Mostrar mensagens com a etiqueta GrandeGuerra. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta GrandeGuerra. Mostrar todas as mensagens

novembro 30, 2020

"Hiroshima" de John Hersey

Ao chegar a Hiroshima, em Maio de 1946, o jornalista John Hersey deparou-se com um cenário que já tinha sido amplamente noticiado, a destruição maciça da paisagem urbana, causada pelo lançamento da primeira bomba nuclear sobre uma cidade habitada, a 6 de agosto de 1945. A sua abordagem seria diferente de qualquer outra reportagem feita até então, sobre este ou qualquer outro caso. Hersey entrevistaria múltiplas pessoas, escolheria aprofundar a vida de seis delas, com o que enceteria a escrita da primeira novela documental. Assim, "Hiroshima" lê-se como um drama literário, reportando factos, eventos e notícias como se de uma novela se tratasse.

Em temos sensoriais, "Hiroshima" fica bastante atrás de "Vozes de Chernobyl", contudo o contexto que suporta a descrição é muito mais violento, tornando a sua leitura muito mais dramática. Hersey escreveu nos anos 1940, uma época em que os media eram bastante contidos em termos gráficos, não descreve os horrores que lhe contaram nem que viu, dá indícios, apresenta alguns laivos, mas um pouco à distância. No entanto, o impacto do que escreveu, à data foi enorme. Para nós, hoje, o pouco que diz ganha uma dimensão abrasadora pelo contexto, ou seja, o primeiro lugar densamente habitado a sofrer uma detonação nuclear de forma premeditada e no desconhecimento de todos os que lá viviam. Os relatos da tentativa de adivinhar que tipo de bomba teria sido lançada impressionam fortemente porque nada é pior do que o desconhecido. O cabelo cai, a pele cai, os órgãos deixam de conseguir reproduzir, mas se não soubermos porquê o terror aumenta.

Antes e depois da detonação da bomba baseada em urânio que produziu um impacto equivalente a 15 mil toneladas de TNT, tendo morto imediatamente cerca de 90 mil pessoas, e nos meses subsequentes mais cerca de 50 mil.
3 anos após a detonação, em 1948, as crianças ainda usavam máscara em Hiroshima para alegadamente se protegerem da radiação.

Ou seja, o registo apesar de leve oferece-nos uma "fotografia" bastante aproximada da vida naquele lugar nos dias imediatamente a seguir à explosão e é insubstituível. Aliás, não é por acaso que as obras de Svetlana Alexievich são tão relevantes, as vozes de quem passa pelas tragédias conseguem aportar uma dimensão humana que é impossível de transmitir por meio de terceiros ou mesmo de registos audiovisuais.

Este número da New Yorker foi publicado com um texto único, este de John Hersey

Esta reportagem, que a New Yorker continua a manter completa e acessível online, foi ainda importante, porque naquela altura tanto o governo americano como o japonês procuraram ocultar o que tinha verdadeiramente acontecido em Hiroshima e Nagasaki. Para saber mais sobre este livro, a sua origem e a sua publicação pela New Yorker, aconselho a leitura do texto “Hiroshima”: a reportagem do horror é a reportagem do século" publicada no Expresso de 31 de agosto de 2016.

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

maio 11, 2019

Nazismo: ouro e livros

Por mais que acreditemos saber já o suficiente sobre a Segunda Guerra Mundial, nunca saberemos tudo, é impossível, e acabamos sempre por nos surpreender sempre que lemos ou acedemos a novas histórias desses tempos, que alargam o espectro da maldade muito para além dos horizontes por nós já trilhados. A história que trago, nunca a tinha ouvido, porque ao pé de tantas outras, parece menor, não tem números impressionantes, aconteceu pela calada, e rapidamente foi silenciada por todos, mas não deixa de me impressionar pelo nível de dolo implícito.

Rua do Gueto Judeu de Roma (2018)

A 8 de setembro 1943 os nazis ocuparam Roma. Dos 8 mil judeus que aí viviam pouco mais de mil ficaram na cidade no Gueto de Roma, estabelecido em 1555. Neste encontrava-se a Biblioteca della Comunità Israelitica recheada com mais de 7 mil livros raros ou únicos, datados desde o século XVI.

No dia 26 de setembro 1943, o comandante da Gestapo em Roma anunciou que se não lhes fosse entregue 50 Kg de ouro, 200 famílias seriam deportadas. No dia 28 setembro ao meio-dia, o prazo dado, os 50 Kg apenas conseguidos graças ao contributo de toda a cidade de Roma, foram entregues.

No dia 14 de outubro 1943, menos de um mês depois, os 7 mil livros da Biblioteca della Comunità Israelitica foram levados, carregados em duas carruagens e conduzidos alegadamente para Alemanha. Estas duas carruagens nunca voltariam a ser encontradas, tal como todo o seu conteúdo, até hoje.

No dia 16 de outubro 1943, dois dias depois, os militares alemães cercaram e selaram o gueto. Cerca de 1030 judeus foram presos e deportados para Auschwitz. Apenas 16 sobreviveram.



Nota: Pesquisa realizada por via da Wikipédia, confirmada por meio de alguns artigos científicos, seguindo o rasto dos 50 kg de ouro, mencionados no livro “A História” (1974) de Elsa Morante.

dezembro 20, 2018

Lebensborn, os videojogos como cultura

Foi a primeira vez que ouvi a palavra "Lebensborn" que significa "fonte de vida", mas é também o nome dado pelo regime Nazi a um programa que tinha como objetivo aumentar a natalidade de crianças de raça ariana, a partir de um conjunto de pessoas classificadas "racialmente puras e saudáveis", centrado na Alemanha e na Noruega. O programa procurava oferecer suporte a mulheres não casadas, inicialmente mulheres arianas que tinham tido filhos de membros das SS, encorajando-se nascimentos e partos anónimos de mulheres nas casas dos programas com reconhecimento do estado Nazi. O videojogo "My Child Lebensborn" (2018) inicia-se no pós-guerra, e relata o modo como a sociedade norueguesa reagiu a estas crianças. Não é um jogo fácil, é duro, bastante violento em termos emocionais e morais, e mostra como os genes continuaram a servir ideologias mesmo depois do fim da guerra.


Como jogo, é um artefacto muito simples que recorre a estruturas de gestão de recursos, do tipo tamagotchi, mas que nos coloca na pele de educador de uma criança de 8 anos, fazendo-nos atravessar a sua entrada na escola, cuidando por forma a definir a sua personalidade através de um conjunto de decisões complexas que vamos tendo de tomar sobre o que achamos ser melhor para a criança, sobre como deve ela reagir ao mundo que a afeta. Apesar de ser um pequeno jogo móvel, oferece várias horas de jogo, a ponto de conseguir criar um forte envolvimento com a criança, de a sentirmos cada vez mais próxima quanto mais vamos investindo no jogo. A criança de quem tomamos conta, nasceu de mãe norueguesa e pai alemão no tempo da Guerra. A mãe não o quer, o pai arranjou outra vida, os avós não o reconhecem, a sociedade abomina-o. Cabe a nós conduzir o seu crescimento até ao ponto mais saudável possível.

