Nos últimos anos temos assistido ao redescobrir da Europa Medieval por meio de muitos académicos historiadores que nos têm vindo a alertar para o facto das ideias do senso comum sobre a idade média não estarem corretas. É corrente encontrar na literatura, cinema ou jogos a idade média representada como um tempo de escuridão, sujidade e podridão assim como falta de educação, superstição e ignorância. Ora isto parece não encontrar paralelo na história real, aquela que tem vindo a ser estudada e aprofundada. "The Bright Ages: A New History of Medieval Europe" (2022) é apenas o mais recente exemplo deste trabalho de elucidação histórica a ser publicado. Ajudou-me a compreender melhor as motivações e a necessidade desta revisão da História, e ainda que tenha ficado com dúvidas sobre os avanços cultural e científico desta época, fiquei com poucas dúvidas sobre a hipérbole de trevas como temos representado este período em termos populares.
Tendo em conta que a Idade Média pode ser balizada de formas muito distintas, interessa dizer que Matthew Gabriele e David M. Perry, historiadores americanos, a definem como o período que vai do ano 476, séc. V, com a deposição do imperador Romulus Augustulus, até á publicação de "A Divina Comédia" em 1320, séc. XIV. Ou seja, o livro abre com a princesa Galla Placida, uma herdeira do império romano casada com o Rei dos Visigodos em Espanha, que soube unir e reinar, tendo deixado um mausoléu em Ravenna que é uma jóia da arquitetura e pintura mural. E depois fecha com Dante que nos legou a mais importante obra italiana, e uma das mais importantes de toda a literatura, na qual podemos ver o racional humano a iniciar o seu processo de fuga às amarras do cristianismo, abrindo caminho para o Renascimento.
Uma das grandes questões que tem servido para criar esta falsa ideia das Trevas tem que ver com a análise da Europa como ovo fechado. Ora isto não faz qualquer sentido, uma vez que as relações com os povos árabes não desapareceram, assim como com os povos asiáticos. O que sabemos é que durante este período esses povos se encarregaram do progresso científico e cultural de que a Europa fazia uso. Ou seja, na verdade os Europeus pouco criaram durante este interregno de 1000 anos (ver gráfico abaixo), mas não viveram muito pior porque os outros povos continuaram a criar e a partilhar com a Europa. Deste modo, uma boa parte dos feitos apresentados neste livro têm origem nestes povos, sendo depois partilhados e vertidos para a Europa.
Um dos casos mais paradigmáticos disto é exatamente o da Península Ibérica, a que os autores dão grande relevo, não se focando na mera reconquista pelos reis portugueses e espanhóis mas naquilo que foi a vida na península, entre o fim dos Visigodos destronados pelos árabes no início dos anos 700 e a expulsão dos judeus em 1492. Os autores evocam para a definição desse tempo o conceito "Convivencia", do académico espanhol Américo Castro, ilustrando um dos poucos períodos em que foi possível ter no mesmo lugar uma sociedade harmoniosa de cristãos, muçulmanos e judeus vivendo e convivendo uns ao lado dos outros. Repare-se como tudo isto termina com o início do período das Descobertas, do chamado renascimento ibérico, colocando assim em evidência um erro de análise no contraste entre o Medieval e o Renascentismo.
Os autores dão conta de vários outros episódios relevantes, mas esta possibilidade de Convivência foi para mim o mais marcante, não só porque seria daqui que surgiria o redescobrir de Aristóteles por parte da Europa, mas também porque acredito que talvez tendamos a qualificar os tempos, a História, apenas em função dos melhores, dos mais audazes, dos que ganharam, e não da efetiva qualidade da vida dos povos concretos. Visto à distância, e talvez com alguma ingenuidade, podemos pensar que na Idade Medieval se deu mais importância a uma slow life.
Quanto às minhas dúvidas sobre os feitos culturais e científicos desta era, vou ainda ter de ler "The Light Ages: A Medieval Journey of Discovery" (2020) do historiador britânico Seb Falk.
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