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setembro 16, 2021

Problemas da Empatia e de Bloom

 Em 2016 Paul Bloom lançou um livro chamado “Against Empathy”, e com ele criou uma enorme confusão em redor do conceito de empatia. Na altura passei os olhos pelo livro, mas como não passava de um artigo aumentado com múltiplas histórias de suporte, não lhe dei muito valor, apesar de concordar com os traços gerais da proposta aí apresentada. Não dei grande importância porque, julgava eu, o alerta de Bloom era mais dirigido aos media do que propriamente aos cientistas. Entretanto revisitei o livro, e percebi que na tentativa de dar força ao que quer dizer, Bloom acaba por cometer alguns, muitos, excessos, e foi por isso que resolvi escrever este texto. 

março 27, 2021

O nosso Movimento molda o nosso Pensamento

Barbara Tversky apresenta no seu último livro, "Mind in Motion: How Action Shapes Thought" (2019), uma teorização sobre a cognição, ainda que não completamente nova, arrojada. Defende que o nosso pensamento não é construído pela linguagem, mas pela ação, pelo movimento. Tversky diz-nos que usamos as palavras para descrever, mas na verdade a nossa mente constrói conceitos por via de imagens mentais criadas a partir da nossa ação sobre a realidade. Damásio tem falado bastante sobre estas imagens mentais, e sobre a implicação da emoção e do corpo nos processos de raciocínio, mas mais próximo ainda, é o trabalho de Benjamin Berger, no livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012), que defende, também, que não processamos a informação em modo de texto, mas por meio de imagens ou simulações mentais. Tversky dá um exemplo clássico, mas que todos nós podemos rapidamente intuir, e que passa pela enorme dificuldade que temos em descrever a cara de alguém em palavras. Isto, para Tversky, é um indício de que a nossa capacidade de pensar não acontece a partir de um processo mental textual algorítmico inato, como defende Chomsky, mas é antes produzida por via da nossa ação no espaço e tempo, pela nossa atuação interativa com o real que nos permite relacionar e construir mentalmente a realidade na nossa mente.

novembro 07, 2019

Processos cognitivos por detrás da Montagem

A montagem é o elemento definidor da arte cinematográfica, aquele que singulariza a sua estética, a sua capacidade de produzir mensagem de forma única. Neste sentido, tem sido uma área bastante estudada, diga-se que mais fora da academia do que nesta, exatamente pela dificuldade que temos tido em parametrizar algo que é profundamente artístico, ou seja, dependente de opções pessoais expressivas e não de métricas facilmente quantificáveis. Este trabalho da Karen Pearlman, uma académica com experiência profissional no cinema, pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna, adicionando novo conhecimento ao conjunto de convenções que respondem pelas necessidades fundamentais da edição, indo além da mera continuidade espaço-tempo.


O trabalho mais citado no campo da montagem continua a ser o livro de Walter Murch — "In the Blink of an Eye" (1995) — um montador reconhecido, especialmente pelo trabalho em “Apocalypse Now” (1979) com uma visão completamente assente no artesanato da arte, sem qualquer arcaboiço metodológico que pudesse suportar um maior aprofundamento do conhecimento da arte. Depois temos outros autores como Ken Dancyger ou Valerie Orpen, e até mesmo Bordwell, mas nenhum conseguiu ir tão longe como o trabalho que Pearlman nos apresenta e que pode ser conhecido de forma muito rápida através deste pequeno vídeo:  "Why Does an Edit Feel Right? (According to Science)" (2019).

