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dezembro 19, 2020

Espinosa e a necessidade de Ser Especial

Terceiro livro de Yalom dedicado a romancear as ideias de um filósofo. Depois de Nietzsche em 1992 e Schopenhauer em 2000, em 2012 foi a vez de Espinosa. São três obras de elevado interesse pelo modo como facilitam a entrada na complexidade dos quadros teóricos de cada um destes filósofos. Por via do simples contar de histórias, Yalom traz de volta à vida os pensadores, permitindo-nos dialogar com eles. Não se espere obras de grande desenvoltura literária, o foco são as ideias e os criadores das mesmas, a literatura está aqui ao serviço. Mas em termos de apresentação e discussão teórica, Yalom impressiona, tornando simples e acessível o complexo. Ao contrário dos anteriores filósofos, nada tinha lido escrito pelo próprio Espinosa, apesar de por várias vezes me ter aproximado dele. Talvez por isso, por funcionar como descoberta de um novo mundo, foi dos três o que mais mexeu comigo.

Sinopse: Espinosa, judeu refugiado na Holanda, viveu uma vida de castigo e isolamento. Devido aos seus pontos de vista, foi excomungado da própria comunidade judaica de Amesterdão, e banido do único mundo que sempre conhecera. Apesar de viver com poucos meios, Espinosa produziu obras que mudaram o rumo da História.

Se não tinha lido antes Espinosa, tinha lido um outro texto que me serviu de comparativo e nomeadamente de filtro crítico, falo de "Um Bicho da Terra" (1984), um livro de Agustina Bessa Luís sobre Uriel Da Costa, o filósofo português, cristão-novo, que estudou na Universidade de Coimbra e depois emigrou para Amsterdão, no século XVI. Uriel da Costa viveu na mesma comunidade de Espinosa, morreu quando Espinosa tinha 6 anos. Desde já, dizer que é uma tontice dizer-se que Espinosa era português, e colá-lo na capa do livro ainda pior. O seu pai fugiu de Espanha para Portugal, e de Portugal para a Holanda, Espinosa nasceu em Amsterdão. Se é verdade que falava e escrevia inicialmente em português, isso não faz dele português. Mais, tendo em conta o facto de ter sido ostracizado por todos os países por onde passou, tendo de publicar sob anonimato, diria que Espinosa era sim um Cidadão do Mundo.

O livro de Agustina serviu-me então de filtro crítico porque quando ia a meio do livro de Yalom, surgiu a história de Uriel, de forma muito breve, e por isso voltei para ler o que tinha escrito sobre o livro de Agustina. Foi então que me apercebi que não só Yalom não dava conta da verdadeira importância da figura de Uriel, do seu legado filosófico, como se abstinha totalmente de ligar a sua personalidade e ideias às ideias de Espinosa. Foi então que me apercebi que Yalom pretendia apenas uma coisa, cultuar Espinosa. Para esse efeito não podiam ser apresentados elementos que ombreassem. Espinosa tinha de ser o primeiro e mais dotado de sempre naquela comunidade e no mundo. Repare-se no seguinte diálogo:

Espinosa: “o meu pai (...) falou-me da vossa elevada opinião sobre a minha mente — "inteligência ilimitada" — foram as palavras que ele vos atribuiu. Foram de facto estas as suas palavras? Ele citou-o correctamente?”

Rabi Mortera: “Sim, essas foram as minhas palavras”

Yalom segue um modo de novelização completamente oposto a Agustina, já que esta procurava acima de tudo um registo histórico para a posterioridade, sem exageros nem inverdades, enquanto Yalom não se preocupava com o que tinha de ficar por dizer, desde que conseguisse criar na mente do leitor a figura de uma espécie de Deus Filósofo, pronto a ser seguido pelo leitor. Com esta crítica, não estou a dizer que Espinosa não fosse uma mente brilhante e um filósofo profundamente dotado, mas continuava sendo um humano. Porque a diferença entre os dois livros, sobre Uriel e Espinosa, é a demonstração do primeiro de que não existem super-homens, mas que o conhecimento se constrói na senda de muitos antes de nós. Não nascemos ensinados, nem temos propriedades capazes de nos colocar do lado de fora da espécie. Construímos a partir daquilo que os outros antes de nós construíram. 

