Há já algum tempo que não sentia tanta satisfação ao chegar ao final de uma história. Tudo perfeito, talvez perfeito demais, num sentido convencional em que se estimulam os sentimentos por via dos valores da família, dos amigos e claro do casal romântico. Ainda assim, no meio de uma distopia pós-apocalíptica tecnológica, o cyberpunk, soube muito bem reencontrar as dimensões do humano como prevalentes. Em "Cyberpunk 2077", a máxima de Pawel Sasko, diretor do Design de Missões, “story goes first with everything” é uma realidade. Podemos navegar o mundo, podemos explorar todas as funções da nossa personagem, das tecnologias, das armas, dos carros, podemos envolver-nos numa miríade de confusões e pequenas missões, mas a história está sempre lá, o nosso personagem está perfeitamente delineado e impacta e é impactado pelo que acontece ao longo da nossa experiência. Não é um RPG tradicional, mas também não é mero Ação-Aventura, é um verdadeiro Immersive Sim, capaz de morfosear RPG, FPS, Stealth, Racing, Cartas, Plataformas e muito Survival, tudo oferecido num mundo aberto deslumbrante.
Joguei 22 horas, mas vi ainda muito pouco do todo. Percebi que as side-quests não são verdadeiramente side-quests, pois sem elas a main-quest não ganha toda a dimensão humana de que falo. Joguei como Nomad, mas vou voltar a jogar como Corpo. Sinto necessidade de explorar as opções e perceber o alcance do design narrativo. O design das escolhas narrativas é tão conseguido, que faz parecer tudo um normal jogo de ação-aventura. As nossas decisões são incorporadas e feitas parte do desenrolar do jogo, como se nunca tivessem existido outras opções, no entanto sabemos que estão lá, e isso não deixa de me intrigar ainda mais, nomeadamente sobre o verdadeiro impacto destas minhas decisões. Eu sei que decido, sei-o através da análise de sites e vídeos, que outros caminhos teriam surgido se a decisão fosse diferente. No entanto, sinto que decido porque acredito que é a melhor decisão, e aqui levanta-se a grande questão: melhor para quê/quem?
Ao chegar perto do final comecei a interrogar-me sobre as grandes decisões que tive de tomar, e quanto mais refletia nas mesmas mais me parecia que não estava a decidir segundo aquilo em que eu acreditava, mas segundo aquilo que me parecia ser melhor para o desenrolar da história do jogo. O que seria melhor para o personagem, o que faria mais sentido em termos dos seus valores, e do que eu imaginava que seria uma melhor história. De certo modo, isto também faz transparecer um pouco a ideia de que nunca me senti verdadeiramente o protagonista V. Posso culpar o distanciamento pós-apocaliptico que nunca me permitiu sentir completamente “em casa”, mas esse é menos diferente do que um medievalismo de fantasia, e no entanto senti-me muito mais Geralt of Rivia.
Assim, acabo por voltar à ideia que venho propondo, que a first-person tão estimada por todos os amantes de RV, não é de todo a melhor opção para jogos narrativos. Falha a empatia, mas acima de tudo falha a identificação com a personagem que nos impede de nos projetarmos no interior da mesma. A personagem em first-person é, por design, oca, por forma a permitir ao jogador a realização do preenchimento consigo mesmo, contudo isso não acontece porque a narrativa, impedida de dar vida ao protagonista, nunca nos estimula, nunca nos puxa para dentro da concha da personagem. Resta a este design trabalhar as personagens adjacentes para nos conseguir fazer sentir parte da narrativa. Aqui “Cyberpunk 2077” deslumbra totalmente, tanto com Jackie, mas acima de tudo com Panam, mas também restantes colegas que vamos encontrando, a maioriar imensamente bem estruturados e plenos de mundo.
Refletindo, enquanto escrevo, sinto que não fiz as opções que queria enquanto V., mas fiz as opções que essas personagens queriam, ou esperavam de mim, porque enquanto jogador foram essas personagens que foram verdadeiramente influentes sobre mim. Refletindo, talvez faça sentido. Entrar tão dentro do jogo, da personagem principal, que se sente o que ele deve sentir, tendo que lidar com as restantes personagens como se fosse verdadeiramente o protagonista. Mas se assim é, falha algo na minha conexão com o protagonista, sou ele, sou eu, sou ambos, sinto alguma esquizofrenia. Talvez esteja demasiado viciado no modelo narrativo literário/cinematográfico, e procure excessivamente um veículo que me faça atravessar o mundo narrado. Talvez tenha de aprender a desligar do protagonista, esquecê-lo, e deixar-me levar pelo meu Eu, já que sou eu quem deve narrar, sou eu quem realizar escolhas, quem toma decisões. Ainda assim, sendo eu, na verdade o mundo é-me apresentado como concebido, e a muita coisa devo submeter-me para progredir, não sendo verdadeiramente eu quem decide o que quer que seja...
Venha 2023 para rejogar, mas agora no papel de Corpo, e depois voltarei a esta reflexão, assim como espero dar conta mais sobre o design de jogo e da narrativa. Quero também aprofundar a visão do cyberpunk aqui apresentada, nomeadamente no quão pouco mudou passados 40 anos sobre "Blade Runner", "Neuromancer" e "Akira".
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