Why Does an Edit Feel Right? (According to Science), 2019

Neste vídeo Pearlman socorre-se do trabalho de Vittorio Gallese — sobre os neurónios espelho [1] — e Tim J. Smith — estudos de eye-tracking em cinema [2] — para desmontar o que acontece durante o processo de visionamento de um filme e, assim, chegar aos modos como a montagem contribui para a construção de engajamento. Pearlman dá conta dos processos de simulação corpórea [3] realizados por nós, dizendo que o “film’s rhythm synchronizes the body, influencing the spectator’s physical and cognitive fluctuations to follow its own” [4], algo que vai muito para além da questão da continuidade. No exemplo apresentado de Blade Runner, com Harrison Ford e a coruja, temos um corte que só faz sentido por via do movimento corporal, pois é antitético no que toca a continuidade. A partir da desconstrução dessa sequência, Pearlman apresenta então o conjunto de hipóteses resultantes da expressividade da montagem:
#1 Movement Phrase
#2 Kinesthetic empathy
#3 Subtext
Para quem tiver ficado interessado no assunto e quiser aprofundar mais, sem ir diretamente ao seu livro “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing” (2016), recomendo a leitura do artigo de Pearlman de 2017, "Editing and Cognition Beyond Continuity" publicado na Projections.


Referências
[1] “Embodying Movies: Embodied Simulation and Film Studies” Gallese, 2012
[2] “The Attentional Theory of Cinematic Continuity”, Tim J. Smith, 2012
[3] "Hipótese da Simulação Corpórea", VI, 2014
[4] “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing”,  Karen Pearlman, 2016

novembro 17, 2018

A deceção com Ishiguro

Vi a versão homónima — "Never let me go" — cinematográfica quando saiu, em 2010, e lembro-me de não compreender a razão de tanto entusiasmo por parte da crítica. Recordo-me de ter gostado do ritmo e ambiente, da clara antítese para com outros filmes de ficção-científica pela ausência de futurismos tecnológicos, mas ao mesmo tempo nada da história, dos seus personagens, fez muito sentido para mim. Pensei na altura que o facto de não ter lido o livro me tinha deixado à porta do significado e por isso condescendi. Acabado agora o livro, sinto exatamente o mesmo que senti quando vi o filme, gostei do suspense, gostei da fragilidade e abandono, mas a mensagem continua distante. Li, entretanto, várias análises, incluindo a de James Wood e mais algumas académicas, mas não fiquei convencido com os argumentos apresentados em defesa da obra.


********** SPOILERS *************

O texto trata de um tempo igual ao nosso, mas numa realidade paralela em que a clonagem existe para servir as necessidades de transplantes de órgãos. Crianças clonadas, sem pais, são criadas e educadas em escolas até aos 16 anos, para depois seguirem, primeiro um processo de ajuda aos colegas mais velhos em pós-operatórios e períodos de convalescência entre extrações de órgãos, e depois passarem também a ser dadores, processo que pode chegar até à quarta ronda de extração, altura em que por norma, "completam o ciclo", morrem.

Olhando para esta síntese, temos uma premissa regular de ficção-científica, que trabalha um tópico quente do início deste milénio, a clonagem, e procura realizar alguma crítica. Contudo o tratamento do tópico por parte de Kazuo Ishiguro deixou-me completamente incrédulo sobre todo o cenário apresentado. É interessante que Ishiguro, apesar de trabalhar a mesma premissa do filme "The Island" de Michael Bay, que saiu exatamente no mesmo ano do livro, tenha seguido uma abordagem completamente distinta. O filme de Bay segue uma história-conceito de Caspian Tredwell-Owen, que não foi desenvolvida para além do filme, no entanto a premissa é muito próxima de "Never Let Me Go". Não interessa o tradicional "quem copiou quem" até porque tendo saído no mesmo ano, os tempos de produção não permitiriam cópias, mas interessa, mais ainda a esta distância no tempo, verificar como o tema mexia com a sociedade desse tempo, a ponto de dois objetos culturais terem sido criados e terem conseguido gerar grande impacto. Em 2003 a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado (1996), morria gerando grande comoção e discussão internacional em redor da clonagem, tornando os tempos propícios à criação de alegorias.