Yalom enfatiza múltiplas vezes que Espinosa teria uma inteligência fora do normal, que era alguém completamente sobredotado, alguém diferente de todos. Usa depois outras figuras de culto como Goethe, Kant ou Einstein para levar ainda mais longe o seu endeusamento. Repare-se que este tipo de endeusamento faz parte da nossa cultura ocidental, adorada principalmente pela cultura americana que se preza pela competição desenfreada. Se enaltecermos o individuo, em vez da teia de indivíduos que contribuí pequenos elementos para o todo, criaremos um maior sentimento de inveja, uma maior necessidade de dar o máximo, e pedalar sem parar. Repare-se nos seguintes casos:

Gutenberg: Inventor da prensa móvel, algo que sabemos há muito não ser verdade, já que existem imensos registos do seu uso muito anterior na Ásia.

Darwin: Criador da Teoria Seleção Natural. A sua teoria surgiu ao mesmo tempo que a de Alfred Wallace. E o que isso no diz é que o conhecimento criado pelo ser humano até àquele momento tornava evidente aquela teorização. Mas antes tivemos Lamarck, e muito antes Lucrécio.

Einstein: Criador da Teoria Geral da Relatividade. Sem os génios de Hendrik Lorentz ou Henri Poincaré Einstein nunca teria chegado à mesma.

Edison: Inventor da Lâmpada Elétrica. Na verdade foi o criador da primeira lâmpada comercializada, porque a lâmpada elétrica existia já em múltiplos outros experimentos.

Lumiére: Inventores do Cinema. Pode-se dizer que foram os primeiros a fazer uma sessão paga de cinema, nada mais.

Jobs: Criador da Interface de Utilizador Gráfica (GUI). Antes tinha sido desenvolvida pela Xerox, onde trabalhava Alan Kay, e antes disso por Ivan Sutherland na U. Stanford.

Esta lista poderia continuar infinitamente, é uma pequena amostra que dá conta do facto de nenhum ser humano ter qualquer comunicação privilegiada com Deus ou qualquer realidade alternativa. Criamos e inventamos apenas aquilo que é possível em cada momento, e o que é possível é limitado pelo que existe em cada um desses momentos. As disrupções ou saltos revolucionários, não passam de “wishful thinking”, porque nunca vamos além da incrementação. Se realmente fossemos capazes desses saltos no conhecimento, não só já teríamos evoluído muito mais, como poderíamos encontrar momentos de invenção na história inexplicáveis, buracos negros de conhecimento. No entanto não existem momentos desses documentados em lado algum. Tudo o que inventámos, seguiu o rumo do conhecimento que existia, porque como nos diz Lucrécio: "Nada pode ser criado do nada."

Contudo, na nossa sociedade ocidental ao contrário da oriental, aquilo que mais queremos ouvir são histórias sobre indivíduos que fizeram a diferença, que foram heróis, melhor ainda, super-heróis. Alcançaram o inalcançável. Lê-se a certa altura, no livro de Yalom: “O meu professor afirmou que Spinoza foi o homem mais inteligente que alguma vez andou na terra.

Mas, é o próprio Espinosa que o diz, aqui no livro de Yalom:

“Portanto, também é verdade que Deus não escolheu o homem para ser especial, para estar fora das leis da Natureza. Essa ideia, creio eu, não tem nada a ver com a ordem natural, mas vem antes da nossa profunda necessidade de sermos especiais, de sermos imperecíveis.

Os judeus afirmavam-se como o Povo Eleito, Escolhido ou Especial para forçar a sua crença nas massas. Mas Espinosa nunca aceitou tal ideia, desde logo porque nem sequer nas escrituras vem inscrito tal. Mas acima de tudo porque Espinosa acreditava que tudo era Natureza e que nesta não cabe o Especial. Tudo vem da Natureza, tudo volta à Natureza. Esta ideia de Especial, de Culto do indivíduo liga-se com a tal necessidade de se manter à superfície da Terra para todo o sempre. Só sendo-se Especial não se será esquecido. Mas como dizia Epicurus,

“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não existe; e quando a morte existe, não existimos nós. Todas as sensações e consciências terminam com a morte e, portanto, na morte não há prazer nem dor. O medo da morte surge da crença de que na morte existe consciência.”  
"Eu não era, fui; já não sou, já não me importo."

