Os “Ensaios” surgem a partir da reclusão a que Montaigne se votou a si mesmo. Em 1571 retirou-se da sociedade e família, e fechou-se numa torre juntamente com a toda a sua biblioteca de mais de 1500 obras, até 1580. O que podemos ler nos “Ensaios” é assim o resultado desse esforço, mas ao mesmo tempo o crescimento e amadurecimento intelectual de alguém, que depois de ter vivido quase 40 anos em plena sociedade, decide retirar-se para tudo analisar ao microscópio da dúvida sobre si mesmo. O primeiro e segundo livros são publicados em 1580 quando Montaigne resolve pôr fim ao processo de exclusão, de recusa da vida vivida apenas através dos livros, e assim voltar à sociedade, viajar e voltar a assumir cargos políticos.
“Os livros são agradáveis, mas se por frequentá-los perdermos, por fim, a alegria e a saúde, nossas melhores qualidades, abandonemo-los: sou dos que pensam que seus frutos não podem compensar essa perda.”Deste modo o terceiro livro, que surge passados 8 anos após a saída da reclusão, assume todo um novo figurino, não apenas pelo amadurecimento, mas também porque realmente Montaigne se transformou, passou a ver o mundo pelos seus próprios olhos, colocando em causa tudo o que tinha lido, tudo o que tinha ouvido, passando a filtrar o mundo à sua volta por meio da observação e experiência pessoal.
“Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física.”Fico a pensar que existe um risco para quem leia apenas o Livro 3, que surge em todos os séculos, e aquele em que vivemos não é excepção, de se pensar que basta isso, a experiência e observação, para se compreender o mundo que nos cerca. Por isso se torna tão perigoso descontextualizar escritos e expressões, que é aquilo em que se especializam alguns dos vendedores de sonhos, que promovem o mundo ausente de escolas, ausente de passado, centrado no presente, centrado no Eu apenas. Montaigne se o fez e disse no seu terceiro livro, foi por ter atingido uma maioridade intelectual, o que lhe permitiu ganhar um nível de consciência raro, de si, dos outros e do mundo, algo que em grande parte se ficou a dever às leituras que realizou, e que tão profusamente cita ao longo dos três livros.
“Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas. A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o sensato com o insensato, o severo com o indulgente, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo.”
“É uma perfeição absoluta, e como divina, saber gozar lealmente de seu ser. Procuramos outros atributos por não compreendermos a prática dos nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que nele se passa. No entanto, pouco adianta subir em pernas de pau, pois mesmo sobre pernas de pau ainda temos de andar com nossas pernas. E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro. As mais belas vidas são, a meu ver, as que se conformam ao modelo comum e humano, bem ordenadas, mas sem milagre, sem extravagância.”Estas duas citações foram retiradas do final do seu livro, e dão conta do ponto a que chegou Montaigne. No início do livro dizia-nos que procurava descrever o Homem (estamos em plena Renascença), do modo mais franco e honesto, o que fez através da enorme quantidade de obras lidas e da enorme capacidade para entreter a dúvida constante. Ao fazê-lo criou toda uma nova abordagem ao modo de escrita de não-ficção, desenvolvendo o modelo daquilo que viria a ficar conhecido como o Ensaio Académico, e que ainda hoje se realiza nas Universidades.
No final deste livro assumo por completo a dívida que temos para com o período da Renascença. Sempre a reconheci, mas enquanto conhecedor dos méritos nas artes plásticas e visuais (Michelangelo, Donatello, Botticelli, Raphael) e ciências (Maquiavel, More, Copernicus, Galileo, e claro Leonardo Da Vinci). Mas os efeitos de todo este período, que teve o seu auge no final do século XV, estenderam-se no tempo até ao que podemos considerar a última fase do Renascimento, final do século XVI e início do século XVII, com a Literatura a dar-nos o trio: Miguel Cervantes (1547-1616), William Shakespeare (1564-1616) e Montaigne (1533-1592).
Versões seguidas:
Montaigne, Michel, (1571-1792), “Os Ensaios”, Ed. M. A. Screech, Trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia / Penguin, ISBN: 9788563560063, (2010)
Montaigne, Michel, (1571-1792), “The Complete Essays of Montaigne”, Trad. Donald M. Frame, Narração: Christopher Lane, Brilliance Audio, Inc. (2011)
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