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dezembro 08, 2020

Um rapaz de púrpura

A primeira vez que vi “Purpleboy” (2019) senti uma enorme inquietude que fez surgir a necessidade de ir mais ao fundo do filme. Procurei o realizador, o Alexandre Siqueira, que prontamente respondeu. Não queria explanações, queria antes compreender melhor quem era, de onde vinha e como tinha chegado a “Purpleboy”. A conversa levou-me a descobrir a obra “Viagem solitária - memórias de um transexual 30 anos depois” (2011) de João W. Nery, que decidi ler. “Purpleboy” não é uma ilustração de “Viagem solitária”, tem muitas pontes de contacto, mas são duas obras completamente autónomas. Ao rever o filme, senti-o ganhar densidade dentro de mim. Na primeira vez, não conhecia sequer o tema do filme, não estava preparado para entrar num mundo tão distante e ao mesmo tempo tão sensível e provocativo.

“Purpleboy” é uma obra curta em duração, mas extensa em argumento, muito é apresentado de forma apenas simbólica, por isso o espectador tem de ir atrás. Se o fizer é fortemente recompensado. Não só pelo significado, mas essencialmente pela imersão. O mundo criado pelo Alexandre está carregado de detalhe, por isso a atenção e o investimento na desconstrução é fundamental. O mundo representa-se por meio de uma mescla entre a fábula e o onírico, existindo momentos que roçam o puro surrealismo, mas que uma contemplação mais apurada acaba permitindo ao espectador adentrar e imergir ainda mais.

“Purpleboy” fala de transexualidade, mas fala também de uma busca de si na relação com o mundo e com a família. Alexandre utiliza um conjunto de metáforas poderosas — nomeadamente a escolha pela germinação na terra, com as partes visíveis e as partes escondidas, a proteção dos cuidadores e a dificuldade em sair, mostrar-se e afirmar-se — que envolve num cenário muito particular, o da ditadura no Brasil. O criador experienciou o final dessa era no Rio, o que o aproxima das memórias relatadas por João W. Nery, mas o cenário não é mera crítica política, serve na demonstração da força impositiva de padrões que nada reconhece além da normatividade.

O cuidado na animação é particularmente conseguido, já que não serve a mera dinâmica de cena, ou enquadramento de ação, mas antes imbui cada novo movimento de significado. Daí a necessidade de atenção do espectador, muito do que é dito apresenta-se em breves momentos por pequenas ações — o corte de relva, o invadir do lago de lágrimas, a flor que pinga ou as formigas que explodem — que parecem querer dizer apenas o que mostram, mas denotam muito mais. É claramente este uso da arte da animação que confere particularidade ao trabalho de Alexandre, algo que poderão entender melhor se virem a Masterclass que deu em dezembro passado em Ljubljana, Slovenija. É este trabalho que explica a lista de nomeações e prémios que o filme foi recebendo em festivais por todo o mundo — do Anima - Brussels Animation Film Festival ao Rhode Island International Film Festival, passando pelo Curtas Vila do Conde ou ANIMAGE International Animation Festival de Pernambuco.

dezembro 04, 2020

Animação: Smashing Pumpkins "In Ashes"

Saiu hoje o último episódio da a série de animação"In Ashes" (2020), com a música "Purple Blood" dos Smashing Pumpkins. Em tempos de pandemia, e na impossibilidade de filmar telediscos, a banda resolveu produzir toda uma série de animação em cinco episódios para o lançamento do novo álbum "Cyr". A série trabalha um mundo de ficção-científica e é apresentada em 2D, ainda que se sirva de um conjunto de outros suportes, tais como o 3D, mas mantendo o efeito de ilustração analógica. Esta relação particular com a arte fílmica não é novidade nesta banda, pois em 1995 já nos tinham oferecido um revisitar do filme "A Viagem à Lua" de Méliès, na forma de teledisco de "Tonight, Tonight". 