No fundo, por mais impressionante que Espinosa tenha sido, bebeu bastante no exemplo de Uriel da Costa, assim como foi buscar muitas das ideias a Epicuro, Lucrécio, Aristóteles e tantos outros. Aliás, um dos focos do livro é exatamente a Biblioteca de Espinosa com mais de 150 volumes, para quem quase nada tinha, o que ele mais prezava era o legado de quem o precedeu, a partir do que podia continuar a debater e a construir as suas ideias.

“Porque ninguém, na realidade é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão” Espinosa in "Tratado Teológico-Político"

Esta minha crítica ao livro foi proporcionada pelo próprio livro, já que Yalom não se limita a falar de Espinosa, ele coloca o mesmo em confronto com o nazismo que bebeu nas suas ideias para criar a sua própria doutrina, subvertendo totalmente o legado de Espinosa. Os nazis não compreendiam como Espinosa poderia ter sido tão iluminado, imensamente respeitado por grandes nomes da história da Alemanha, e ao mesmo tempo ser judeu. Por isso, de forma execrável, fizeram uso do trabalho de Espinosa, dos seus argumentos sobre a religião e o judaísmo para atacar os judeus, mas colocando-se a si mesmos no lugar da Raça Especial.

"A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender a compreender, porque compreender é ser livre." Espinosa in "Ética"

Este trabalho de fusão entre a história de Espinosa e o nascimento da ideologia do nazismo levanta ainda uma outra questão que Yalom não discute mas é por demais evidente. À medida que Yalom vai romantizando o trabalho de Alfred Rosenberg, torna-se inevitável pensarmos sobre as razões por que não foi banida a obra de Houston Stewart Chamberlain? Se ela não tivesse chegado às mãos de Rosenberg, teríamos alguma vez chegado a ter um nazismo tão obcecado com a raça? Contudo, pouco depois, quando vemos os livros de Espinosa serem banidos pelos judeus e pelos cristãos, mesmo tendo sido publicados de forma anónima, a resposta torna-se óbvia. 


Para fechar o texto, dizer que o livro de Yalom pode não ser, ou não parecer, brilhante, mas tendo em conta tudo aquilo que nos dá a conhecer e o modo como nos instiga a refletir, por demais evidente no meu texto acima, torna-se difícil não recomendar a sua leitura. Para mim, foi essencial porque antes de voltar a tentar ler "Ética" (1677), vou seguir a recomendação de ler primeiro o "Tratado Teológico-Político".


Continuar a Ler:

Nietzsche, o psicoterapeuta, 7.2020

Schopenhauer por Yalom, 9.2020



março 08, 2020

Da Natureza das Coisas

De Rerum Natura” é a obra-prima do poeta-filósofo Tito Lucrécio Caro (94-55 a.C). Se quiserem saber mais sobre a história e relevância deste texto que quase se perdeu nos meandros das parcas bibliotecas da Idade Média, aconselho vivamente a leitura de “The Swerve: How the World Became Modern” (2011) de Stephen Greenblatt. Mas se foi por meio de Greenblatt que me iniciei na leitura de Lucrécio, a quem agradeço, foi por meio da belíssima tradução de Agostinho da Silva (1962), para prosa em português, que cheguei ao conhecimento das palavras e pensamento de Lucrécio. Dizer ainda que se a obra se apresenta como poema, ele é mais porque é também ensaio, não apenas filosófico, mas também científico, e por isso não admira todo o ardor que Montaigne sentia por Lucrécio, explicando também o facto de se ter passado a designar a obra como poema-didático. Em suma, podemos dizer que a obra de Lucrécio é talvez o primeiro trabalho de sempre de Comunicação de Ciência. Mais do que filosofar, argumentar ou calcular, Lucrécio estava focado em dar a conhecer as ideias dos seus mestres — Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.) — não se tendo poupado em esforços de comunicação, nomeadamente de persuasão, o que explicará o facto de ter sido escrito em verso.
Ilustração de Jennifer Luxton

Para além do impacto desta obra nas ideias dos períodos da Renascença e do Iluminismo, discutido por Greenblatt, é talvez ainda mais importante, porque responsável por esse impacto, o facto de ser o meio que permitiu que o pensamento de Demócrito e Epicuro tivesse chegado até nós. Ambos os pensadores são hoje imensamente reconhecidos no modo como anteciparam uma visão do mundo pós-religião, humanista, centrado no pensamento científico, nomeadamente pelo atomismo e o materialismo. Contudo, a maior parte dos seus escritos perderam-se, tendo restado o trabalho de Lucrécio como portador. Antes de avançar sobre o livro em si, a escrita e estrutura, devo realizar uma breve discussão destas correntes de pensamento, não apenas por serem o núcleo do poema de Lucrécio, mas por serem o núcleo daquilo que hoje assumimos como modo humanista de compreender o mundo que nos rodeia.