Indo agora ao cerne das minhas objeções. “Nunca me deixes” apresenta-se como uma alegoria, o que serve a todo o tipo de interpretações, desde os que defendem que Ishiguro usa a clonagem como mero pretexto para dissertar sobre a nossa própria mortalidade, aos que consideram que funciona como crítica ao processo e seus impactos. Muito honestamente, considero a alegoria completamente falhada, por falta de sustentação do cenário apresentado. Clones ou não, refletiam, questionavam-se, tinham curiosidade pelo pensar do outro, mas eram incapazes de questionar o seu desígnio? A única explicação é que sendo clones, eram apenas em parte humanos, com genes transformados para se comportar como animais domesticados, mas assim sendo então qual o valor da alegoria?

Por várias vezes parei para comparar com outras alegorias, um dos processos muito usado por Saramago, mas a conclusão era sempre a mesma, não se podem criar alegorias para servir de espelhos conceptuais, que na base comparativa estejam adulteradas. A alegoria deve partir das mesmas condições do conceito que se pretende discutir, e depois então transformar as propriedades ou condições contextuais para apresentar os impactos possíveis. Ora neste caso temos um grupo de crianças impossíveis. Mesmo assumindo a ideia de órfão, são apresentadas como humanos ausentes de curiosidade, ausentes de ímpeto do ser — quem sou eu? porquê? como? Mesmo a busca pelos “possíveis” que seria algo fundamental num humano regular, querer conhecer a sua origem, clonado ou não existe sempre uma origem, é apresentado como mero fait-divers, pouco relevante!

Claro que poderia existir um conjunto de personagens mais acomodados, mais resignados, menos despertos, mas todos! Não existe um único personagem que questione! E no entanto eles não são mantidos fechados num mundo à parte, eles leem literatura, clássicos instigadores, eles veem cinema, seguindo os comportamentais clássicos de Hollywood. Não lhes faltam modelos para despertar a imaginação, para questionar a diferença entre eles e os outros, e essencialmente o porquê dessa diferença. Ao mesmo tempo, a escola em que são educados e vivem, assim como a partir dos 16 anos, a herdade em que aguardam serem chamados para cumprir os seus supostos papéis, não são guardadas, não existe qualquer sistema de repressão ou controlo. Eles estão ali porque para ali foram levados, e nada mais.

A alegoria é um total falhanço em termos de compreensão do que sustenta a existência humana. Erra completamente ao retirar aos personagens qualquer motivação, qualquer sentimento de auto-determinação, como se fossem meros envelopes de carne, vacas e porcos, à espera de seguir para o matadouro. Como é que se podiam apaixonar se não se sentiam como indivíduos? Isto é tanto mais ridículo quando o desígnio de Hailsham, um colégio especial como ficamos a saber no final através da personagem Madame, tinha por objetivo demonstrar que eles eram tão humanos como os outros. Chegado aqui, poderia até questionar se não teria sido essa a ideia de Ishiguro. Ou seja, partir de um processo de clonagem direcionado apenas para a produção de envelopes de orgãos, mas ausentes das essências do sentir humano. Mas nada disso é abordado, quando se fala nesta escola com boas condições para os clones, o contraponto não é que eles são desprovidos de sentir, mas antes que a sociedade prefere ignorar a sua existência, e por isso não existe como oferecer-lhes melhores condições. Por outro lado, se Ishiguro tivesse ido ao ponto do design da consciência dos clones, seria no mínimo estranho que o único elemento extirpado fosse a auto-determinação. Para quê manter toda a complexidade passional e desejo sexual quando não existia capacidade de reprodução. Ver o sexo como um prazer que se lhe permitia é tão primário, completamente incapaz de compreender o reverso totalmente masoquista. Contudo, nada disto está em discussão nesta obra, por isso não adianta estar aqui a realizar interpretações sobre algo que o autor não se dignou a pensar, ou se o fez, foi incapaz de colocar no texto.