Billy Corgan escreveu a história e disse que "embora seja (na sua maioria) alegre, 'In Ashes' aborda muitas coisas que enfrentamos todos os dias, e se vivemos numa distopia, no paraíso, ou em ambos, a escolha, dizem alguns, é tua; e pode até mesmo ser uma mera questão quântica." A história da série serve de mote para o tom pretendido para o álbum que segundo Corgan se caracteriza como “a dystopic folly”.
Podem encontrar mais informação sobre o desenvolvimento técnico no AWN

Cada um dos episódios serve uma música do álbum, mas a animação não funciona como ilustração musical, antes a série funciona como filme completo, funcionando muito bem em sucessão. Tecnicamente a animação não é muito detalhada, mas a ilustração e a música compensam, criando uma belíssima experiência. Fica o último episódio, e abaixo a lista com links para os 5 episódios.

março 14, 2020

COVID-19: comunicação de ciência

Nos últimos dias, quase todos vimos o diagrama animado "Flatten the Curve" (alisamento da curva), que relaciona o número de doentes com COVID-19 com o capacidade de resposta dos hospitais em cada momento. A razão porque o temos visto tantas vezes tem mais que ver com comunicação de ciência do que com ciência. Ou seja, o gráfico foi um dos melhores elementos de comunicação multimédia elaborados nas últimas semanas para o combate preventivo requerido por médicos e investigadores.
Gráfico 1, baseado numa proposta preventiva para evitar o que aconteceu em Itália e Wuhan

O diagrama surgiu pela primeira vez no dia 8 de março na revista online, The SpinOff, da Nova Zelândia, num artigo escrito pela professora de microbiologia Siouxsie Wiles, no qual dava inicialmente conta do surto na cidade de Wuhan, recorrendo a gráficos científicos, como os abaixo. Após essa discussão, propunha uma resposta comunitária, baseada num artigo de Anderson et a. (2020), publicado na Lancet, mas também em práticas que vêm sendo propostas há décadas, e que consistia na ideia de todos contribuirem, aumentando os cuidados de higiene, para assim se conseguir baixar ou alisar a curva de casos, para que os hospitais conseguissem dar resposta a todos os doentes graves em tempo útil. Essa solução foi então trabalhada pelo ilustrador Toby Morris, acabando no gráfico que hoje todos conhecemos como "Flatten the Curve" (no topo).
Gráfico com os dados do surto do vírus em Wuhan. Para consumo de especialistas.
Gráfico criado a partir das ações de controlo do surto em Itália. Para consumo de especialistas. [Fonte]

Da análise do diagrama animado e comparativo com os gráficos criados exclusivamente por investigadores para consumo da comunidade científica, temos vários pontos a salientar:
  1. Simplicidade: diminuição da quantidade de informação presente em redor das curvas do gráfico.
  2. Movimento: a animação torna realista o efeito no tempo da mensagem, produzindo evidência e eficácia comunicativa.
  3. Forma gráfica: uso de traço e cor cartoonescos, criam proximidade e reconhecimento de formas, levando a crer que é algo que podemos compreender.
  4. Empatia - Por fim, não se limitaram a apresentar as duas curvas, introduzirem dois personagens que servem para dar indicações, mas mais do que isso, servem para criar empatia com algo que é profundamente abstracto, os diagramas e números.
O gráfico tornou-se representativo das políticas de ataque e prevenção sendo hoje usado como ilustração das mesmas pela Wikipedia, na página que reune toda a informação sobre a pandemia. Entretanto, como surgiram vários questionamentos sobre esta resposta preventiva, nomeadamente sobre a intensidade de ação e efeitos no tempo, Wiles voltou a trabalhar com Morris, agora baseados nos modelos usados por Singapura, Coreia do Sul e defendidos por movimentos internacionais como #StayTheFuckHome. Para tal, adaptaram o primeiro gráfico para ilustrar o impacto de diferentes medidas no tempo, intitulado Stop The Spread (ver abaixo), que foi publicado hoje no TheSpinOff.
Gráfico 2, baseado em modelos preventivos implementados por Singapura e Coreia do Sul.