Comecemos por compreender que Demócrito estava nas antípodas de muitos dos que se dedicavam a compreender a realidade, entre os quais, Platão e Aristóteles. Para estes últimos, a realidade requeria explicações, sentido e significado. O mundo não poderia simplesmente existir, não se pode ser sem um propósito, uma razão ou uma causa última. Daí que os Deuses nunca tenham abandonado o Olimpo, nem Roma, tendo apenas se monoteisado e aguardado quase dois milénios para que a ciência os começasse a retirar da equação. Vale a pena releitura de “História da Filosofia Ocidental” (1945) de Russell.

Demócrito defendia um mundo constituído por pequenas e indivisíveis partículas, a que deu o nome de átomos. Nestes residiria a componente última e explicativa da realidade. Não adianta procurar além do mundo físico, pelo menos sem antes compreender esse mundo. Neste sentido, Demócrito propõe o materialismo por meio do mecanicismo, questionando: que causas dão origem a cada evento? Se nos centrarmos em saber como acontecem as coisas, como estão interligadas, e compreendermos como a sua interdependência faz o mundo avançar, deixaremos de procurar causas externas sem qualquer sustentação empírica.

Claro que podemos sempre questionar: porquê átomos indivisíveis? E é aqui que Lucrécio faz a sua melhor investida, oferecendo uma argumentação sólida na defesa do atomismo de Demócrito, sustentado no materialismo de Epicuro. Assim, temos que tudo no mundo se desmorona, tudo decai, nem mesmo as pedras mais duras resistem à força da erosão da água e da passagem do tempo. As coisas tendem a misturar-se, tal como acontece com a lama que surge da mistura entre terra com água, que depois nos garante os adobes e tijolos, até que tudo volta a desintegrar-se. No entanto, tudo aquilo que se desintegra tende a dar novamente origem a coisas iguais a si. Existe um ciclo que se mantém inalterado, de decadência e renascimento, que contrasta com a expectável ideia de tudo decair no tempo até ao infinito. Porque não temos um universo constituído por mero caldo de grãos? Para Lucrécio, porque coisas nascem de outras iguais a si, tal qual sementes, as coisas possuem em si determinadas configurações capazes de oferecer futuras e concretas estruturas. São essas configurações últimas, não divisíveis que preservam a ordem da realidade, e permitem que esta se mantenha em pé. De certo modo, Lucrécio antecipava aqui as propriedades químicas, ou aquilo que hoje aceitamos como Tabela Periódica de elementos químicos. Lucrécio discute ainda a necessidade do vazio, ou seja, a existência de espaço entre átomos que garantiria diferentes uniões entre os mesmos e proporcionaria a criação de infinita variação, oferecendo o sólido, mas também o fluído o e o gasoso. Do mesmo modo, oferecia, por via da teoria da declinação (declínio na trajetória dos átomos entre colisões) a impossibilidade da permanência das condições de geração do totalmente igual ou idêntico ao anterior, explicando a incerteza e o livre-arbítrio do elementos, do ser-humano e do universo.