Fechando, o livro lê-se muito bem, leva-nos até à última página sempre com a ânsia por saber mais, por compreender melhor quem são aqueles indivíduos, porque vivem ali e como, mas se nós leitores nos preocupamos, eles não. Se sentimos empatia, percebemos no final que isso é algo ausente no desenho dos personagens. Por outro lado, a escrita está longe de ser de um nível Nobel, já que é pouco estruturada e repetitiva, mais ao nível de um romance Young Adult. Mesmo admitindo que objetiva a mostrar o mundo pelos olhos da personagem, ela já é adulta quando fala e recorda, e não é propriamente uma personagem desconhecedora de cultura literária.

outubro 09, 2017

O fim da Escola?

Este fim-de-semana estive num congresso de professores de informática do ensino não-superior, para o qual tinha sido convidado para falar das competências na área da multimédia no final dos 12 anos de estudo. Durante o debate voltou a surgir a velha questão dos MOOC* e do fim das escolas, tudo por divinas ordens da internet, robôs e inteligência artificial. Contra-argumentei, porque quanto mais me envolvo com tecnologia menos acredito em tal, mas não havendo muito tempo, várias coisas ficaram no ar e em dúvida, e é sobre elas que passo a falar.


Eu acredito nos MOOC e Ensino à Distância como ferramentas que oferecem uma enorme mais valia à sociedade, nomeadamente a todos aqueles que têm sede e necessidade de conhecimento, não tendo a ele acesso por razões geográficas ou de gestão de tempo. Acredito que o trabalho que pode e deve desenvolver uma instituição como a Universidade Aberta é fundamental. Acredito que muitos dos cursos que funcionam online a partir dos mais diversos centros de conhecimento — Khan Academy, Coursera, etc. —, são uma enorme valência para toda a sociedade de informação.

Agora isto é distinto de dizer que os sistemas de ensino à distância, ou os MOOC, vão acabar com as Escolas. Antes de explicar porquê, quero deixar claro que aquilo que me move não é a preservação dos empregos dos professores, já que o foco da minha preocupação está no aluno, em especial, na comunidade de alunos. Ou seja, a maioria dos estudos sobre resultados dos MOOC têm identificado como problema central a falta de motivação dos alunos, ou seja resiliência para manter uma aprendizagem autónoma, prosseguindo os cursos até ao final.

Daqui podemos começar desde já a identificar um dos principais entraves à substituição das escolas por sistemas online, a motivação humana. Se fosse o único problema, poderíamos continuar a aprofundar o enorme investimento que os grandes centros de MOOC têm feito em sistemas de gamificação, e aos poucos conseguiríamos sistemas suficientemente afinados para garantir atratividade, o que ainda assim seria distinto de garantir engajamento. A acrescentar a este, temos mais uns quantos problemas no domínio da Comunicação Humana, que não são passíveis de digitalizar ou traduzir para sistemas à distância, sobre o que já falei amplamente aqui antes. Mas os problemas não terminam aqui, e é essa foi a razão porque quis fazer este texto.

A razão principal porque me vou irritando com as conversas sobre o fim da escola, ou das conversas sobre as salas de aulas transformadas em cursos MOOC desenvolvidos a partir das universidades de elite para todo o mundo, etc., é porque demonstram não apenas um total desconhecimento da Experiência Humana, mas porque demonstram um desrespeito completo pela sociedade, nomeadamente pelos nossos filhos. Eu sei que as escolas que temos não são perfeitas, mas acreditar que teríamos uma escola melhor se realizada à distância é ridículo, porque põe em causa todo o fundamento do lugar da escola na sociedade. É verdade que tornaria os orçamentos do Ministério da Educação muito mais leves, assim como daria a ganhar dinheiro a muitos dos lobbies internacionais no domínio das tecnologias educativas. Ou seja, existe muito quem esteja mais interessado no resultado financeiro do que o humano.

