Fui apanhado completamente de surpresa, não conhecia “O Clã do Urso das Cavernas” (1980) de Jean M. Auel, descobri-o porque procurava obras de ficção histórica, mas acabei descobrindo algo mais porque esta é uma obra de ficção científica, não num sentido futurista ou espacial, mas no de ficcionar o conhecimento científico sobre um passado muito distante. O livro que inaugurou a série “Filhos da Terra”, constituída por 6 livros que venderam mais de 45 milhões de volumes, foca-se na vida quotidiana de duas espécies humanas, o Neandertal e o Sapiens, há cerca de 30.000 anos, altura em que os neandertais se aproximavam da extinção e o Sapiens iniciava a conquista da Europa e do mundo. Apesar de ser um livro de ficção, o trabalho é extensivamente fundamentado em conhecimento existente nos anos 1970 das áreas da Arqueologia, Paleontologia e Antropologia. Como se não bastasse, muitas das ideias de Auel aqui apresentadas têm-se mantido relevantes em face das novas descobertas arqueológicas ao longo dos últimos 50 anos.
O livre abre com Eila (Ayla), uma menina de 5 anos apanhada de surpresa por um terramoto que conduz toda a sua comunidade de sapiens à morte e a deixa sozinha a vaguear por um mundo inóspito durante dias até que uma outra comunidade, de neandertais, a encontra e decide, ao fim de muita deliberação, acolhê-la no seu seio. Toda a história se foca depois no choque cultural e biológico entre as duas espécies.
Quando o livro saiu, foi aclamado por muitos académicos das áreas pela proximidade com o conhecimento existente, pelo labor da autora no aprofundar do que se sabia e do extrapolar dessas pistas para o que terá existido. Houve também alguns ataques à sua obra, nomeadamente por causa da procriação cruzada entre espécies que foi vista como uma tolice, mas que mais recentemente, a meio da década de 2010, graças a novas tecnologias de análise da paleontologia, foi descoberto como sendo uma realidade. Tom Higham, que é uma das maiores autoridades da atualidade na matéria, publicou no passado, “The World Before Us: How Science is Revealing a New Story of Our Human Origins” no qual cita mesmo o trabalho de Jean M. Auel. Nada propriamente novo para a autora que se tem rodeado de especialistas de todas as áreas. Veja-se por exemplo a entrevista que Chris Stinger para o Natural Museum de Londres, o promotor da ideia do surgimento do Homo Sapiens a partir do continente africano, e o maior especialista atual no homem de Neandertal, em que este fala de igual para igual com Auel.
Estando agora a ler a obra de Tom Higham, não consigo deixar de pensar nos processos narrativos usados por Auel para imaginar e criar um mundo desconhecido, e nos processos científicos usados pelos investigadores para chegar a factos concretos. Porque os trabalhos não se distanciam tanto como poderíamos pensar, já que ambos se baseiam num conjunto de factos para chegar a conclusões. A paleontologia trabalha hoje com as mais modernas tecnologias de análise molecular que permitem chegar a sequências de proteínas, isótopos de carbono, nitrogénio e oxigénio, DNA, via técnicas como o ZooMS (Zooarchaeology by Mass Spectrometry) em pedacinhos de esqueleto, a partir do que conseguem estabelecer: se o osso é humano; a espécie de humano; a era em que viveu; o clima em que viveu; a idade com que morreu; a comida que comia; etc. etc. Obviamente que quando refletimos concretamente sobre todos estes factos, percebemos que eles estão a ser extraídos a partir de uma enorme cadeia de conjecturas, relações e convenções que entretanto fomos criando e validando. É ciência, é informação factual, mas é-o à luz das técnicas atuais e do conhecimento atual. O conhecimento que detemos vai mudando, os factos ou a verdade hoje sobre o nosso passado já foi distinta no passado e pode mudar no futuro. Contar uma história não é fazer ciência, mas a ciência usa muito daquilo que usamos nos processos de contar histórias para se poder afirmar. A verdade da ciência não existiria se não fossemos capazes de extrair e criar conclusões dos factos avulso que vamos descobrindo. Daí que não seja uma surpresa assim tão grande, quando percebemos que as extrapolações de Auel, assentes no conhecimento à data, tenham conseguido ser acertadas ou confirmadas ao longo dos anos.