Os capítulos desbloqueados no final dão conta da Estrutura Narrativa.

Em termos de estrutura, temos um arco narrativo a permear todo o desenrolar de eventos e ações, com alguns altos e baixos que nem sempre vão sendo suficientemente apoiados pelo design de jogo. Ou seja, por vezes existe a necessidade de criar tensão, ou introspeção, e os designers optam por inibir as ações no jogo, mas não de uma forma direta (ex. retiram a criança de cena, ou da ação, sem explicação) e isso acaba afetando a jogabilidade, já que do ponto de vista da funcionalidade nos interrogamos se aquilo que está a acontecer faz sentido narrativo, ou é mero bug informático. Ainda assim, e a bem da experiência, tenho de dizer que foram múltiplas as vezes em que me comovi com os eventos relatados e as consequências.


No final, quando fui procurar saber mais sobre o "Lebensborn", e quando achei que já não poderia chocar-me mais, descobri que para além de fomentar a procriação desenfreada de filhos de mulheres arianas, chegaram a estabelecer-se redes de raptos pelo norte da Europa, que tiravam crianças com traços arianos às famílias. Para além disto, quando as crianças que nasciam de mulheres arianas nestes programas não apresentavam os traços esperados, eram enviados para campos de concentração, ou internados em hospícios dados como doentes mentais...

Os números não têm qualquer relação com os milhões de judeus mortos, estamos a falar de cerca de 10 mil crianças neste programa, mais cerca de 10 mil raptadas, mas não são os números que me tocam, é a brutalidade, é a total ausência de humanismo que começa na ideologia Nazi e prossegue com a recusa do povo norueguês na aceitação destas crianças, completamente inocentes. É algo humanamente transcendente, e é algo tratado por um videojogo que dá assim mostras da sua total maturidade enquanto medium, enquanto produtor de cultura.

O jogo foi criado pela Sarepta Studios, e está disponível para iOS e Android.

agosto 12, 2018

"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" de Michael Chabon

Pode definir-se como romance histórico, ou melhor, pretensamente histórico já que apenas o pano de fundo dos eventos e geografia são reais, a trama é fruto da invenção de Michael Chabon. Não segue a linha dos atuais documentários ficcionados (mockumentaries) já que o objetivo não é satírico, mas continua a ser histórico, mais como obra criativa de homenagem, seguindo explicitamente o exemplo de Orson Welles com "Citizen Kane" (1941). Enquanto Welles usa a vida real de William Randolph Hearst para dar corpo ao seu protagonista Charles Foster Kane, Chabon usa a vida de Jack Kirby para criar Joe Kavalier. Kirby foi um dos principais mentores da banda desenhada de super-heróis do século passado, um dos maiores expoentes da Era Dourada, entre 1930 e 1950, criador de vários super-heróis que ainda hoje pululam o imaginário global — Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Thor, Hulk, X-Men, Os Vingadores, Doutor Estranho, Pantera Negra, Feiticeira Escarlate, Homem-Formiga, Nick Fury.  Chabon não se ficaria pela primeira camada, a da pessoa do criador, optando por oferecer-lhe a criação de um super-herói que nomeia de Escapista, sendo também este decalcado da realidade e criação de Kirby, o Capitão América. Para quem conhece as origens do Capitão América facilmente depreenderá o que move o Escapista e acaba assim a suportar a introdução dos efeitos e tragédias da Segunda Guerra Mundial nesta obra.

A cena amplamente descrita como o nº1 da revista "O Escapista", não é mais do que a cena do nº1 da revista "Capitão América" de 1941.

A partir deste primeiro parágrafo pode-se compreender desde já, não só o modelo utilizado, mas também a complexidade de inter-relações existentes na obra de Chabon que obriga a uma leitura informada, ou seja com um bom lastro de contexto presente para se poder fruir completamente a obra. Desengane-se aquele que atraído pelos super-heróis espera encontrar aqui uma leitura fácil, rápida ou superficial. Ao longo das quase 700 páginas somos continuamente atirados para um mundo de referências reais: à BD, à sua linguagem expressiva, aos seus temas e seus problemas de afirmação enquanto arte; aos super-heróis e seus criadores, as suas editoras e editores; assim como ao tecido social americano dos anos 30-50 do século XX feito de discriminação da mulher, do desprezo pelo trabalho criativo, ou da enorme violência moral e física contra a homossexualidade; e ainda aos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial sobre a comunidade judaica na Europa, centrado em Praga, com Portugal a servir de porta de saída para muitos refugiados, e os EUA a declinarem a aceitação desses refugiados. A tudo isto podemos ainda acrescentar personagens reais que vão passeando ao fundo e por vezes dialogando com os nossos personagens tais como Salvador Dali, Orson Welles, Eleanor Roosevelt, Stan Lee, Will Eisner, ou Fredric Wertham (autor do livro, "Seduction of the Innocent" (1954), responsável pela polémica social à volta da violência na BD).

O Empire State Building em Nova Iorque é o principal cenário da história, e motivo da capa da edição americana.

A capa portuguesa, assim como o título usado, são muito maus, não ajudando em nada à promoção do mesmo. Aliás não admira que o livro, com o número considerável de páginas que tem, esteja à venda por um valor tão baixo.

Na contra-capa do livro fala-se em Nabokov, o que me parece completamente despropositado, Chabon enreda-se muito, usa metáforas nem sempre muito conseguidas, nomeadamente no campo do olfacto, e apesar de alguma crítica catalogar a estrutura como pós-moderna, considero-a antes frágil e pouco suportada pelas intenções do autor. Mas se faço estes reparos é mais pelos prémios e elogios recebidos que poderiam passar a ideia de perfeição, já que na verdade a escrita apresenta um nível bastante elevado de elaboração e maturação. Quanto a rotularem o livro no género Épico não me choca. A história atravessa várias décadas, permitindo-nos acompanhar a vida de dois grandes criadores de banda desenhada, focando-se na arte mas também nas suas vidas, e no modo como as suas próprias tragédias alimentaram a sua arte. O romance atravessa uma parte importante da história da 9ª arte, assim como da história da América e da Europa, é impossível ficar-lhe indiferente, e não sentir que uma parte do que aqui se relata é História de que todos somos feitos. Claro que aqueles que, como eu, iniciaram a sua paixão pela leitura com muitos dos personagens imaginários aqui referenciados sentirão mais de perto, mas como disse antes o livro é muito mais do que BD, é uma resenha histórica de um período da nossa história que teve um lado destrutivo e mau, situado na Europa, que acabou por contribuir para um outro lado bom e construtivo na América.