dezembro 26, 2019

Isolamento social animado em plasticina

“Facing It” (2018) é um filme de animação de estudante brilhante que além de apresentar uma história atual e impactante, recorre a um conjunto muito diversificado de técnicas de animação, misturando múltiplos media, para dar conta do sentir dos personagens. A curta é o resultado do projeto final do mestrado em Direção de Animação, National Film and Television School (UK), de Sam Gainsborough, depois de se ter licenciado em Screenwriting for Film and TV na Bournemouth University, em 2013. Ao longo do ano passado o filme foi galardoado com imensos prémios e nomeações.
Tecnicamente temos: pixilation, plasticina, chromakeying, motion tracking e rotoscoping. Os personagens são pessoas reais, filmadas com máscaras e marcadores faciais, em movimentos adaptáveis ao stop-motion do filme. Os grandes planos foram novamente filmados com fundo verde, para servir o rotoscoping e mistura com a plasticina. Os marcadores da face foram usados para a substituição das expressões, via motion tracking, com as animações criadas em plasticina.

É um trabalho audiovisual impressionante, pela mistura de técnicas que requerem competências muito distintas, e pelo resultado final imensamente conseguido em termos de coerência estética. Não só as técnicas foram fundidas sem deixar rasto, como a cinematografia e a cor trabalham em perfeita sintonia para fazer passar a história de Gainsborough. Vale a pena ver o making of, depois do filme, e ler a entrevista no Director's Notes.
No meio de tudo, gostei particularmente da técnica utilizada na modelação da plasticina, no modo como as dedadas em vez de serem limadas, para se tornarem invisíveis, são enfatizadas para oferecer textura e expressividade à superfície plástica. Em certos momentos, nomeadamente quando animados, o modo como Gainsborough trabalha os rastos das dedadas fazem lembrar as texturas produzidas pelas pinceladas de Van Gogh.


"Shaun always feels separate and isolated from the confident, happy world around him. Whilst waiting for his parents in a busy pub, Shaun struggles valiantly to join in with the admirably happy people in the crowd, but the more he tries, the more he goes awry. As everything in the pub goes from bad to worse, Shaun finds himself confronted by the painful memories that made him who he is. His feelings, memories and desires overwhelm him and by the end of the evening he is ready to explode…"

dezembro 23, 2019

O tio e a génese da arte de Regina Pessoa

Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”

Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.



Algumas referências 
O Expressionismo Animado na Obra de Regina Pessoa. (2013). Eliane Muniz Gordeeff
Uncle Thomas: Accounting For the Days by Regina Pessoa. (2019). by Olga Bobrowska
Regina Pessoa and Autobiographical Animation (2019). Marie Mello

novembro 24, 2019

Como se vive sem reconhecer rostos?

Um pequeno, mas intenso, filme de animação põe em evidência um conjunto imensamente relevante de temas que vão do bullying e discriminação à tomada de consciência de patologias neurológicas como a prosopagnosia (não reconhecimento de rostos), passando pela importância da comunicação de ciência, da comunicação audiovisual e animação, assim como dos efeitos da arte na auto-estima. Tudo isto está contido nos 5 minutos da animação "Carlotta's Face" (2018), criada por Valentin Riedl, um neurocientista alemão com interesse em cinema, com a ajuda do animador Frédéric Schuld.
O filme é curto e simples, socorre-se essencialmente do relato na primeira-pessoa de alguém que padece da doença, centrado nos problemas experienciados ao longo da vida, com particular destaque para os tempos da escola. Contudo, a ilustração é soberba, sendo capaz de ilustrar por meio de diferentes metáforas o que sente alguém incapaz de reconhecer rostos, mesmo o seu próprio.
Tendo em conta a particularidade da doença, fica imenso por dizer, muito sobre o que podemos especular, surgindo para mim a maior questão de todas: como sente alguém empatia sem conseguir reconhecer rostos?



Filme acedido via Short.
Mais informação no site do filme.

agosto 01, 2019

Animação: sentindo uma constipação

A história de uma constipação a partir do ponto de vista do nosso cérebro. O que pensa e imagina o nosso cérebro durante todo o processo de uma constipação, desde que começa a espirrar, passa a pingar do nariz, dor de garganta e sufoco, até que se liberta. Seoro Oh recorreu a uma história que todos conhecemos para dar conta de um mal de que padece — a rinite —, transformando assim num processo visual tudo aquilo que lhe atravessa a mente durante os piores momentos da doença. A animação "(oo)" (2017)



O trabalho de ilustração, animação, montagem e sonorização são de enorme qualidade criando assim a partir de um pequeno filme um mundo particular mas forte capaz de deixar uma impressão nos espectador. Entrevista com o autor.