Por isso, não deixa de ser relevante saber que Jean M. Auel (1936) se licenciou nas áreas da gestão, trabalhou em empregos administrativos, teve 5 filhos, até que em 1977 se começou a interessar pelo assunto. E ainda não menos impressionante, não existindo internet, Auel revela como fez toda a sua pesquisa com base na biblioteca da cidade onde vivia, não só para a escrita do mesmo, mas também para aprender como se escrevia uma história, as técnicas narrativas, e depois ainda como se publicava um livro. Ela diz que os 6 livros estiveram presentes desde o início, já que o seu esboço inicial era gigantesco e impossível de colocar num livro apenas. Mas Auel não limitou a sua abordagem ao conceptual e teórico, realizou vários cursos de sobrevivência, incluindo técnicas de fazer fogo, curtir couro e esculpir pedra. Depois do sucesso deste primeiro livro, Auel viajou aos principais locais arqueológicos em vários pontos do globo, e conversou com a múltiplos investigadores da área.
“O Clã do Urso das Cavernas” é uma viagem sublime ao nosso passado. Sublime no sentido científico, pelo modo como nos abre a janela para um mundo perdido e nos ajuda a imaginar como terá sido o nascimento da espécie humana que representamos hoje. Já em termos efetivos, o descritivo nem sempre é aquele que desejaríamos, dada a brutalidade, mas não deixa de ser efetivo na colagem a muitos dos resquícios de que são ainda hoje feitas as comunidades humanas. Auel coloca uma enorme ênfase na diferenciação entre Homem e Mulher, e nota-se claramente o facto de a autora ser mulher. Por vezes, custa a acreditar, e no entanto muitas outras vezes cremos completamente no que nos é apresentado, justificando de onde viemos, como chegámos aqui.
Em contraponto final, dizer que vi há muitos anos o “Quest for Fire” (1981) de Jean-Jacques Annaud, e ainda que focado num tempo anterior, 80.000 anos atrás, me tinha deixado com uma imagem excessivamente primitiva do que fomos. Naturalmente que aqui os média influenciam bastante. Ou seja, os neandertais para comunicar, por não terem um aparelho fonador tão desenvolvido, recorriam ao gesto. Ora isto torna muito difícil o processo de apresentação audiovisual, que no limite precisa de recorrer à legendagem, mas acaba a dar conta de seres bastante embrutecidos. Em Auel a brutalidade também está presente, mas como viajamos dentro das cabeças dos personagens, o mundo acaba sendo muito mais claro para nós, já que podemos perceber em muito maior detalhe as origens dessa brutalidade, o medo do desconhecido, a relação com os animais, a natureza e o consequente misticismo que surge para dar sentido ao mundo imenso que os rodeia.
Se a história sofre de clichés, não esquecer que pertence ao imaginário dos anos 1980, o mais importante é mesmo a viagem por um mundo que já não podemos experienciar, ainda que muitos dos seus resquícios continuem a ser encontrados, como relata mais um artigo de hoje na Science. Este é um livro que dificilmente esquecerei.
Essa série fez as minhas delícias nos meus 20-30 anos, embora a partir de uma certa altura, os clichés de que falas se tenham tornado bastante excessivos, assim como os livros algo repetitivos e pr vezes mesmo quase a resvalar para o romance de cordel, o que foi uma pena.
ResponderEliminarNão podemos ter tudo. Auel faz um trabalho notável de construção do mundo físico, social e psicológico, por isso a estrutura de conflitos e consequências acaba por ser um parente menos bem tratado.
ResponderEliminarMas do que li, nos restante livros piora bastante sim, por isso fico na dúvida se continuo a leitura :)