Este, como muitos outros livros vêm colocar o dedo numa ferida que queremos esquecer mas que não podemos. A Segunda Guerra não foi apenas estúpida por todas as pessoas que matou e violentou, mas também porque acabou demonstrando aos seus promotores o quão errados estavam, já que a fuga dos judeus para os EUA contribuiu fortemente para estes se tornarem na super-potência que hoje ainda são. Foi a massa cinzenta de excelência de judeus que habitavam a Europa e daqui conseguiram escapar que fez com que os EUA se tornassem grandes criadores de banda-desenhada (Jerry Siegel e Joe Shuster, Jack Kirby e Joe Simon, Will Eisner, Stan Lee) assim como de cinema, de ciência e tecnologia. Aliás, isto mesmo seria reconhecido por Churchill quando depois de receber Einstein como refugiado em Inglaterra acedeu ao seu pedido de trazer mais cientistas judeus da Alemanha para Inglaterra. Ironicamente, Churchill não conseguiria aprovar a naturalização de Einstein no parlamento inglês, tendo este acabado por rumar aos EUA, país em que finalmente se naturalizaria após ter renunciado a cidadania alemã.

Na senda ainda do reconhecimento destas capacidades empreendedoras das comunidades, a leitura desta obra permite-nos aceder a um dos momentos de puro empreendimento tão tipicamente impulsionado pelas lógicas mercantis americanas. Repare-se como ao contrário da Europa, a sociedade não se moveria pela qualidade da BD, mas pelo seu lado comercial, pelo interesse e popularidade das obras criadas. Já antes, no início do século XX, tinha sido assim com a indústria do cinema, e a diferença entre a criação americana e europeia que se denota até aos dias de hoje. E repare-se como este cenário se volta a repetir nos anos 1970 com a indústria dos videojogos. Aliás, se Chabon estabelece várias relações entre o Cinema e a BD, eu não deixei de estabelecer imensas com os Videojogos ao longo de toda a leitura. Sobre isto deixo uma discussão imensamente pertinente sobre a linguagem e aceitação social da BD que hoje se aplicaria de igual modo aos videojogos:
“It was that Citizen Kane represented, more than any other movie Joe had ever seen, the total blending of narration and image that was—didn't Sammy see it?—the fundamental principle of comic book storytelling, and the irreducible nut of their partnership. Without the witty, potent dialogue and the puzzling shape of the story, the movie would have been merely an American version of the kind of brooding, shadow-filled Ufa-style expressionist stuff that Joe had grown up watching in Prague. Without the brooding shadows and bold adventurings of the camera, without the theatrical lighting and queasy angles, it would have been merely a clever movie about a rich bastard. It was more, much more, than any movie really needed to be. In this one crucial regard—its inextricable braiding of image and narrative— Citizen Kane was like a comic book. 
"I don't know, Joe," Sammy said. "I'd like to think we could do something like that. But come on. This is just, I mean, we're talking about comic books." 
"Why do you look at it that way, Sammy?" Rosa said. "No medium is inherently better than any other." Belief in this dictum was almost a requirement for residence in her father's house. “It's all in what you do with it.” 
[Não tendo acesso ao texto português em formato digital deixo o excerto em inglês]
Para fechar, uma leitura mais abstraída e focada no conteúdo. Chabon opta por enlaçar o universo da BD com o do ilusionismo, nomeadamente com Houdini e as suas artes do escapismo. São ainda hoje memoráveis as proezas de Houdini a escapar-se de correntes e caixas debaixo de água. O protagonista aqui é aficionado da arte, e o super-herói criado por ele faz homenagem ao escapismo. Ora a BD, especialmente de super-heróis, assim como toda a fantasia e ficção-científica, são comumente conotadas com o escapismo, neste caso o mental e não físico. Ler certos géneros de histórias podem conduzir a um certo escapismo da realidade, o que pode ser visto como crítico e o livro fala dessa preocupação por parte da sociedade, por poder representar uma tentativa de fugir ao seu quotidiano, de se furtar às suas responsabilidades sociais. Do meu ponto de vista parece-me que a relação com Houdini e o seu lado do espetáculo é um tanto forçada, no entanto considero que o modo como Chabon utiliza o escapismo ilusionista com os seus personagens funciona muito bem. Kavalier & Clay vivem toda uma vida em fuga, tanto física como mental, e desse modo acabam sendo ambos personagens muito mais ricas do que Houdini.

Em 2004 Brian K. Vaughan acabaria por criar uma série de BD para a Dark Horse, baseada no livro de Chabon, dando assim pela primeira vez"vida" ao super-herói Escapista.

julho 29, 2018

Leitura armadilhada

"Catch-22" avança com uma premissa de excelência que é um conjunto de regras que se definem como paradoxo lógico. Neste paradoxo temos uma lógica para a ação que é definida por regras que se opõem e que por isso impedem a ação de decorrer. Exemplificando, o protagonista, Yossarian, quer deixar de fazer missões aéreas enquanto em guerra, para o que precisa de ser declarado insano pelo médico da companhia, contudo esta declaração só pode acontecer a pedido do próprio, ora se o soldado está em condições de fazer um pedido de avaliação de insanidade, não pode estar insano, logo não pode deixar de fazer as missões como pretende. Esta armadilha de regras está presente naquilo que no livro é conhecido por artigo nº22 do código militar, e que define a lógica subjacente à vivência em tempo de guerra que Joseph Heller procura trabalhar ao longo de todo o livro, e no fundo conduzir à sua conclusão maior, de que as guerras são em si mesmo paradoxos de lógica.


Não discordando em nada, admirando a premissa e a sua aplicação ao cenário de guerra, assim como estimando a enorme qualidade da escrita e estrutura apresentadas pela obra de Heller, é com muita pena que chego ao final apenas com a racionalização do que li. Ou seja, não senti o universo nem os seus personagens, os seus problemas não me tocaram, nem me demoveram. Li o livro até ao final porque me obriguei, porque é um livro extremamente citado, referenciado em dezenas e dezenas de listas, e por imensas pessoas que respeito, e por isso senti que poderia acontecer alguma espécie de revelação mais perto do seu desfecho. Na verdade pouco mais acontece, sim há um pouco mais de comoção, mas o livro é isto, e no meu caso nunca senti qualquer vontade de virar páginas, nunca senti que queria saber mais sobre Yossarian.