"(oo)" (2017)  de Seoro Oh

maio 30, 2019

Ciência do movimento visual

Por esta altura já todos percebemos que vivemos numa realidade criada pela nossa cognição, montada sobre muitas ilusões, desde a história do vestido azul e dourado às imagens estáticas que se movem, passando pelos vieses cognitivos, tudo distorções sobre o modo como interpretamos o real que decorrem da ligação entre os nossos sistemas perceptivo e cognitivo. Contudo existe sempre espaço para novas surpresas e esta que a Wired nos traz agora é bastante interessante, nomeadamente para todos os que trabalham no domínio da imagem em movimento, particularmente em animação.



No vídeo podemos ver como o processamento visual das imagens na mesma frequência do movimento, permite aceder movimentos completamente distintos, incluindo alterações de direção de movimento. Claro que quem trabalha no audiovisual já viu isto, basta pensarem na última vez que filmaram uma roda de bicicleta ou de um carro, ou quando filmamos plataformas giratórias como as dos parques infantis. Mas ver o efeito na água é não só mais instigante como nos permite compreender muito melhor o que está a acontecer com o nosso cérebro quando ele está a processar o movimento que recriamos por meio dos 12 ou 24 frames. A percepção capta as imagens e a cognição interpreta as mesmas, quando os objetos mudam de lugar, a cognição cria uma história mental que explica que estão em movimento e que esse movimento decorre numa determinada direção. Por isso, se na percepção ocorrer alguma variação incoerente pode acontecer que o nosso cérebro comece a ver movimentos contrários aos que estão verdadeiramente a acontecer.


"Inside the Science Behind This Crazy Water-Based Illusion" (2019) da Wired

janeiro 04, 2019

Ilustrar e animar a justiça e moral

Nem sempre é fácil compreender ou explicar conceitos como justiça e moral, muitas vezes carregados de preconceito e imaginários erróneos. O primeiro associa-se a tribunais, a juízes e advogados que acontece em salas escuras, com muito jargão à mistura e pouco clareza. O segundo, surge muitas vezes como lei emanada das religiões que pululam nas diferentes comunidades, parecendo fazer parte de um qualquer mantra transcendente e inacessível. No entanto, ambos formam o principal pilar de sustentação de qualquer comunidade, sem justiça nem moral, tarde ou cedo qualquer comunidade colapsa.




Nesta nova animação, "Hors de l'eau" (2018), de Simon Duong Van Huyen, Joël Durand, Thibault Leclercq, Valentin Lucas e Andrei Sitari, grupo de alunos da escola francesa GOBELINS, apresenta-se em apenas 8 minutos, uma parábola com macacos-japoneses que nos dá compreender o sentido de Justiça e Moral na sociedade, sem recurso a infografia, texto ou sequer diálogo. O comportamento aqui representado não é claramente o desta espécie de macacos, como foi já expresso em algumas reações ao filme, ele serve no entanto de veículo à representação do comportamento da nossa espécie.

Em relação à animação, a relatar que esta foi criada a partir de uma mistura entre fotografia real e ilustração 2d, o que lhe confere uma estética particular, com momentos extremamente bem conseguidos. Nomeadamente melhores na animação e na ilustração 2d, com alguns muito bons momentos na relação com a fotografia real, mas nem sempre porque o trabalho de unir animação e fotografia é complexo. Ainda assim, um trabalho excepcional, tanto do argumento como na componente estética final da animação.

"Hors de l’eau" (2018) da Gobelins, Facebook


Atualização 15.4.2019
Entretanto descobri que os macacos e a piscina natural de água quente são reais, existem mesmo na região de Yamanouchi, Nagano, Japão. O local é um parque protegido — Jigokudani Monkey Park — contudo muito fustigado por turistas, como se pode ver na imagem abaixo.


dezembro 28, 2017

"The Boat" (2015)

Trago uma novela gráfica interativa de 2015, "The Boat" de Matt Huynh, sobre a qual não tenho muito a acrescentar aos inúmeros textos e prémios granjeados. Contudo, a qualidade do trabalho impressionou-me tanto que não quis deixar passar a oportunidade de registar aqui a sua existência, e de algum modo continuar a promover o trabalho que continua tão atual como quando foi publicado.