Repare-se como tudo isto suporta o materialismo, que nada tem que ver com as ideias que os antagonistas, na generalidade religiosos, continuam a colar-lhe do hedonismo. Ser materialista, nada tem que ver com o desejo de coisas. O materialismo conduz-se pela simples crença nas coisas enquanto entidades próprias, sem explicações exteriores. Por esta razão o epicurismo defende a procura pela satisfação do prazer, como modo de dar resposta à condição natural dessas coisas. Para o efeito, Lucrécio convoca então o estoicismo, juntando dois sistemas de pensamento, que para muitos parecem inconciliáveis, para criar as bases do que viria a ser o Humanismo (ver “Sapiens” de Harari). Ou seja, o materialismo funciona com base na virtude, o seguimento das leis naturais, que segundo Lucrécio seriam providenciadas por uma Vénus, deusa do Amor, que guia o sentido daquilo que somos enquanto parte da natureza. Buscamos o prazer, não pelo prazer, mas pelo amor pelo outro, para que da nossa semente, nova semente continue aquilo que somos. É esta combinação teórica que permite a Lucrécio tornar a alma material, perecível, defender que depois de morrer nada mais há, deixamos de existir, restando-nos aqueles que ficam, aqueles que deixamos. Lucrécio mata assim o medo da morte que suportava, e suporta ainda, o grande fundamento das religiões no agrilhoar da liberdade do Ser, e prepara o terreno para Darwin.
À esquerda, a edição da Globo de 1962, traduzida por Agostinho da Silva, em prosa. À direita, a edição da Relógio d'Água de 2015, traduzida por Manuel Cerqueira, em verso e bilingue.

Sobre a escrita e mesmo o conteúdo, é preciso ter em atenção que tem mais de dois mil anos, e muito do que se escreve e modo como se escreve está bastante ultrapassado. Não estamos a ler um livro de divulgação científica de hoje, nem sequer do século passado. A nossa admiração faz-se mais pela sua relevância histórica, pela visão e antecipação, e acima de tudo pela liberdade de espírito na concepção de ideias desligadas do poder vigente. Não foi por mero acaso que o livro quase "se perdeu" durante 1500 anos. Por outro lado, como diz Greenblatt no final da sua obra de homenagem a Lucrécio, o trabalho deste foi concluído, os seus escritos deram frutos, os seus sucessores criaram todo um novo mundo, as ideias deram novas ideias, o seu livro foi ultrapassado e pode agora regressar a meros átomos.

Para finalizar. O livro está dividido em seis grandes capítulos, denominados de Livros, que alguns estudiosos intitulam da seguinte forma :

  1. Os constituintes permanentes do universo: átomos e vazio
  2. Como os átomos explicam os fenómenos
  3. A natureza e mortalidade da alma
  4. Fenómenos da alma
  5. O cosmos e a sua mortalidade
  6. Fenómenos cósmicos

Desta listagem facilmente se depreendem três grandes partes — os átomos; a alma; e o Cosmos — que por sua vez se dividem entre dois grandes focos ou abordagens: o que lhes dá vida e o que os conduz à morte. Tudo é feito de vida e morte, constituindo o ciclo que sustenta tudo aquilo que somos, aquilo que nos dá vida, e aquilo que constitui o Universo.