Sim, a guerra é algo sem sentido, obtusa, não existe qualquer lógica que se lhe aplique, está errada do início ao fim. E até podia dizer que por isso julgo que é algo contra o qual devemos lutar com maior sensibilização dos leitores, mas estaria a incorrer em erro. Não foi por isso que não me liguei, não senti qualquer menosprezo de Heller por quem teve ou tem de combater em guerras, antes senti uma elevação acima do quotidiano daquilo que as guerras criam, e uma tentativa de compreender algo que não é compreensível, tornando mesmo a premissa de "Artigo 22" extremamente significante. Contudo, e apesar de reconhecer tal, reconheço-o apenas no seu racional.

Dito isto, poderia ter lido um livro não-ficcional sobre o tema, filosofando sobre a problemática, e talvez me tivesse aproximado mais. A opção de seguir pelo humor, a sátira, não funcionou comigo. Senti-me a olhar para algo vazio. Teria preferido um conto sobre o assunto, que me pudesse dar a compreender o ardil, e não tivesse exigido tantas horas para oferecer o mesmo que tinha oferecido ao fim de 100 páginas. Dito isto, e porque não quero que esta análise sirva para demover alguém de ler uma obra que continua sendo tão amada, passado mais de meio-século, recomendo que leiam o primeiro terço do livro, se não sentirem qualquer ligação, então podem encostar, não vai acontecer nada de muito diferente depois disso.

dezembro 10, 2017

Nolan salvo por Churchill

Dunkirk” (2017) é pura sensorialidade. É um filme sobre guerra que trata o que acontece numa guerra do ponto de vista da emocionalidade humana, individual e coletiva. Não há lugar para a discussão ou intelectualização do que está a acontecer, é tudo muito rápido e munido de um objetivo único, a sobrevivência. Nolan criou uma obra poderosa através de uma enorme síntese de informação e da modelação dos ritmos visual e sonoro que impedem o espetador de desligar.



Nolan trabalha a narrativa em três linhas distintas — na terra, pelo ar, e pelo mar — de modo a intensificar a emocionalidade.

Dunkirk” é um hino à arte de mostrar em vez de contar. Dada essa capacidade, de economizar no relato, de secundarizar a descrição, quase poderia ter sido feito por meio de meros quadros, ou fotografias estáticas, coladas pela música poderosa de Hans Zimmer. Nolan não quer dar conta do quê e do porquê, Nolan está apenas focado no que se sente. Claramente que é tudo espetacularizado, e por isso acabamos por sentir apenas o desnorte, o desapego, já que o medo real não consegue chegar até nós, nomeadamente por estarmos constantemente a ser estimulados pela surpresa.

No final do filme não sabemos porque aconteceu nem como foi possível acontecer tal, mas isso não é relevante. Em última análise o filme de Nolan corria o risco de se transformar num mero enorme teledisco, mas isso não acontece. Não, porque existe algo de surpreendente que ele consegue fazer-nos sentir. Depois de criada a dissonância cognitiva narrativa, comum em histórias de guerra em que as histórias se focam numa vida enquanto deixam morrer milhares, esta acaba sendo ultrapassada. Ou seja, se a meio do filme sinto o desperdício de tempo dedicado a um ou outro personagem, porque ao lado existem milhares a tombar, no final, tudo isso se apaga quando a força das palavras de Churchill são lidas a partir de uma folha de jornal.
“Even though large tracts of Europe and many old and famous states have fallen or may fall into the grip of the Gestapo and all the odious apparatus of Nazi rule, we shall not flag or fail. We shall go on to the end, we shall fight in France, we shall fight on the seas and oceans, we shall fight with growing confidence and strength in the air, we shall defend our island, whatever the cost may be, we shall fight on the beaches, we shall fight in the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender, and even if, which I do not for a moment believe, this island or a large part of it were subjugated and starving, then our Empire beyond the seas, armed and guarded by the British fleet, would carry on the struggle, until, in God’s good time, the New World, with all its power and might, steps forth to the rescue and liberation of the old.”
“Speech on the Evacuation”, por Winston Churchill à House of Commons, no Parlamento do Reino Unido, 4 Junho 1940 (Discurso audio completo, 12m)
Mas tudo isto demonstra que a sensorialidade de Nolan não chegava. Sem a racionalização, intensamente impressiva, de Churchill, o filme de Nolan teria sido uma grande obra plástica, mas vazia.

julho 09, 2017

A Conspiração Contra a América (2004)

Uma certa desilusão, ainda que não totalmente surpreso. Depois da desilusão de “The Man in the High Castle” (1962) de Philip K. Dick, já não vinha expectante, ou melhor não vinha com gula. Não consigo explicar porque sempre me fascinou esta ideia de História alternativa, mais ainda do imaginar: “e se a Alemanha não tivesse perdido a 2ª Grande Guerra?’. Talvez por ser algo que ninguém quer ousar imaginar, uma espécie de pensamento proibido, faça dessa possibilidade objeto de imaginação mais apetecível. Mas a verdade é que ambos os livros são muito parcos em termos imaginativos, talvez porque a sê-lo teriam de embarcar pelo puro género de horror, o que acabaria por deitar a perder a componente dramática. Fica-me a faltar leitura de “Fatherland” (1993) de Robert Harris, mas a julgar por estes dois e algumas críticas que li, quer-me parecer que já não será para mim.


Tenho de dizer que a obra de Roth não se foca concretamente na história alternativa da Alemanha ganhar a Guerra, mas antes na alternativa dos EUA não participarem na Guerra. Mas logo aí acaba por ficar curta a digressão de Roth, já que o enredo acaba por avançar muito pouco. Em termos cronológicos somos encerrados num período de apenas 2 anos, entre 1940 e 1942. Roth foca-se assim mais sobre a possibilidade de um regime fascista poder tomar conta da “Terra da Liberdade”, transportando alguns dos eventos ocorridos na Europa para os EUA.

O livro tem a particularidade de fundir de forma muito rica o real e o ficcional alternativo, no sentido em que todos os intervenientes políticos são figuras reais da história americana, ao que se junta o facto da personagem principal, responsável por relatar o que está a acontecer, ser o próprio Philip Roth, na sua infância, dos 7 aos 9 anos. Ou seja, temos uma história alternativa impregnada de autenticidade vívida. Roth é judeu, nasceu em 1933 em New Jersey, e aí vivia no período relatado. Por isso a leitura ganha toda uma componente, apesar de paradoxal, autobiográfica, uma vez que Roth recorre às suas memórias reais para nos dar a ver o mundo dessa época pelos olhos de uma criança judia. Porque mesmo distante da Europa, seria inevitável para as crianças nos EUA que ouviam os pais comentar o que se passava na Europa, ver os jornais e as notícias nas salas de cinema, e não sentirem o peso dos eventos, da incerteza e nebulosa do que significavam.