Porque a escola não é um lugar onde apenas se exerce a transmissão e receção de informação, se fosse apenas isso, há muito que teríamos desistido desta instituição. A escola é o lugar em que os nosso filhos se confrontam com os seus pares, em que se medem e espelham todos os dias, questionando quem são e porque são. Isto não é um processo realizável à distância, nem em meia-dúzia de sessões, é um processo continuado no tempo, de aprendizagem do Eu e do Outro.  Da construção de estruturas de resposta social que vão garantir mais tarde a inserção desta criança na vida ativa. É claro que o conhecimento que os professores passam são relevantes, mas mais relevante é todo o ecossistema humano ali presente, não apenas porque está presente, mas porque está presente com um motivo, aprender.

Para dar conta do que estou a tentar dizer, introduzo aqui um evento da semana passada, a desistência da Mattel de lançar o seu mais recente "brinquedo", Aristotle, depois de vários anos em desenvolvimento. A Mattel cedeu às várias associações de pais que pediam que o brinquedo não fosse colocado à venda. Aristotle pretendia ser uma espécie de Siri para o quarto das crianças, teria acesso a tudo aquilo que a criança seria, e acompanharia a mesma no tempo, crescendo com ela através de “machine learning”, ajudando a criança. Ora se a privacidade foi a primeira questão para muitos, logo a seguir os pais começaram a sentir que poderiam ser colocados em causa, mas as questões centrais, englobando estas, vão ainda mais fundo e tratam do desenvolvimento da Empatia Humana, como disse Sherry Turkle, entrevistada pelo NYT:
“This is not at all an anti-technology position. This is about a particular kind of technology, one that pretends empathy. We can’t put children in this position of pretend empathy and then expect that children will know what empathy is. Or give them pretend as-if relationships, and then think that we’ll have children who know what relationships are. It really says a lot about how far we have gone down the path of forgetting what those things are.”
O tutor "Aristotle" da Mattel, entretanto cancelado por pressão social e política

Para compreender melhor a questão da empatia, e não querendo entrar em muito detalhe, até porque é um tema que tenho aqui discutido imenso (#empatia) antes prefiro repescar um outro estudo recente a propósito do modo como nós seres humanos funcionamos numa sociedade.
"The more we study engagement, we see time and again that just being next to certain people actually aligns your brain with them," based on their mannerisms, the smell of the room, the noise level, and many other factors, Cerf said. "This means the people you hang out with actually have an impact on your engagement with reality beyond what you can explain. And one of the effects is you become alike." (fonte)
Ou seja, apesar de permitirmos à nossas consciências criar ilusões à volta da nossa individualidade, da nossa unicidade, estar acima de todos os outros, sermos os primeiros e os melhores, a nossa biologia não está muito afim de tal. A nossa biologia puxa-nos para o outro, obriga-nos a viver com o outro, porque sem o outro, não somos nada. Basta compreender que só somos aquilo que os outros refletem de nós, sem a relação com os outros não nos compreendemos a nós mesmos, e não conseguimos estruturar-nos enquanto pessoas.

A falta de estruturas de empatia nas pessoas tem vários resultados, um dos mais conhecidos é a sociopatia, pela incapacidade de atribuir valor moral, ou por exemplo sentir as emoções negativas que fazemos sentir aos outros e assim refreiam a nossa capacidade para lhes fazer mal. Mas podem ser menores que isso, redundar no simples isolamento social, no fechamento sobre si mesmo, fuga do mundo. Este segundo caso é um problema que afecta fortemente o Japão, exatamente por ter um tipo de educação e vivência em sociedade que obriga a regras tão rígidas de relacionamento social, que impossibilitam o normal crescimento empático das pessoas. Se este problema já estava enraizado na cultura japonesa, não fez mais do que agravar-se com a introdução de mais e mais tecnologias sem a devida compensação social, e é por isso que o governo japonês começou recentemente a desenvolver várias políticas para combater o fenómeno.