"The Boat" (2015)

"The Boat" é uma adaptação do conto homónimo de Nam Le que nos fala da fuga de refugiados do Vietnam para a Austrália aquando a guerra em 1975. Inevitável pensar nos refugiados que hoje fogem da Síria para a Europa, é tudo tão similar, até a resposta dada pela Austrália foi tão similar. Contudo o sofrimento humano é o que mais nos arrepia, e esse fica bem plasmado na excelência do trabalho de ilustração de Matt Huynh.

Trailer

Do ponto de vista interativo existe pouco a ressalvar, usa-se a técnica de scroll muito em voga nos WebDocs, adicionando-lhe quatro pequenos ramos, também lineares, mas que acabam por gerar os únicos verdadeiros acessos de interatividade, já que no resto do trabalho se poderia aceder a toda a banda desenhada em modo não-interativo, recorrendo ao scroll automático proporcionado. No entanto o uso do scroll manual proporciona não apenas o controlo do ritmo da experiência narrativa, e o acesso aos ramos lineares extra, mas também confere feedback visual por meio de pequenos movimentos do fundo que vão seguindo a posição da nossa ação de scroll.

Podem experienciar online.

dezembro 02, 2017

O futuro do Audiovisual

No ano passado, uma equipa do motor de jogo Unity apresentou uma curta na Game Developers Conference 2016, intitulada "Adam: Episode 1" (2016). O impacto passou da conferência para a rede, deixando todos boquiabertos. A história tinha mistério, a intriga lançava múltiplas questões, mas foi o impacto do realismo da animação e da cinematografia, tudo renderizado em tempo-real, que mais impactou a comunidade. Algo completamente impensável pouco anos antes, o puro cinema virtual que Gaeta vinha falando. Se tudo isto já seria mais do que suficiente para o nosso espanto, a Unity resolveu adotar uma estratégia criada antes pela Blender com o seu modelo de Open Movies, e colocou online, de modo livre, todos os materiais utilizados no desenvolvimento do projeto, permitindo assim a quem o desejasse, continuar o mesmo. Como cereja no topo do bolo, quem resolveu pegar no projeto foi nada menos que Neill Blomkamp, o realizador sul-africano, que se internacionalizou com "District 9" (2009), tendo depois disso criado dois blockbusters, "Elysium" e "Chappie", sempre no género de ficção-científica.



Num qualquer momento do nosso futuro, começaram a retirar os corpos biológicos aos prisioneiros, e a carregar os seus seres em corpos de robôs.

Este pequeno resumo é suficientemente impressionante, tendo tudo para lançar discussões infindáveis sobre o futuro do cinema e audiovisual, sobre os seus aspetos relacionados com atores, cinematografia, tecnologia, vfx, mas também direitos de autor, entre muitas outras questões. Contudo, se fiz este post não foi tanto para discutir esses detalhes, que já não são novos no mundo das tecnologias 3d audiovisuais, mas antes para falar do que se seguiu a "Adam". Se o primeiro episódio criado pela equipa do Unity, que lançava a premissa, era instigante, os dois novos episódios — "Adam: The Mirror (episode 2)" e "Adam: Episode 3" — criados por Blomkamp, não ficaram nada atrás, antes pelo contrário, elevaram o nível para esmagador, verdadeiramente provocantes.

Aconselho vivamente verem os 3 episódios seguidos, mas preparem-se para a montanha-russa de sensações em cada um dos episódios. Não são questões novas para quem segue o trabalho de Blomkamp, contudo o facto de estar imensamente bem conseguido, aliado ainda ao facto de estarmos a ver algo criado em tempo-real, tudo ajuda na intensificação das sensações, e do reconhecimento. Se o primeiro e o segundo nos fazem pensar em "AI: Artificial Intelligence" (2001) ou "SOMA" (2015), este terceiro parece querer atirar-nos para os universos gótico-religiosos da série "Alien", particularmente do último "Covenant" (2017).