Philip Roth com 9 anos, e a sua família: a mãe Bess, o pai Herman, e o irmão Sandy. New Jersey, 1942

O livro é de 2004 mas ganhou toda uma nova proeminência com a eleição de Trump em 2016. Muito sinceramente não vejo grande relação, ainda que o desenho da personagem e da eleição de Lindbergh se aproxime bastante do ocorrido com Trump, são tempos muito distintos, e na verdade são pessoas também muito distintas. É verdade que dá conta de alguma presciência por parte de Roth, mas mais relevante que isso, dá conta da sua enorme capacidade de observação e análise da sociedade Americana, da compreensão do que a move.

Como se não bastasse, a escrita de Roth é, como sempre, irrepreensível e puro deleite. Não sei como o consegue, nem como trespassa a barreira da tradução, mas ler, palavra atrás de palavra, atrás de frase, é um pouco como seguir o ritmo de um rio de água fresca em pleno verão escaldante, e de vez em quando pousar a mão sobre a frescura da água para sentir o interior de cada personagem.

fevereiro 05, 2017

"O Diário de Anne Frank" (1947)

Um diário, um testemunho. O relato de uma vida durante três anos (1942-1944) cruciais na história da Europa, e cruciais na história da autora (13-15) que vê a sua adolescência passar de criança a adulta. Um livro exemplo da história e estética da literatura, que demonstra a relevância do contexto da realidade e da autora para uma correta interpretação da mesma. Sendo um diário, estando conectado a alguém em particular, o momento histórico de que dá conta acaba fazendo deste também um diário de todos nós.


Teria sido apenas mais um diário, ainda que bem escrito, não fosse o seu enquadramento histórico, ao que se junta com enorme intensidade narrativa o desfecho dos eventos e da vida da autora. Não é possível ler o diário alheado desses factos, fazê-lo é até uma falta de respeito para com quem o escreveu. Por isso mesmo são tão descabidas as críticas que se podem ler ao livro — “não é suficientemente envolvente em termos narrativos” ou “não tem uma boa edição”. O “Diário” não é uma obra desenhada para provocar emoção, é a expressão interior de alguém que viveu sob determinadas condições. É um relatar de experiências, é um comunicar terapêutico de alguém num momento particular da sua vida e da nossa história. Desligar o livro do seu contexto é matá-lo.

Começando pela data em que foi escrito. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, com os judeus perseguidos, não apenas para serem expulsos ou colocados num qualquer gueto, mas para serem exterminados. As pessoas que se escondiam, não o faziam por não quererem abandonar as suas casas, faziam-no porque o que os esperava eram as câmaras de gás, as valas comuns e os crematórios (ver “Shoah”, 1985). Não existia alternativa à auto-exclusão do mundo, à clausura forçada. Para agravar o problema, todos os que deles se aproximavam corriam sérios riscos de serem também executados. Se este contexto é ideal em termos narrativos, pelo perigo e mistério, ele deve servir para mais do que entreter o nosso tempo, ele deve servir a reflexão sobre as vidas vividas nesse tempo da nossa história.

Passando à autora, sua idade e contexto familiar. Temos alguém muito jovem, acabada de entrar na adolescência, feliz por ter tido a sua primeira menstruação, muito consciente de si e do mundo que a rodeia. Para tal serviu claramente uma família de classe média-alta, mas acima de tudo um pai e uma mãe muito conscientes da educação dos seus filhos. Uns pais capazes de falar de tudo, sempre presentes, e fundamentalmente grandes fornecedores de estímulos, nomeadamente na forma de livros dos mais diversos temas.

O diário inicia-se com a história do seu próprio surgimento, na forma de prenda do aniversário dos 13 anos de Anne. Podemos desde logo ver como nesse aniversário a prenda que é oferecida em maior quantidade a Anne, são livros. Apenas pelo lado da família próxima recebe 6 livros. Durante os três anos em que estão presos no Anexo, os livros nunca faltarão a Anne, não só de leitura mas também de estudo. Os seus pais mantiveram horários e objetivos de estudo ao longo de todos aqueles três anos. E perto do final, Anne e a sua irmã só sonham em voltar para a Escola!
"Também é ela que traz cinco livros da biblioteca, todos os sábados. Ansiamos pelos sábados, porque significa livros. Somos como uma data de miúdos com um presente. As pessoas normais nem sonham como os livros podem ser importantes para alguém que está engaiolado. As nossas únicas diversões são ler, estudar e ouvir rádio." (p.152)
É por demais evidente que todas essas leituras tiveram grande influência sobre o diário de Anne. Que não sendo uma obra de grande elaboração, é uma obra em que se nota uma clara progressão na qualidade descritiva, tanto pelo amadurecimento psicológico da autora, como pela evolução das suas competências de escrita. Anne passa dos 13 aos 15 anos, passa pela sua primeira paixão, e tem imenso tempo para se dedicar à introspeção do que sente, servindo-se do diário como síntese de todos esses sentires.

Por outro lado, o diário foi reescrito por Anne. Depois de ouvir na rádio que no pós-guerra iriam usar os diários das pessoas para tentar reconstituir o que teria acontecido de facto, Anne fez uma segunda versão do que tinha escrito. Anne chega a dizer-nos que quer ser Jornalista ou Escritora. Ou seja, o que lemos nestas páginas, não é algo não autorizado, mas é algo que assume a leitura por outros. Ainda assim a técnica narrativa que permite a Anne aprofundar todas as suas descrições — escrevendo no diário cada dia como se fossem cartas para uma amiga imaginária — é algo que está presente desde o início, dando conta das suas capacidades criativas.

Ao longo do livro, impressionam as descrições dos sentires da casa, do seguimento da evolução da guerra pelo rádio, da manutenção da esperança, do agarrar à vida. Todos faziam cursos por correspondência, para se manter sãos, mas ao mesmo tempo porque acreditavam no que havia de vir. No diário fica claro o confronto entre os instintos mesquinhos do ser humano e os valores superiores, nomeadamente num estoicismo enraizado na educação de Anne que nos toca, porque a estes valores não é alheia a progressão da qualidade e elaboração da sua escrita, motivada por todo o seu trabalho, esforço e dedicação.
“Se Deus me deixar viver, conseguirei chegar mais longe do que a Mamã alguma vez conseguiu, farei ouvir a minha voz, sairei para o mundo e trabalharei para o bem da humanidade!
Sei agora que é preciso em primeiro lugar coragem e alegria!” (p.347)
Tenho poucas dúvidas sobre o potencial de Anne enquanto escritora, caso tivesse sobrevivido ao Holocausto.

novembro 20, 2016

"Lore" (2012), do lado do inimigo

Ter descoberto, e visto, hoje “Lore” (2012) de Cate Shortland, é para mim justificação suficiente para o quanto me custou a mensalidade do serviço FilmIn. Um serviço que parece oferecer aquilo que MUBI tinha prometido e não conseguiu, e que o Netflix está muito longe de poder oferecer. Por meros 6,95 o FilmIn oferece um catálogo de produção Europeia como é difícil encontrar noutro local, apesar de nem tudo estar em HD, a qualidade é boa, e as legendas estão em português.





