Rui Devesa Ramos não é alguém que resolveu mandar uns bitaites, é Doutor em Psicologia, e como tal tem responsabilidades para com a comunidade que habita. Podemos questionar a obtenção do título, mas tendo-o obtido perante um júri reconhecido, interessa-me mais concentrar no que diz neste texto do que no modo como obteve o título.
Ramos começa por dizer que “Do ponto de vista antropológico a ciência nunca será mais do que uma crença civilizacional”, o que não está errado. A antropologia dedica-se ao estudo do homem, a compreender como se fez, de que se fez, e como continua a fazer. Deste ponto de vista, referir que a ciência é uma das grandes crenças da humanidade contemporânea nada tem de errado. A ciência é hoje o principal ideário das nossas ações, e por isso define grandemente aquilo em que acreditamos enquanto humanos. Mas a frase que se segue, e que acaba por dar mote a todo o restante texto, apesar de parecer ser do mesmo teor, é totalmente distinta:
“o que faz com que a ciência “funcione” deriva determinantemente da crença que temos nela”Isto não é verdade, é uma mentira atirada com areia, acima descrita, aos olhos de quem lê. A ciência não funciona porque se acredita nela, a ciência funciona porque a sua ação é observável e experienciada pelos membros da comunidade. A areia continua pelo resto do texto, porque Ramos dedica-se apenas ao tópico que lhe interessa atingir, a medicina, que como sabemos é uma das áreas que apesar de ter evoluído drasticamente, tem de lutar permanentemente contra as forças da natureza que se vão alterando com o tempo e atuação humanas. Ou seja, muitos dos cancros que hoje conhecemos não existiam há 100 anos, porque não existiam as comidas processadas que hoje comemos, nem tínhamos hábitos sedentários como hoje temos. Mas em contra-partida foi a medicina que eliminou a tuberculose que tantos milhares de nossos antepassados consumiu ao longo do século passado.
Não, não foi a crença que eliminou a Tuberculose, foi a ciência. Não foi a crença que eliminou a Peste Negra, a Rubéola, a Lepra, a Tosse Convulsa, a Difteria, o Raquitismo, a Poliomielite ou a Escarlatina. Foi a ciência, porque não é teoria, nem sequer mera ideia, é antes experimentação e validação de opções de tratamento. Sim, para encontrar o tratamento certo é preciso errar, errar muito, mas encontrado e validado, pode ser utilizado por todos os restantes membros da comunidade, de modo a que possam evitar ser acometidos pelos mesmos males. Sim a medicina não é uma religião, é uma ciência, e é por isso que não cura tudo, temos muito ainda para fazer — Sida, Cancro, Alzheimer, Parkinson, etc. Se bastasse acreditar, estas doenças também teriam sido já erradicadas, mas não chega acreditar. Não há crença que salve uma criança acometida de um cancro de leucemia, a ciência pode falhar, e falha muito, mas sem ela nem sequer de taxas de sucesso poderíamos falar.
Mas e saindo da área da medicina, será que a crença tem uma palavra mais importante a dizer que a ciência. Podemos dizer que um avião voa porque as pessoas que lá vão dentro acreditam no ato de voar? Podemos dizer que a televisão dá imagens, ou o frigorífico refrigera, porque as pessoas acreditam em algo que nem sequer sabem como funciona? Podemos dizer que quando aplicamos força sobre os pedais de uma bicicleta e as rodas desta se movem, tal acontece porque acreditamos nessa força?
O problema de Rui Ramos é querer atirar areia para os olhos de quem o lê. É usar conceitos abstratos, tais como crença e vontade individual, para definir conceitos concretos como ciência, mas obviamente que ao fazê-lo induz-se a si próprio em erro, como quando diz:
“Toda a crença emanada pela vontade individual é necessariamente boa, devendo, contudo, ser bem informada – vale mais que toda a ciência.”A crença pressupõe uma convicção, mas se é informada deixa de ser crença, porque passa a ser sustentada, e logo passa a valer o mesmo que ciência. Ou seja, acreditar que posso curar uma dor de dentes simplesmente eliminando a dor do meu pensamento, é uma convicção que resulta da falta de informação, e que quando aplicada faz com que a dor regresse sempre que o pensamento da dor se apresenta. A convicção individual não resolve o problema, e a realidade demonstra-o passado pouco tempo. Já acreditar que a dor passará depois de morto o nervo que alimenta o dente, é uma crença baseada em informação presente na comunidade, que efetivamente depois de experimentada faz a dor desaparecer. Mas não desaparece apenas para mim, desaparece para todos os humanos que se submetem a esse mesmo tratamento. Ou seja, a crença deixou de o ser, porque informada pela experiência da comunidade passou a ser conhecimento, que não se baseia em convicções mas em experimentações.
Por isso a crença não vale mais do que a ciência. A crença pode servir para nos conduzir a aceitar a ciência, pelo desconhecimento da sua complexidade, mas só o facto desta funcionar é que transforma a crença em conhecimento. Não acreditamos cegamente, acreditamos porque vemos funcionar. Não entramos num avião para voar porque acreditamos, mas porque conhecemos. Um conhecimento criado pela experiência da realidade do voo feito, do que vemos pela janela e pelo facto de em duas horas estarmos num ponto situado a dois mil quilómetros do ponto de partida. Do mesmo modo não tomamos uma vacina porque estamos convictos do seu efeito, tomamos porque tendo visto quem as tomou não sofrer de doenças que os nossos antepassados sofreram, acreditamos nesse conhecimento. A ciência não exige crença, a ciência exige experimentação.