 2015

"O Monte dos Vendavais" (1847)

Mais um clássico, e mais um título que me acompanhava há décadas. Vi vários filmes, não todos (William Wyler, 1939; Robert Fuest, 1970; Jacques Rivette, 1985; Peter Kosminsky, 1992; Andrea Arnold, 2011), mas nunca tinha tentado ler o livro. Se por um lado as imagens que guardava do cinema eram de um monte entre brumas, roupas escuras e rasgadas cobrindo caras sisudas, por outro o imaginário não visual, dizia-me tratar-se de uma mera história de amor, tal Romeu e Julieta. Apesar de todos estes elementos de fundo, posso dizer que estava totalmente impreparado para a aspereza e dureza do que encontrei nas linhas escritas por Emily Brontë.

Título original: "Wuthering Heights"

Tendo em conta a importância adquirida pela obra ao longo de mais de 150 anos, não quis limitar-me a despejar alguns argumentos sobre o que senti ao ler, mas quis também perceber o que moveu tantos antes de mim a apaixonarem-se por esta, críticos e leitores. Queria comparar impressões, sentires, perspectivas. Queria também compreender um pouco sobre o lado histórico-estético, embora não me tenha debruçado muito sobre tal, pois implicaria um maior investimento de tempo que não tenho de momento.

Assim começaria por dizer que continuo indeciso sobre a minha experiência geral da obra. Não entre ser boa ou má, mas entre ser muito boa ou excelente. A razão desta indecisão diz, por um lado, respeito ao conteúdo, ao tratamento dado ao universo criado pela autora, por outro ao meu desconhecimento do quão revolucionária foi a forma dada ao romance na altura em que saiu. Ou seja, a brutalidade, que serve o tom gótico, não me agrada, é-me distante, reconheço contudo que o lado formal da escrita e composição é forte o suficiente para menosprezar esse meu gosto pessoal. Mas também tenho de reconhecer que este é um posicionamento mais racional do que emocional, e por isso sinto ainda alguma indecisão.

Decepcionei-me com a leitura das críticas que saíram aquando da publicação da obra, em 1847, porque limitadas em termos de análise, quase exclusivamente centradas sobre os aspectos da história, louvando a inovação apenas pela imaginação do lado negro do romance. É verdade que é diferente, e foi inovadora, se a colocarmos lado a lado com a obra de Jane Austen (1775 – 1817), é vertiginoso aquilo que as separa. Temos aqui um imaginário completamente novo, um misto muito forte entre romantismo e realismo, com fortes traços de fantástico, mas que assume toda uma caracterização psicológica, com vários níveis de significado, que a coloca também muito distante de "Frankenstein" (1831) de Mary Shelley. Em Brontë o feio e o negro do ser humano é muito forte, tão forte que chega a tornar-se belo para muitos, embora eu não tenha conseguido chegar a tanto.

Esta minha incapacidade para ver o belo no negro, acaba por dar conta também do modo como nunca aceitei esta história como um romance de amor limite, na lógica de um Romeu e Julieta, como muitos a veem. A minha leitura de “O Monte dos Vendavais” leva-me mais até à discussão da essência do ser humano, da sua condição e dos efeitos do tempo sobre essa condição. O amor até pode ser aqui motor, mas é em certa medida apenas um meio para atingir o que se pretende. Ao contrário de algumas análises que dão conta de uma ausência de moral no livro, cingindo-se a demonstrar a força do amor, eu vejo aqui a moral, em todo seu esplendor, na força da expressão humana e na sua capacidade de redenção. Aliás, considero este aspecto tão saliente, ao ponto de acreditar que Brontë desenhou toda a obra para aí chegar, contribuindo assim para uma inovação radical da estética do romance. (Dou conta disso no próximo parágrafo, mas terei de abrir um pouco o jogo sobre a história, fica o aviso para quem ainda não leu.)

A história começa com três crianças, e termina com três adultos, filhos dessas crianças. Uma das crianças tendo sido vítima de discriminação e agressão psicológica por parte das outras duas, acaba por desaparecer, para ressurgir mais tarde recomposta, mas desejosa de vingança, não apenas sobre os seus agressores, mas também sobre os sucessores destes. Tendo dominado por completo os seus agressores, e famílias, o vingador cai em si dando-se conta do vazio de toda a sua acção. A história termina tal como começou, ainda que os sobreviventes sejam os filhos, mas o círculo completa-se, como se no monte, o Monte dos Vendavais, o vento, ou melhor o tempo, tudo tivesse levado.

Ou seja, o mais genial da obra de Brontë acaba por se dar no modo como ela interconecta a história e o discurso, em que o linear dá lugar ao circular, explicando o sentimento que alguns sentiram com a falta de fechamento moral, pela ausência de um fim de linha de eventos. Brontë não se limita a contar uma história, cria, manipulando toda a estrutura conhecida do romance, moldando-a em favor dos seus objectivos expressivos.

Do meu lado, chegado ao final da discussão vertida neste texto, vejo as minhas dúvidas erradicadas, e assumo a minha admiração por Emily Brontë.