“Lore” apresenta uma perspectiva completamente distinta dos efeitos da Segunda Grande Guerra, algo que até agora estava calado, já que dos maus não deve a história falar. Vemos o mundo pelos olhos de um grupo de crianças, cinco irmãos, abandonados pelos pais nazis, que têm de atravessar a Alemanha para chegar a casa da avó, e que ao longo dessa viagem, pelo confronto com o outro, vão descobrir os valores que lhes foram incutidos, apreender o mundo que lhes tinha sido vedado, e assim confrontar-se consigo próprios.

O tema é poderoso, mas é o filme que o faz ganhar vida, muito graças aos atores, cinematografia e score. Saskia Rosendahl, com apenas 19 anos, enche o ecrã de pulsação humana, num jogo constante entre os resquícios da educação elitista nazi e a nova realidade que se lhe vai apresentando. Com um tema desta dimensão, poderia existir aqui o risco da empatia excessiva, mas isso não é aqui facilmente permitido. A educação elitista funciona bem nesse sentido, gerando afastamento pela frieza, mesmo para com um bebé que chora.

A emocionalidade é de uma forma geral contida, mas intensa, sempre rente à tensão, que por sua vez é imensamente trabalhada pela excelência da cinematografia de Adam Arkapaw, de quem já aqui tinha falado a propósito de "Macbeth" (2015). Arkapaw fixa-se aqui menos no belo, e mais no sentido dos olhares, alimentando desta forma a densidade dos personagens. Vemos o que estes vêem e vemos os seus rostos, estáticos e tensos mas carregados de vida, quase sempre sem palavras, porque não são precisas serem ditas, porque é nos seus corpos e na perspectiva destes que reside o todo.

Claro que a experiência se torna única, muito graças ao magnífico score de Max Richter, que desenvolve do ponto de vista sonoro todo um mundo particular, o mundo do filme, o mundo em que vivem aquelas crianças, em que ouvimos os violinos chorarem em nome de milhões de vidas que se perderam.

“Lore” é uma experiência de sentimento e confronto humanos, de um ponto de vista que não serve o choro, mas deve ser compreendido, e que só se consegue se sentido. A guerra, tendo inimigos e aliados, é sempre uma guerra, e nela sofrem sempre os mais fracos, estejam de que lado estiverem.

dezembro 25, 2015

"Perguntem a Sarah Gross" (2015)

Uma experiência que nos toca e mexe com o nosso ser, capaz de nos questionar sobre o porquê de estarmos aqui, num livro sem pretensões estilísticas que joga tudo no desenho de um enredo que coze história e puzzle em profundidade e nos obriga a virar páginas sofregamente em busca de respostas.


Perguntem a Sarah Gross” é claramente um livro baseado na vontade de fazer passar uma ideia, uma mensagem, estando assim muito mais focado naquilo que quer contar do que naquilo em que se deve tornar. Ou seja, a obra não se foca nela, nem o autor está preocupado com o seu devir, aqui só importa dar conta de uma realidade, de um espaço e tempo, desvelar os seus registos históricos e efeitos e levar o leitor a sentir-se próximo desse passado. Percebe-se que o autor está focado em fazer sentir ao leitor um pequeno limiar da experiência porque passaram milhões de seres humanos na nossa história recente, o Holocausto, esperando desse modo contribuir para que mais pessoas, pelo menos todos os seus leitores, não pensem, não desejem, nem permitam que o que aconteceu possa alguma vez mais voltar a repetir-se.

Em essência “Perguntem a Sarah Gross” dá conta da história da cidade polaca Oswiecim, que passou a chamar-se Auschwitz com a invasão alemã, e dos terrores aí vividos durante a 2ª Grande Guerra. Acompanhamos uma família a dois tempos, pré-guerra e pós-guerra, durante os quais vamos aprendendo sobre a história e seus efeitos, e assim compreendendo um pouco melhor o que se passou, e como foi possível passar, servindo para aumentar em nós a incredulidade no ser-humano, fazendo deste livro uma obra conseguida.

A mensagem passa mas à custa de algumas fragilidades, desde logo porque sendo o autor português, teria preferido ver a família Gross situada em Portugal e não nos EUA. Sei que o fluxo de migrantes para os EUA foi totalmente diferente do fluxo para Portugal, mas também sei que muito do nosso imaginário está contaminado pelos contadores de histórias americanos. Tudo o que aqui vemos neste livro é fruto desse universo americano standard — os colégios, as universidades, os judeus e os italo-americanos — tudo tornado parte da cultura global, porque fortemente exportado pelos seus contadores de histórias. Sei que ao escrever desta forma, a obra de João Pinto Coelho tem capacidade para se tornar num best-seller do New York Times, e só estranho a esta altura ainda não existir uma tradução para inglês e a sua distribuição nos EUA! Aliás questionei-me várias vezes porque é que, tendo em conta a ligação do autor aos EUA e à língua,  não foi escrita diretamente em inglês tendo em conta já uma distribuição global.

Mas cabe-nos a nós, e só a nós portugueses, dar conta do que somos, e do que queremos ser, e isso só pode ser conseguido por via da arte, da produção cultural. Daí a necessidade imperativa de verbalizarmos aquilo que somos, seja na literatura, no cinema, na música. Mais, aquilo que pode tornar uma obra de um português relevante lá fora, ainda que tenha de se dotar de contornos globais, é a sua singularidade, o seu exoticismo proveniente da singularidade do país em que vive. É isso que torna obras como “O Menino de Cabul” de Khaled Hosseini tão atrativas, e que por várias vezes fui recordando ao ler este livro.

Posto de lado o pano de fundo escolhido pelo autor, e focando-me apenas no texto e assumindo a mestria do tratamento dado ao enredo, levantam-se problemas no tratamento dado aos personagens. No final do livro, mais do que “perguntar a Sarah Gross” o que precisaria era de perguntar quem era Sarah Gross, já para não dizer, quem era Kimberly Parker. Porque o texto passa todo o tempo a relatar o que lhes aconteceu, dando muito pouco espaço ao que elas intrinsecamente fizeram, ou seja o que pensaram sobre aquilo que fizeram. Vemos as personagens à distância, estamos no centro da ação, mas não lhes tocamos, apesar de se construir empatia com elas, mas é uma empatia que vive dos laços universais — pai, filho, família, etc. — e não destas em particular. E é por isso que no final quando se descobre as ligações de Sarah Gross aos personagens do colégio, temos dificuldade em compreender o que tudo aquilo nos diz, já que sabemos muito pouco sobre o modo como Sarah sente o mundo.  O mesmo acontece com Kimberly, embora esta sofra de alguns problemas de enredo, já que a sua centralidade na ação acaba por não conseguir justificar-se plenamente no final do livro. Porquê Kimberly como narradora em primeira-pessoa, quando ela não passa de mera testemunha, sim, ajuda-nos a ter um ponto de vista mais familiar, já que se trata de uma realidade complexa distante de nós como dela, mas sabe a pouco.

