março 26, 2023

O não-consciente de Cormac McCarthy

"Stella Maris" é o segundo volume da obra que Cormac McCarthy lançou em 2022, 16 anos depois do seu último livro, agora com 89 anos. Se no primeiro volume, "O Passageiro", nos introduziu a um mundo denso e complexo de ações humanas para as quais não parecia possuir uma ideia concreta a transmitir, "Stella Maris" é todo o contrário, quase vazio de ação, completamente focado naquilo que tem para dizer, ainda que o faça por meio de alguém em quem não podemos confiar totalmente, pelo diagnóstico de loucura a que está votada. É uma viagem científica realizada por meio de um vertiginoso diálogo entre um terapeuta e uma paciente, 20 anos, que desistiu de fazer o seu doutoramento em matemática para se auto-internar no hospital pisquiátrico Stella Maris.

março 19, 2023

"Eu, Cláudio" (1934)

"Eu, Cláudio" é de 1934, por isso se tiverem interesse em começar a ler sobre Roma Antiga e os seus Imperadores, podem começar por aqui. Na verdade, muito do que aqui está encontra-se espalhado por uma míriade de objetos culturais que criaram o imaginário do século XX sobre aquela época — desde as quezílias familiares aos assassinatos de imperadores, passando pela total insanidade de Calígula. Tendo lido muitas outras obras antes, soube-me a pouco, e por isso recomendo ainda mais que comecem por aqui. Ainda que se sinta alguma superficialidade, vale a pena a leitura pela acessibilidade da visão geral daqueles tempos, mesmo que o tom esteja demasiado impregnado pelo século XX. Por outro lado, enquanto romance deixa a desejar, já que investe muito mais na descrição do que na narração ou dramatização. Se quiserem algo mais imersivo, aconselho antes “Augustus” (1972) de John Williams, e para algo mais psicológico, "Memórias de Adriano" (1951). Mas se quiserem mergulhar diretamente na mente de um imperador então  nada melhor do que ler "Meditações" (180) de Marcus Aurelius.

março 11, 2023

"Tar" (2022) de Todd Field

"Tar" é mais objeto de design do que obra de arte, no sentido em que a direção sintetiza tudo de forma estrita para produzir determinadas emoções e determinadas conotações. Se Cate Blanchet faz um bom papel, nem por isso pode ser vista como o cerne da obra, já que toda a sua performance é controlada no detalhe pela direção e montagem. Repare-se na quantidade de elementos que vão sendo introduzidos em cena, ao longo das 2h30, para desviar ou obrigar a focar a nossa atenção, assim como na imensidão de espaços em que encontramos a protagonista, oferecendo-lhe apenas presenças fugazes. Lydia Tar é profundamente caracterizada pelo mundo que a envolve, em particular os sons, mas também tudo aquilo que os outros consideram sobre ela. Quase como se ela deambulasse ao longo do filme, e o diretor fosse colocando elementos à sua volta que nos obrigam a realizar conotações sobre quem ela é, como pensa e sente. 

março 05, 2023

Re-interpretando a História, segundo as nossas agendas

Não vou tecer elogios ao livro, "The Dawn of Everything: A New History of Humanity" (2021) porque tenta claramente ser mais do que aquilo que é, apesar de inexplicavelmente ter uma enorme quantidade de pessoas a tecer louvores, nomeadamente a crítica jornalística e autores de best-sellers. Mas também por força desse enorme suporte, não sinto qualquer obrigação de inibir a minha crítica. Até porque, todo o livro está escrito como um ataque direto a outros autores, nomeadamente três contemporâneos — Pinker, Harari e Diamond — e dois clássicos — Rousseau e Hobbes. Mas vai além quando nem sequer pára para criticar, mas simplesmente decide ignorar totalmente a ciência, começando por Darwin e a biologia, passando por toda a Física, e mais grave ainda, tendo em conta que se fala de comportamento humano, toda a Psicologia. Os autores, sentados no seu pedestal antropológico, julgam-se no direito de pescar casos isolados, feitos de variáveis não conforme, e tecer sobre estes interpretações para demonstrar aquilo que a sua agenda exige. Ignora-se na generalidade metodologias científicas de carácter empirista, baseando grande parte das deduções em ideias de autores que nunca passaram pelo crivo da revisão por pares. Mas para repescar esses autores existe sempre uma condição especial, suportada na ideia de que foram preteridos pelas grandes conspirações que conspurcaram a ciência iluminista — o colonialismo e o androcentrismo.

"Quixotically, Graeber and Wengrow expect readers to give serious consideration to a perspective on human origins that does not acknowledge evolutionary theory at all." -- Knight, 2022

março 04, 2023

O Mago do Kremlin (2022)

“O Mago do Kremlin”, de Giuliano da Empoli, é um romance histórico-político centrado num dos mais relevantes focos da cena política global atual que domina não só as atenções políticas mas as de toda a sociedade, e que é o esforço de manutenção do Imperialismo Russo. Empoli é professor de Ciência Política na Sciences-Po em Paris, é presença assídua nos média italianos e franceses como comentador de política, tendo escrito mais de uma dezena de livros de ensaio, sendo este o seu primeiro romance. O livro ganhou Grande Prémio de Ficção da Academia Francesa 2022 e foi finalista do prémio Goncourt 2022. Esta breve apresentação será suficiente para dar conta da relevância do livro, mas não quero deixar de dizer que está muito bem escrito; e que a ficção apresenta um enorme nível de verossimilhança.