Assim, pensar que daqui a 10, 20 ou 50 anos não vamos mais ter escolas, que as crianças vão estar em casa ligadas a um computador, ou metidas dentro de uma caixa de realidade virtual, a partir da qual interagirão por meio de canais limitados de comunicação com um suposto professor, ou um qualquer tutor virtual, e amigos que estarão noutras caixas, não é apenas tonto, é preocupante, e profundamente distópico. E é por isso que não podemos simplesmente pensar que isso será normal, que porque a tecnologia precisa de evoluir vale tudo. Não devemos esquecer que a evolução daquilo que nos define depende primeiro de nós, das políticas que viermos a implementar enquanto sociedade, não das tecnologias que vamos inventando.


* MOOC: Massive Open Online Course, trad. Curso Online Aberto e Massivo.

Saber mais:
Comunicação e as falácias da Sociedade de Informação (Copyright, MOOC, Democracia Directa, Open Access, Rankings), in VI, 2013, 
Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento, in VI, 2014, 
O fim da Universidade, ou a simples arrogância tecnológica, in VI, 2012

dezembro 17, 2016

“The Last Guardian” (2016)

“ICO” saiu em 2001, “Shadow of the Colossus” (SOTC) saiu em 2005, e este ano chegou a vez de “The Last Guardian” (TLG). São os três únicos videojogos criados por Fumito Ueda, três grandes visões oníricas e peculiares que dão acesso a um género próprio que opto por apelidar aqui de humanismo fantástico. Dito isto, fica claro que não podemos cingir a interpretação de TLG a si próprio, temos de olhar ao contexto do autor e suas criações prévias. Não sabemos se Ueda nos dará mais algum jogo mas esta é, desde já, uma das trilogias mais relevantes na definição da arte dos videojogos.



Podemos começar pelo que uniu ICO (analisado em 2004) e SOTC (analisado em 2013) dizendo que é o mesmo que os une a TLG, e que assenta em dois grandes pilares: a capacidade empática; e o mundo história. Nos três videojogos, os mundos são enigmáticos, nos seus sentidos mais herméticos e obscuros, ao mesmo tempo que os seus personagens são profundamente humanos, nas suas expressões mais sensíveis e de compreensão do outro.

Por outro lado, em todos os três jogos, a história é mais tema e menos trama. Ou seja, surge como pano de fundo que alimenta um enredo mínimo, estimulando o interesse e a envolvência dos jogadores pela performance e interação dos seus personagens. Temos aquilo que na academia definimos como, narrativas orientadas por personagens (character-driven narrative). Assim, não é saber quem criou aquele mundo e aqueles seres (problema ou conflito) que nos agarra, mas é antes saber como vai terminar a relação entre aqueles seres que nos move (personagens).

"ICO" (2001)

"Shadow of the Colossus" (2005)

"The Last Guardian" (2016)

Em 2001 tivemos o Rapaz e a Rapariga, em 2006 o Jovem e o Cavalo, e agora de novo o Rapaz, mas junto com uma criatura do fantástico (fusão gigante de cão, gato e pássaro). Podemos tentar explicar o que une estas três relações, e se nos esforçarmos serão múltiplas as interpretações que poderemos desenvolver, até mesmo, criar as devidas progressões e evoluções entre os três volumes. Contudo o seu criador não o fez com esse intuito, de modo que fazê-lo será estar apenas a dar azo as nossas próprias fantasias. Para mim, é suficiente reconhecer que os universos dos três videojogos se cruzam, formam um todo coerente, profundo e impactante do ponto de vista sócio-político, emocional e claro, estético. Ainda assim, arrisco a deixar a minha leitura: temos a fragilidade humana que dita a sua condição colaborativa e cooperativa; temos o instinto de sobrevivência emocional que nos empurra para o outro, para a compreensão desse outro, e obriga ao colaborativo e cooperativo; e temos, todo um mundo exterior que nos coage pela sua grandeza, pela sua estranheza e seu segredo, que nos encosta à parede e nos obriga a gritar pelo outro, a recorrer ao colaborativo e cooperativo. E assim temos um humanismo fantástico.