Mas se a obra falha em levar-nos ao âmago das suas personagens, compensa totalmente no modo impressivo como nos leva aos espaços. No início do livro temos mapas do colégio, não temos de Auschwitz, mas julgo-os todos desnecessários porque o autor consegue situar-nos sempre, dar conta dos espaços e sons que circundam toda a ação. O mais impressivo acaba sendo o modo como nos dá a ver Oswiecim, Cracóvia, Plaszów, Birkenau como se vão operando as mudanças de lugares por parte das comunidades judaicas, empurradas pela força das operações militares. O texto coloca-nos lá, no centro da ação, e pela força da descrição e empatia consegue magoar-nos! Por várias vezes tive de fechar o livro, e arredar dali o pensamento, tal a força impressiva do texto.

Para primeira obra, João Pinto Coelho surpreende, dando conta de um excelente domínio na arte de contar histórias, de jogar com a informação, de nos obrigar a trabalhar para ir atrás do que vai dizendo e deixando por dizer. A escrita é suficiente para tornar verbal o  que lhe vai no espírito, apesar de raramente brilhar tão raramente decepciona, estando ao nível de muito best-sellers internacionais e bastante acima de alguns best-sellers nacionais. Mais que tudo, sente-se uma profunda honestidade em todo o relato, uma vontade de testemunhar, de nos dar a ver e sentir aquilo que o “incomoda”.

janeiro 14, 2015

Causalidade de uma guerra

A propósito da I Grande Guerra, discutida no texto anterior, fui rever um ensaio audiovisual de Adam Westbrook do Delve, "Cause and Effect: the unexpected origins of terrible things" (2014). Fantástico, não apenas a brilhante capacidade de contar histórias de Westbrook, mas a perspectiva histórica apresentada por este a propósito do rastilho que terá dado origem à I Grande Guerra.




Não conheço o suficiente sobre esta guerra, não sei se a perspectiva aqui apresentada é original e quão correcta poderá ser, apesar disso Westbrook apresenta o encadeado de livros que utilizou para construir esta teorização sobre a causa da guerra, e mais do que isso fá-lo de uma forma totalmente convincente. Pode apenas ser mais uma teoria da conspiração, mas não deixa de ser altamente credível, assim como profundamente perturbadora.

"Cause/Effect" (2014) por Adam Westbrook
"The causes of World War One have been written about countless times, and you probably know the story. But is there another way of looking at it? Here's an alternative history to a catastrophe 100 years ago."

janeiro 11, 2015

“Valiant Hearts", dramas da I Grande Guerra

Valiant Hearts - The Great War” terminado, senti um forte arrepio com o adeus "sonoro" de Emile, tocou-me e emocionou-me, um verdadeiro “coração valente”… Não é um jogo que exija de nós, usa e abusa de mecânicas mais do que conhecidas, mas fá-lo porque está convicto de que aquilo que importa é contar a história que tem para contar, e fá-lo muitíssimo bem.





Valiant Hearts” é um dos pequenos videojogos desenvolvidos pelo pequeno estúdio da Ubisoft em Montpellier. Grafismo 2d e jogabilidade 2d, mas com grande qualidade gráfica, grande qualidade musical, e grande qualidade no storytelling. Entramos no jogo com a sensação de que é apenas um pequeno jogo com pouco para mostrar, puzzles de acção visual em sidescroller com variação de profundidade de campo, parece ter tão pouco para nos impressionar, mas à medida que vamos entrando no jogo, vamos percebendo que a sua essência não está nos puzzles, nem nos “quick time events”, mas está na história rica de drama, está nas personagens ricas de humanidade.

Valiant Hearts” vem de encontro a algo que escrevi há já muitos anos, quando queremos contar uma grande história, quando queremos agarrar o jogador emocionalmente pela narrativa, a componente de jogo tem de se pautar pelo uso de mecânicas de alguma forma standard, que não obriguem o jogador a grandes processos de racionalização da sua interacção. Ora é exactamente isto que temos aqui.

Trailer "Valiant Hearts - The Great War" (2014)

Acima de tudo “Valiant Hearts” é um magnífico videojogo sobre a I Grande Guerra, vale por tudo aquilo que tem para dizer, mostra a guerra sem terror, mas não esquece o drama que é fortemente enriquecido por um dossier de imagens e histórias reais que podemos ir coleccionando através de pistas obtidas no jogo.

novembro 16, 2012

a ideologia vista pela inocência

Consegui finalmente ver The Boy in the Striped Pyjamas (2008), e ficar estarrecido pela história. Raramente aqui trago filmes pela história apenas, mas este é demasiado bom nesse campo para não o fazer. Tenho de começar por confessar que os filmes sobre Nazis e 2ª Grande Guerra já me dizem muito pouco, já tudo foi tão explorado... Porque é diferente The Boy in the Striped Pyjamas?


Essencialmente porque nos traz a guerra vista da perspectiva de uma criança totalmente inocente. Já tínhamos visto isso no belíssimo Life is Beautiful (1997), a diferença é que aqui a perspectiva não é dada por alguém dentro de um campo, mas antes por um miúdo de 8 anos filho de um importante comandante de um campo de concentração, e que está a tentar compreender o que se está a passar à sua volta. Por sua vez este tenta digerir a lógica do regime imposto pela ideologia vigente, enquanto a confronta com a amizade que estabeleceu com outra criança da mesma idade e que encontrou numa clareira de um campo de concentração.


Existem várias nuances de excelência na história, uma das mais importantes é exatamente fazer-nos perceber como foi possível um regime ideológico daquela natureza implantar-se. Como reagiram as pessoas, como foram treinadas as crianças. Ver que as pessoas se questionaram, mas que foram incapazes de fazer frente ao regime. Perceber que um regime destes pode voltar a acontecer, não haja qualquer dúvida que pode, porque aquilo que temos aqui, é um contorcionismo dos ideais humanos que de tanto se impor, converte as pessoas, e as leva a cometer atrocidades que estas seriam totalmente incapazes de realizar se tivessem verdadeira liberdade para pensar por si próprias. O que esta história mostra a nu, é que um sistema de valores distorcido pode tudo corroer, e não precisamos de Nazis, o sistema atual de crescimento e lucro contínuo que destruiu milhões de vidas com a crise de 2008 continua aí a dar cartas, agora pelas mãos da chamada austeridade. A ideologia implanta-se e quem é comandado, segue friamente, acreditando piamente que está a fazer o melhor pela sua nação...


