“Quinta Estação” (2015) é o primeiro volume da trilogia “Terra Fraturada” da escritora americana N. K. Jemisin que se tornou numa espécie de recordista ao ser a primeira mulher negra a receber um prémio Hugo e o primeiro autor a receber 3 prémios Hugo em anos consecutivos, exatamente com esta trilogia — em 2016, 2017 e 2018 — sendo considerada "
indiscutivelmente o escritor especulativo mais importante da sua geração". Se isto não chegar, posso ainda dizer que a formação de base de Jemisin é a Psicologia e que ela tende a escrever suportada em ciência. Aliás, foi esta última parte que me fez embarcar na sua leitura, após perceber que os seus mundos-história operavam num domínio que podemos definir, de forma oxímora, como fantasia-científica.
Desde o início do livro, Jemisin é bastante clara no desenho do universo, apresentando-o aos poucos, mas sempre suportado em lógica e racionalidade. O mundo-história é constituído por uma realidade alternativa na qual o planeta em que os humanos, e outras espécies, habitam atravessa constante agitação sísmica, provocando em ciclos de centenas de anos o apagamento de civilizações inteiras, fazendo com que as gerações seguintes praticamente desconheçam as anteriores. Esta premissa abre espaço para um mundo de possibilidades que colocam em conflito o racional de um desconhecido que garante o sentido mágico que a fantasia tanto preza. Pode-se dizer que o universo criado oferece ciclos continuados de ambientes pós-apocalípticos, aproximando-se da tendência atual do uso da figura do pós-apocalipse mas exacerbando a mesma para explorar os seus efeitos no ser humano.
Mapa do Sossego, o planeta em que se desenrolam as histórias
E é exatamente aqui, no campo dos personagens, que Jemisin eleva a qualidade do discurso no género, menos habituado à dramatização psicológica, para oferecer a cada um dos personagens todo um historial, variabilidade moral e profundidade emocional. Estamos muito longe da mera premissa que puxa o enredo e faz seguir as aventuras, como a necessidade de descobrir a origem de uma qualquer força, a conquista de um qualquer território, ou o regresso do bem/paz ou equilíbrio, mais importante do que isso é conhecer aquelas pessoas: porque estão ali e porque se comportam daquela forma. Neste sentido, a obra acaba fugindo bastante aos cânones do género, já que se aproxima muito mais do tradicional romance. Os personagens vivem em realidades de relações sociais complexas, em que temos dominadores e submissos, em que a opressão é uma constante e cabe à narrativa levar-nos compreender como funcionam as desigualdades e como lidam as pessoas com as mesmas.
Tendo em conta o enfoque nas relações sociais e sua psicologia, o mundo criado por Jemisin é, no âmbito do nosso mundo contemporâneo, imensamente progressivo, algo que em tempos de grande polarização política, e provindo de uma autora americana negra dá conta de uma forma de estar reflexiva e preocupada com o mundo real que habitamos. Temos protagonistas negros, mulheres, homossexuais, transgéneros e até relações poliamorosas, tudo servido como parte de um universo perfeitamente lógico e natural. A autora tem perfeita noção dessa polarização, conhece fenómenos como o GamerGate, e a própria tem vindo a ser alvo dos mais diversos ataques à medida que vem ganhando prémios e tornando-se mais conhecida. Por isso os universos por ela criados não são inocentes, sendo ela a primeira a admitir que a criação de mundos-história por criativos serve na criação de mitologia e modelos mentais que os leitores utilizam para interpretar o mundo. Por isso, podemos dizer que estes seus livros contribuem para uma espécie de ativismo, no qual Jemisin reflete sobre o mundo que habitamos e oferece alternativas que nos questionam sobre muito daquilo que damos por adquirido nesta nossa realidade.
Entrando na leitura propriamente dita, podemos dizer que “Quinta Estação” começa por parecer algo estranha, dada a quantidade de factos de uma realidade que nos é estranha, ao que acresce uma narração a três vozes. Mas ao fim de meia-centena de páginas estamos ambientados e o universo começa a ganhar forma na nossa cabeça. A história conta-se no presente, mas uma das vozes dá-se a conhecer numa rara segunda-pessoa que sabe bastante mais sobre o antes e o depois do que se vai contando. Jemisin é bastante hábil a coser as diferentes vozes e a construir os arcos de cada personagem, ainda que me pareça que com este quadro teria sido possível criar um pouco mais de clímax, perto do final, com a junção das três narrações. Contudo, emocionalidade não falta ao longo de todo o livro, com as diferentes espécies a darem conta das castas e classes sociais e das opressões vividas, assim como dos comportamentos mais impróprios que nos incomodam, não tanto pelas figuras representadas, mas antes por conhecermos a base societal que serviu de inspiração à criação dessas figuras.
Voltando à ideia da fantasia-científica, diria que isto é talvez aquilo que tende a distinguir os universos da Marvel e da DC ou de Star Wars e Star Trek. Na Marvel as histórias que suportam as origens de cada um dos heróis tem normalmente por base uma explicação científica, sejam as transformações radioativas sejam as mutações genéticas da biologia evolucionária. Neste sentido não admira que as histórias passadas ao cinema tendam a focar-se repetitivamente nessas origens, já que isso é o que verdadeiramente interessa nos personagens, e não as suas repetitivas aventuras rocambolescas. Já no caso de Star Trek, o foco tende a estar na compreensão da diferença entre espécies, na exploração dos traços alternativos daquilo que poderíamos ser enquanto espécie, e não meramente das histórias de luta entre o bem e o mal que se repetem sem fim, e das quais pouco ou nada podemos retirar. É isso que Jemisin faz aqui, foca-se nas origens do seu mundo e dos seus personagens e procura explorar as diferenças, a partir das quais cria espelhos de nós próprios que nos obrigam a refletir sobre as sociedades que criámos.
Vale a pena ver
o discurso de Jemisin na receção do terceiro prémio Hugo, e se tiverem vontade de compreender melhor como se criam estes universos, aconselho vivamente
o workshop que ela deu no ano passado na comemoração dos 25 anos da revista Wired, no qual ficarão a saber do gosto, e claro influência, que têm tido videojogos como
"Mass Effect" no seu trabalho.
Imagens do Workshop de Jemsin na Wired 25, explicando a conceptualização da criação de mundos (world building) nas suas formas Macro e Micro.