"Adam: Episode 1" (2016)

"Adam: Mirror (episode 2)" (2017)

"Adam: Episode 3" (2017)

novembro 14, 2017

Animação: "À Noite Eu Danço com a Morte"

Não tem grande história, é mais um filme de fim de curso francês, mas são seis minutos de puro deleite e encanto visual. "La Nuit Je Danse Avec La Mort" (2017) parte de uma aparente apologia das drogas para nos levar até à salvação pelo amor, mas a premissa acaba servindo para nos levar até à vertigem da imaginação, aos mundos alterados das realidade alternativas, psicadélicas e fantásticas.




Vincent Gibaud, formado na LISAA, conseguiu financiamento através de crowdsourcing, e juntou ao seu grupo de trabalho uma equipa de quase 50 pessoas para nos dar a ver esta pequena jóia da animação. Em termos técnicos, não temos nada de muito excecional, mas a coesão e a simbiose entre o que se mostra e pretende dizer é tão intensa que não conseguimos desligar do filme, nem depois deste terminar.

 "La Nuit Je Danse Avec La Mort" (2017) Vincent Gibaud

novembro 11, 2017

Animação portuguesa no i9

A animação "Macabre" de Jerónimo Rocha e João Miguel Real realizada em 2015, chegou à rede há quinze dias através do canal Dust, especializado em curtas de ficção-científica, tendo sido ontem objeto de destaque no i9, um dos sites de referência sobre tecnologias, inovação e ficção-científica. Se não fosse por mais nada, já mereceria o destaque aqui pelo modo como foi recebido na rede, apesar de que pela informação que consegui obter, o filme não ter tido grande sorte nos festivais. Estas duas abordagens, ou recepções são interessantes já que dão conta da ambivalência que senti ao ver o filme.




Começando pelos festivais, e pela estética da obra, podemos dizer que o filme atinge pontos bastante altos em termos de cenário, ambiente e atmosfera, muito à custa da ilustração e design de som, assim como da composição e enquadramentos. No campo da animação, estando longe da perfeição, oferece não raras vezes momentos bem conseguidos, que nos prendem e tornam credível toda atmosfera. Contudo o filme peca em duas componentes demasiado evidentes, a duração (19 minutos) e a estrutura narrativa. Poderia entender a vontade de estender a duração para ajudar à criação da emocionalidade de suspense, mas é claramente excessiva, acabando por obrigar os criadores a recorrer não apenas a redundâncias como a clichês, o que ainda a meio do filme já começa a fazer perder o interesse da audiência. A duração acaba por ter impacto na narrativa, nomeadamente porque por via da necessidade de enchimento do tempo acabam surgindo ideias gastas, imensamente vistas, sem ponta de originalidade e que mereciam ter ficado de fora. Porque se a elipse narrativa que segura a síntese da obra é muito boa, uma boa parte do trabalho criado para preencher o interior da elipse é, muito honestamente, mediano.

Ou seja, se o i9 e o Dust têm interesse no filme é pela elipse narrativa desenvolvida, que acaba por dar todo um sabor instigatório ao texto da obra, fazendo-nos refletir e voltar atrás no filme mentalmente para recuperar o que vimos, e voltar a sentir o todo mais intensamente. Mas diga-se, não era necessário o recurso a Escher para tal, ainda que pudesse ter surgido como homenagem, assim como não eram necessárias as quantidades de redundâncias que vão surgindo, parecendo os realizadores ter receio que o público não compreenda o que se vai passando. A premissa que segura a elipse é per se imensamente forte, e acredito que se o filme tivesse menos de metade da sua duração, tendo em conta a qualidade apresentada nas diversas componentes artísticas, teria conseguido chegar bastante mais longe em termos de reconhecimento.

"Macabre" (2015) por Jerónimo Rocha e João Miguel Real

novembro 07, 2017

Animação: "Eu Estou Aqui"

A componente visual é tão despida e a animação tão conseguida que para os mais desatentos pode parecer apenas mais uma pequena curta a falar de problemas existenciais. Mas, se pararem de seguir a história e mensagem, e atentarem no detalhe do que nos está a ser dado a sorver audiovisualmente, vão perceber a profunda mestria da arte da animação.