Não admira que durante quase uma década “ICO” tenha surgido invariavelmente citado como o videojogo mais emocional, em termos de emoções introspetivas — empatia e melancolia — já que no que toca a emoções expansivas — tensão e euforia — sempre estiveram presentes desde o primeiro videojogo. O que as obras de Ueda fazem é falar ao nosso ser, questionar a nossa condição humana, porque fazemos o que fazemos, todos os dias que acordamos e regressamos do estado de não-consciência! É isto que fazem todas as grandes obras da literatura, do cinema ou do teatro, e é por isso que os trabalhos de Ueda não se encerram sob a mera definição de entretenimento, de produto de design gerador de “fun”, são algo diferente, são obras de arte.

Design de jogo - a capacidade empática
No campo do design de jogo as obras de Ueda trabalham todas em redor dos NPC (personagens não jogáveis). Se em ICO tínhamos Yorda e em SOTC tínhamos Agro junto com os Colossus, aqui temos Trico. Em todos, temos a IA a dar vida aos NPC para que eles se tornem credíveis, mas acima de tudo para que eles proporcionem tudo aquilo que de jogo se trata. Se é da interação entre personagens que os jogos de Ueda vivem, é natural que os seus personagens tenham de ser não apenas bons, mas absolutamente perfeitos. Sim, não esqueçamos que é de arte que falamos, de uma representação do real, na qual os criadores podem recortar tudo aquilo que menos lhes interessa, mesmo que se trate de um jogo com ação passada em tempo real. Claro que para isso, foi preciso dotar Trico de um dos mais ricos repertórios de linguagem não-verbal que podemos encontrar no mundo dos videojogos.




Todos os seus movimentos foram criados, avaliados, e refinados até ao mais ínfimo detalhe para garantir um manancial comunicativo inestimável. Vai muito além de Yorda que na altura nos tinha tanto surpreendido. Diria que temos uma espécie de Yorda junto com um dos Colossus, mas imensamente mais vivo, mais, podemos dizer, humano. Mas se tudo isto é fascinante, mais ainda é quando percebemos que o propósito de tudo isso não é Trico, mas sim o nosso próprio personagem controlável, o Rapaz, atente-se nas palavras de Ueda que explicam:
“The main character is controlled by the player, so the main character is you, but because every single gamer is different, it’s very hard to give the player an exact definition of the protagonist: it’s up to you who the main character is going to be. As a developer, in order to form such a character you need assistance from that character’s surroundings – that’s where the role of the NPC, or opposite character in the case of our games, comes in. The secondary character helps shape the main character. That’s how we make our games.” Fumito Ueda 
Ou seja, Trico, tal como tinha acontecido com Yorda e Agro, comunicam em espelho aquilo que o protagonista sente, fazendo o jogador sentir-se como sente o protagonista. E é assim que surge toda a força do elemento que destaquei no início deste texto, a capacidade empática. E é exatamente aqui que TLG vai muito além dos seus antecessores, já que Trico é uma força da natureza, é verdadeiramente aquilo que o meu filho não parou de lhe chamar ao longo de todo o jogo, “o teu amigo”. E é por isso que me tenho rido sempre que leio pessoas a dizer que o TLG tem muitos problemas e bugs, nomeadamente no controlo de Trico. O que esses jogadores não perceberam é que Trico é um animal, um ser-vivo e não um robô, por isso nem sempre faz o que se lhe manda e isso é absolutamente brilhante.