fevereiro 25, 2020

O Viés de Lucrécio

“The Swerve: How the World Became Modern” é um livro de divulgação científica centrado na teoria dos estudos literários que defende a obra “Da Natureza das Coisas”, de Lucrécio, como um dos principais motores do período da Renascença e consequentemente da Ciência, apontando o poema como pilar da criação do mundo moderno. O poema de Lucrécio foi publicado por volta de 55 a.C, sendo que a razão pela qual se sugere esta relação com o renascentismo tem que ver com o facto de ter praticamente desaparecido durante toda a Idade Média, tendo sido apenas recuperado em 1417 por Poggio Bracciolini, num mosteiro alemão, a partir do qual se fariam as cópias que o trariam até nós. Sendo um livro de divulgação, Stephen Greenblatt escolhe como foco exatamente Bracciolini, e toda a história em redor da redescoberta de “De Rerum Natura”, criando um livro de não-ficção romanceado, fazendo lembrar muitas vezes Umberto Eco e Dan Brown. O relato teve direito a Pulitzer e National Book Award, ambos na categoria Não-ficção.
Começar por dizer que a teoria — impacto de Lucrécio na Renascença — não é invenção nem descoberta de Greenblatt, é antes parte de uma corrente de estudos que se têm dedicado a compreender o modo como surgiu, desapareceu e voltou a aparecer na história o poema de Lucrécio. Assim no campo académico podemos aprofundar a discussão nos livros “The Cambridge Companion to Lucretius” (2007) editado por Stuart Gillespie e Philip Hardie e no livro “The Return of Lucretius to Renaissance Florence” (2010) de Alison Brown. Sendo este tipo de trabalho realizado a um nível interpretativo, como não podia ser de outro modo, já que não é possível aferir o que teria pensado, e até mesmo lido, cada um dos grandes nomes da Renascença, acaba sendo uma teoria dada a grande discussão. Ou seja, os estudiosos podem evocar Lucrécio em inúmeros autores, tendo alguns citado diretamente a obra Lucrécio, como acontece em Montaigne, mas não podem oferecer evidências concretas do impacto das ideias de Lucrécio nesses autores, e menos ainda em todo um movimento que demorou séculos a surgir, tendo o mesmo iniciado-se antes desta descoberta, com grandes obras como a “Divina Comédia” (1321) de Dante. Contudo, isso não faz da teoria algo menos interessante, relevante, e ainda menos apelativa. Na verdade, o conteúdo da mensagem de Lucrécio está completamente sintonizado com as razões que suportaram o surgimento da Renascença e nos daria depois o Iluminismo. Leiam-se as principais ideias subjacentes a “De Rerum Natura”, listadas por Greenblatt:
. “Everything is made of invisible particles”.
. “The elementary particles of matter-"the seeds of things"-are eternal.”
. “The elementary particles are infinite in number but limited in shape and size.”
. “All particles are in motion in an infinite void.”
. “The universe has no creator or designer.”
. “Everything comes into being as a result of the swerve.
. "The swerve is the source of free will."
. "Nature ceaselessly experiments."
. "The universe was not created for or about humans."
. "Humans are not unique."
. "Human society began not in a Golden Age of tranquility and plenty, but in a primitive battle for survival."
. The soul dies."
. There is no afterlife."
. “Death is nothing to us.”
. “All organized religions are superstitious delusions.”
. “Religions are invariably cruel.”
. “There are no angels, demons, or ghosts.”
. “The highest goal of human life is the enhancement of pleasure and the reduction of pain.”
. “The greatest obstacle to pleasure is not pain; it is delusion.”
. “Understanding the nature of things generates deep wonder.”
Sobre o conjunto das ideias aqui expressas, podemos dizer que formam o núcleo do Humanismo, ou seja da herança prestada pelo Iluminismo que nos daria a Revolução Industrial, e tal como diz Greenblatt, “o mundo moderno” que hoje conhecemos. Por isso, podemos até desconfiar do suporte científico à teoria, dos académicos das ciências literárias, mas não podemos deixar de lhe reconhecer sentido e mérito. O "swerve" era para Epicuro (autor grego seguido por Lucrécio, de quem restam poucos registos) o viés no movimento dos átomos, que originava variação e alteração, impossível de prever e que desse modo restringia a possibilidade determinística, criando o acaso, abrindo lugar ao livre arbítrio. Greenblatt, não perde a oportunidade de ligar esse "swerve", ao modo como "De Rerum Natura" desapareceu e voltou a surgir no nosso mundo por um grande acaso.

Posto isto, tenho de dizer que aquilo que mais me espantou, nos múltiplos ataques realizados a Greenblatt, não foram a propósito da fragilidade da teoria, mas essencialmente a propósito da linguagem, da falta de rigor, e nomeadamente falta de respeito pela Idade Média. Mas à medida que fui lendo os ataques fui percebendo que tínhamos ali algo além desse não reconhecimento. É sabido que nas últimas décadas tem existido um enorme movimento para recuperar a história da Idade Média e apresentar a mesma como um período que não terá sido tão mau como nos quiseram fazer crer no passado recente. Tenho de dizer que simpatizo com este movimento, porque por muito pouco que se tenha feito, fez-se, foram 1000 anos de vivência que nos trouxeram a um segundo grande milénio, por isso nem tudo pode ter sido mau. Contudo, quando começo a ver académicos a embandeirar excessivamente em defesa da Idade Média, fico de pé atrás. As evidências são tão avassaladoras que não é sustentável qualquer comparação mínima entre esse período, o anterior (Grécia e Roma antigas) e posterior (Renascimento).

Diagrama criado por Emil O. W. Kirkegaard, em 2017, a partir da obra historiográfica "Human Accomplishment: The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C. to 1950" (2003) em que Charles Murray lista cerca de 4000 individualidades que marcaram a nossa História, e no qual se vê o declínio da Europa, restando a história destes séculos nos ombros da China e Arábia. Para os que desconfiam da honestidade de Murray, podem sempre verificar os dados no Pantheon do MIT.