O que temos aqui é apenas uma pequena mancha branca que se movimenta, e sobre a qual se movimentam três traços principais, os olhos e a boca. É verdade que a voz é sumptuosa, rica em textura, cheia de dramatização, mas é a imagem que lhe dá o encanto, e faz o todo transcender-se. O modo como os olhos vão da indiferença à tristeza, e como a boca dá corpo às palavras que se vão ouvindo, tudo junto com o menear da cabeça ao ritmo do discurso, torna a animação praticamente hipnótica.

"I'm Here" (2016) de Eoin Duffy

Por outro lado, a mensagem é também muito forte, e vale a pena ver até ao final, ainda que o resultado possa sentir-se críptico, a sinopse — "Alone in an aging cosmos, a traveller’s pilgrimage comes to an end." — e uma segunda visualização ajudarão sem dúvida a chegar ao âmago da ideia.

setembro 27, 2017

Dos contos de fadas conservadores às alegorias progressistas

Nos últimos anos temos assistido a um progressismo acentuado nas temáticas dos filmes de animação de maior orçamento e sucesso, muitos dos quais têm ganho Oscars para Melhor Filme de Animação. A dar conta desta tendência na atualidade, temos um rumor que circula na rede a propósito de um projeto em que a Disney supostamente tem estado a trabalhar, que contará no papel de heroína principal com uma princesa lésbica. Entretanto, por estes dias surgiu também na rede um video-ensaio (ver vídeo abaixo) defendendo a teoria de que todo este progressismo se deveria aos impactos da mudança tecnológica operada no seio da animação, nomeadamente a mudança do uso de ferramentas analógicas de produção 2d para ferramentas digitais 3d. Ora, se concordo que a mudança ocorreu, tenho dúvidas que se deva ao 3d, apesar de se poder correlacionar no tempo.


Antes de entrar na discussão sobre a temática, deixar desde já claro que em termos de storytelling em concreto, ou seja da estrutura do contar de história, nada se alterou, ao contrário do que se pretende aqui avançar. Os modelos que estão a ser usados hoje pela Pixar são exatamente os mesmo que foram usados por Walt Disney, porque já assim os podemos encontrar na “Odisseia” de Homero. Nesse sentido, tentar apresentar o ritmo, pelo movimento audiovisual como provável responsável por esta alterações, demonstra um total desconhecimento do passado das artes narrativas. Dito isto, o ensaio faz um bom trabalho na enunciação das temáticas pré-Pixar e pós-Pixar, identificando as primeiras como contos de fadas conservadores e as segundas como alegorias progressistas. O ponto identificado pelo autor como de viragem, é o da primeira longa-metragem de animação 3D, criada em 1995, que é nada mais que o primeiro filme criado pela Pixar.

Apesar da Pixar hoje fazer parte do grupo Disney, assumiu-se em 1986 como empresa fruto de um spin-off da Lucasfilm, tendo como fundadores três especialistas em computação: Steve Jobs, Alvy Ray Smith e Ed Catmull. A empresa na altura dedicava-se à criação de ferramentas para animação 3d, e ia fazendo pequenas curtas que iam impressionando a comunidade. Só em 1995 conseguiram criar a primeira longa-metragem, tornando-se um marco para empresa e para o mundo da animação, pela inovação tecnológica ao serviço da arte. Desde 1995 até hoje, a Pixar lançou quase duas dezenas de filmes, sendo talvez a única produtora que até hoje nunca teve um flop nas bilheteiras (para saber mais, leiam o texto sobre o livro Creativity Inc.).

"Toy Story" (1995) de John Lasseter

Feita esta breve introdução à Pixar, podemos rapidamente identificar vários elementos que poderão ter contribuído para a mudança na agulha temática: produtora independente; o método de trabalho; e a formação de base tecnológica. O primeiro ponto, talvez o mais evidente, surge pelo facto de se tratar de uma empresa nova, pequena, que não só podia arriscar tematicamente, como não tinha modelos a seguir, além de que precisava de se diferenciar do Golias da animação que era a Disney. Se nada mais houvesse, só isto diz-nos desde logo que a Pixar se se quisesse afirmar na animação, teria que fazer diferente, e fez. Os animais da Disney são substituídos por brinquedos, mas todos têm uma individualidade própria, movendo-se por desejos e sentires, não dependendo de convenções, nem se importando em romper com tradições.