Enquanto objecto cinematográfico o filme é satisfatório, mas fica muito aquém de tudo o que poderia ter sido. Temos um história fabulosa, que sai um pouco mal tratada em quase todas as dimensões fílmicas, exceptuando o casting dos rapazes (Bruno é Asa Butterfield que fez de Hugo Cabret em Hugo (2011) de Scorsese) e o seu tratamento narrativo. A relação entre Bruno e Shmuel é um verdadeiro pequeno tesouro, porque por momentos somos levados por caminhos de aventura, tal como nos livros que Bruno gosta tanto de ler. E ao longo do filme a sua relação fortalece-se e quando no final decidem levar a sua amizade mais longe, a aventura eleva-se e o drama acontece com uma força trágica muito forte.


Isto tudo é ajudado pela matriz narrativa, que nos conduz à empatização com Bruno, que nos consegue levar a ver e a sentir o mundo a partir dos seus inocentes olhos, mas a uma determinada altura, somos levados para o lado dos pais, e começamos a empatizar com estes, a compreender que estas pessoas são bem mais complexas piscologicamente do que inicialmente nos quiseram fazer parecer. Este jogo de empatização ora com o Bruno ora com os seus pais, carrega-nos ao longo do filme, e constrói o caminho para a tragédia se poder desfilar com toda a sua força e significância.

Um filme pedagógico, trágico, e que dificilmente se esquece.

setembro 05, 2012

Viagem a Itália com Scorsese, Rossellini e Antonioni

Neste verão, depois da Minha Viagem a Itália com Scorsese ao longo de quatro horas, não resisti a procurar ver e rever alguns dos filmes que marcaram o período mais importante da história do cinema italiano, o chamado neorealismo, fruto do final da segunda grande guerra na Europa. Vi assim os três primeiros filmes de Rossellini -  Roma, Città Aperta (1945), Paisà (1946), Germania Anno Zero (1948) - a chamada trilogia da guerra, e depois os primeiros três filmes de Antonioni - L'Avventura (1960), La Notte (1961) e L'Eclisse (1962) - definidos como a trilogia do descontentamento com o modernismo.

Il Mio Viaggio in Italia (1999)

Começando por Rossellini, os seus filmes são de um realismo impressionante, não tanto na forma apesar de alguns actores não-profissionais, mas mais na escolha do tema e o seu tratamento discursivo. Roma impressiona-nos muito, mesmo passados 60 anos o filme continua imensamente atual, mas fiquei ainda mais impressionado com Germania que nunca tinha visto.

Germania Anno Zero (1948)

Se Roma é um manifesto declarativo da inocência do povo italiano contra a barbaridade fascista, Germania é um dos poucos filmes em toda a história do cinema a atrever-se a mostrar o outro lado, a ser condescendente com um país odiado por todos. E este filme só o pôde ser porque surgiu exatamente depois de Roma, de outra forma seria muito difícil aceitar tudo o que aqui é exposto sem pensar em segundas intenções por parte do autor. Paisá é por outro lado um retrato do pós-guerra, breves contos que nos transportam por entre diferentes perspectivas e sentires do pós-guerra de sul ao norte de Itália.

Roma, Città Aperta (1945)

Mas se viajar com Rossellini é sentir banhos de realidade em sofrimento visceral, já viajar com Antonioni, apesar de continuarmos sobre bandas largas de sofrimento, é vaguear pelos implícitos e sentir apenas após reflectir. Enquanto Rossellini se preocupou em pôr tudo à flor da pele, e a mostrar provas para nos levar a acreditar e a sentir, Antonioni cria todo um universo de atmosferas introspectivas que nos faz desligar da realidade diária e nos transporta para uma espécie de realidade alternativa que se agarra a nós e teima em não nos deixar muito depois de os filmes terem acabado.

L'Avventura (1960)

Depois de ter visto a trilogia de seguida, o meu sentimento à volta da especificidade antonionesca sai ainda mais reforçado. Tudo nestes filmes transpira Antonioni, sente-se na atmosfera, nos diálogos, na fotografia, no ritmo, na interpretação. Toda a estilística é tão peculiar que se torna inconfundível, é toda uma forma própria de expressar ideias, ainda que usando um mesmo meio, o cinema. Antonioni respira e expira melancolia intelectualizada, pouco se passa, e o que passa nada diz de modo explícito. Cada momento está repleto de sentidos, mas cabe ao espectador encontrá-los, é o minimalismo. Se nos deixarmos levar pelas ideias em imagens, entraremos adentro de uma forma diferente de olhar a realidade, que sem dúvida nos questiona sobre o que nos rodeia.

L'Avventura (1960)

L'avventura consegue de uma forma tão subtil e minimal dar conta de um dos maiores dramas da contemporaneidade, a diminuição do tempo de atenção. O desaparecimento de Anna rapidamente se esvanece sem qualquer resposta, e os personagens nem por ela esperam, para logo reatarem novos romances. Tudo se move muito rapidamente, tudo anda muito depressa, interessa apenas o aqui e o agora. Mas L'Aventtura faz isto de uma forma que podemos dizer narrativamente brutal, como é possível que o filme não dando resposta ao desaparecimento de um personagem os espectadores ainda assim se contentem, e consigam proceder ao fechamento da narrativa. É um olhar crítico à pós-modernidade, em que se aceita a destruturação, a fragmentação, em que tudo é efémero, flexível, re-adaptável e não-durável.

La Notte (1961)

La Notte traz-nos mais uma vez a crítica da nova modernidade representada no escritor de sucesso, na sua ascensão, e na deliberada crítica ao sistema mercantilista em detrimento da cultura. O casal deambula como uma dupla de zombies por entre a sociedade em busca de motivações que os mantenham juntos, tudo está ao alcance, mas tudo é tão desprezível.

L'Eclisse (1962) 

L'Eclisse quer seguir na mesma linha, embora dos três seja o menos forte para mim. Mais uma vez a crítica e sátira ao mercantilismo, com a bolsa de Milão como pano de fundo. Monica Vitti não encontra repostas ao seu desejo de uma relação de amor, mas no fundo será que é mesmo isso que procura. Carrega consigo a melancolia do questionamento constante, para onde vou e porque vou, o que faço aqui. Aliás toda a trilogia é de um existencialismo exacerbado, que por momentos me faz pensar em Camus, embora numa linha diferente.