Tenho de dizer que os ataques promovidos em várias recensões do livro, em revistas internacionais de referência, são no mínimo ridículos, e só consigo pensar que quem o faz, o faz como forma de defesa da religião, nomeadamente do cristianismo. O que faz sentido, já que é à religião que temos de pedir contas por muito daquilo que seria toda aquela escuridão. Impressiona ver como o ano zero marca o declínio do Império Romano, ao que se sucederiam mil anos de completo vazio em toda a Europa. Se analisarmos listas dos feitos civilizacionais, da arquitetura à filosofia e ciência veremos a pujança dos Império Egípcio, seguido do Grego e Romano, ao longo de 3000 anos, e depois disso temos um ano zero em parece que tudo termina, e temos de esperar 1000 anos para ver novamente o ser humano a florir. Claro que Greenblatt põe o dedo na ferida, nem poderia ser de outra forma, pois olhando a lista de ideias de Lucrécio, expostas acima, torna-se muito simples compreender o que terá acontecido ao livro, e a razão porque terá praticamente desaparecido durante aquele período. Não posso deixar de me rir com a resposta que o próprio Greenblatt deixa como comentário a um desses ataques:
"I plead guilty to the Burckhardtianism of which John Monfasani accuses me.  That is, I am of the devil’s party that believes that something significant happened in the Renaissance.  And I plead guilty as well to the conviction, regarded by my genial and learned reviewer as ‘eccentric’, that atomism – whose principal vehicle was Lucretius’ De rerum natura – was crucially important in the intellectual trajectory that led to Jefferson, Marx, Darwin, and Einstein." (Reviews in History, 2012)
Compreendo que incomode os académicos, e não académicos, religiosos. Basta ver algumas das recensões que se encontram aqui no Goodreads ao próprio “De Rerum Natura”, o modo como se evocam os argumentos mais ridículos para destruir Lucrécio. E desse modo percebemos, como passados 2000 anos mudámos pouco e continuamos a debater-nos com os mesmos problemas. Por isso, não admira toda a polaridade política que grassa na América do Norte e do Sul, e que aos poucos tem procurado entrar na Europa. O conhecimento, a ciência, estão ao alcance de qualquer um, mas dão trabalho e não é são recompensas imediatas, falta-lhes o autoritarismo, a submissão e as hierarquias, falta-lhes estrutura que sustente as pessoas em grupos, o lado social e mesquinho. Nada interessa mais às pessoas do que fazer parte do grupo, de acreditar no mesmo que acredita o vizinho, mesmo sabendo que não é verdade, é preferível estar no mesmo barco, e ir ao fundo acompanhado, do que ficar sozinho.

Voltando a "Swerve", tenho de dizer que ao longo da experiência da leitura, e à medida que fui entrando mais e mais dentro de Lucrécio, a ponto de ter começado a ler o livro que já queria ter lido, mas tinha tido receio pela sua complexidade, fui sentindo que muito daquilo que me fez entrar no mundo da ciência, nomeadamente por via de Carl Sagan, já estava aqui, em Lucrécio. Respira-se um mundo feito de ideias, de argumentação e contra-argumentação, sustentado nas evidências e hipóteses. Um dos momentos mais altos surge perto do final quando Greenblatt introduz a reverência e carinho de Montaigne por Lucrécio e pensamos, sentimos, vemos, como o poema, o poema didático de Lucrécio, foi também responsável pela criação da forma do Ensaio. Como chegariam as suas ideias a Newton, Darwin e Einstein. Enquanto lia as palavras de Lucrécio só pensava no fascínio que tinha sentido recentemente ao ler Mlodinow ou Rovelli e no pouco de novo que estes afinal nos tinham trazido, ainda que sustentados em melhor ciência, face ao que Lucrécio e Epicuro anteciparam há mais de 2000 anos. Impressiona este andar em círculos, mesmo sabendo que o conhecimento verdadeiro só se constrói pela continua insistência e demonstração, porque perturba perceber o quanto é preciso lutar contra muitos daqueles que continuam a viver na obscuridade e a tudo fazer para que os outros com eles padeçam da mesma cegueira.