Relativamente ao método, a Pixar introduziu um sistema de criação muito particular, que horizontaliza os processos hierárquicos, incluindo os criativos. Desta forma, na Pixar não temos um diretor todo poderoso e visionário, mas este também tem de se submeter à avaliação interna pelos pares, que podem opinar de forma crítica, propondo alterações completas ao que está em curso. Deste modo as obras não são criadas segundo uma visão única, mas um conjunto de visões partilhadas sobre a realidade. De certo modo, podemos dizer que a Pixar operou uma democratização sobre o processo criativo, e que no caso o efeito acabou por ser progressista. Contudo, tenho dúvidas sobre o facto deste processo per se poder ser responsável por esse progressismo, pois acredito estar mais relacionado com as pessoas envolvidas, o que me faz passar ao terceiro e último ponto.



O background dos fundadores da Pixar é profundamente tecnológico e enraizado nos valores progressistas emanados do sentir de Silicon Valley. Aqui talvez o video-ensaio tenha acertado, a questão não é tanto a animação 3d, mas a sua tecnologia e o facto de as pessoas que a criaram, terem estado na base da produção dos filmes. O mundo da computação, verdadeiramente disruptivo, focado no avanço contínuo das tecnologias só muito dificilmente germina em ambientes conservadores. Deste modo, e tendo em conta os dois pontos anteriores, a necessidade de apresentar algo novo no género de animação, aliado ao facto de os artistas terem de ouvir as opiniões de tecnólogos, terá criado as condições ideias para que as produções iniciassem toda uma viragem em termos temáticos.

"How CGI Transformed Animated Storytelling" (2017)

setembro 26, 2017

3 prequelas para "Blade Runner 2049"

Shinichiro Watanabe, realizador da série anime Cowboy Bebop e de uma das curtas de "Animatrix" (2003), acaba de lançar na rede Blade Runner Black Out 2022, a prequela anime de preparação das audiências para o lançamento, dentro de 10 dias — a 5 de Outubro 2017 —, de “Blade Runner 2049”. Esta curta faz parte de um conjunto de três prequelas, sendo a única em animação, a primeira “2036: Nexus Dawn” foi lançada em agosto, a segunda "2048: Nowhere to Run" a meio de setembro.




As três prequelas recriam a atmosfera do filme original, embora esta anime de Watanabe seja a que mais se cola ao universo visual e nos faz sentir a nostalgia de “Blade Runner”. A animação começa em 2022, apenas 3 anos depois dos eventos do filme, o que permite ainda recuperar cenários, incluindo os outdoors em movimento, com a história a aproximar-se imenso, faltando apenas Vangelis no fundo.


Não posso dizer que me tenha surpreendido com qualquer um dos três filmes. Gostei da insinuação na história do primeiro, que parece abrir às novas questões do filme que aí vem. Já o segundo funciona como mero engodo emocional. Este terceiro, funciona muito bem na componente artística anime, mas de resto parece servir apenas para recordar o filme original e preparar-nos para o que nos espera.

Realizando uma avaliação mais fria, não posso deixar de ver estes três filmes mais como parte de uma estratégia de marketing, nomeadamente de content marketing, que serve o propósito de colocar o filme na cabeça das pessoas, de espevitar a nostalgia de quem recorda, assim como chamar a atenção de quem nunca viu por meio de buzz nas redes sociais. Procura-se seguir a lógica transmedia de Matrix, mas não podemos dizer que ocorra uma expansão significativa em termos narrativos. Ao contrário do que acontecia com Animatrix, não temos aqui expansão de conceitos, ou sequer acesso a componentes da história que desconhecíamos, acabamos a ver um pouco mais do mesmo.

Uma nota técnica. Se os dois primeiros filmes se podem ver no YouTube, o terceiro foi disponibilizado num site de VOD, dedicado a anime, que para além de não permitir aceder à versão HD sem pagar, ainda nos obriga a instalar o plugin de Flash para realizar a visualização do filme.

Ver os três filmes:
1. 2036: Nexus Dawn (2017)
2. 2048: Nowhere to Run (2017)
3. Blade Runner Black Out 2022 (2017)