Mundo história - Ambiente, Espaço e Arquitetura
Tudo o que vivemos com Trico, vivemos num mundo dotado de uma arquitectura absolutamente particular, que cria um ambiente distinto e imensamente atmosférico. Ou seja, um cenário de fantasia, fruto de uma grande mistura de variáveis próprias ao mundo de Ueda. Algo que é particularmente interessante, academicamente, já que Ueda tem dito em entrevistas, que estes mundos brotam apenas da sua imaginação, uma vez que ele dedica pouco tempo a procurar referências ou a viajar para conhecer locais. Inclusive, chegou mesmo a dizer nunca ter visitado um castelo, o que impressiona tendo em conta as estruturas presentes nos seus três jogos.

No entanto, e apesar de Ueda dizer tal, isso não corresponde completamente à verdade. Ao longo das várias entrevistas, e um pouco tirado a ferros, foi deixando cair algumas referências que entretanto Gareth Martin coligiu para a Eurogamer. Assim, e seguindo as pistas destacadas por Martin — três artistas, De ChiricoTrignacPiranesi — podemos compreender como pôde a imaginação de Ueda germinar mundos tão estranhos, impenetráveis, misteriosos, e acromáticos. A nossa imaginação trabalha por meio da nossa criatividade que só funciona quando plena de experiências, ideias e mundos. Do vazio só brota vazio.

"The Nostalgia of the Infinite", 1913, Giorgio de Chirico

"Le vieux pont", 1980, Gerard Trignac 

"La tour du pendu", 1981, Gerard Trignac

"The Man on the Rack", 1761, Giovanni Battista Piranesi


Para fechar, ainda que exista tanto e tanto para dizer sobre TLG, podemos numa primeira impressão sentir uma certa limitação na obra, nomeadamente na sua capacidade para ultrapassar as obras anteriores do autor. Inicialmente podemos sentir que TLG é mais uma atualização técnica que se socorre de um mesmo conjunto de mecânicas, valores e ideias, mas isto é algo que rapidamente se desvanece, porque a obra e o jogo deixam de o ser, dando muito rapidamente lugar ao sentir para com Trico. O mundo torna-se natural aos nossos olhos e à nossa ação, passando nós a estarmos ali, participantes de uma realidade fantástica, focados apenas naqueles personagens, nos seus desejos, motivações e bem-estar. TLG desenvolve uma experiência única, e estando em linha com as obras anteriores não deixa de ser completamente autónoma.

julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


Outros textos relacionados,
A Ciência por detrás da Arte, in Virtual Illusion
Empatia, colaboração e cooperação, in Virtual Illusion

Pensar é muito incómodo. Cientistas tentam saber porquê, in iOnline
Just think: The challenges of the disengaged mind, in Science

dezembro 30, 2013

A explicação de “engage”

Para quem segue este blog já percebeu que o conceito de empatia é aqui bastante importante. Assim como quem leu o meu livro "Emoções Interactivas", percebeu todo o fascínio que nutro pelo poder e alcance desta propriedade do comportamento humano. Quando em 2009 criámos o engageLab, o seu nome foi bastante discutido, mas acabou por prevalecer a ideia de “engagement”. Desse modo definia-se como objectivo central da nossa investigação o desenvolvimento de tecnologias, processos e modelos capazes de ampliar as propriedades empáticas entre a máquina e o humano. Para explicar melhor o que andamos a tentar fazer no engageLab, deixo um pequeno filme da RSA que ao explicar a diferença entre Empatia e Simpatia, define na perfeição, e de modo visual, aonde se pretende chegar no engageLab.


O filme “The Power of Empathy” é uma visualização animada de um excerto de uma talk de Brené Brown, investigadora da Universidade de Houston na área da vulnerabilidade humana. Ou seja, o filme fala-nos de propriedades humanas, da sua relevância para a manutenção da nossa espécie. O que eu faço aqui neste post é pedir-vos para verem além dessa relevância, para irem além da ligação humano-humano e olharem para ligação humano-máquina. Claro que isto não é algo simples, longe disso, mas a investigação científica só vale a pena quando os objetivos a atingir são difíceis e por vezes nos parecem mesmo impossíveis.
“The truth is, rarely can a response make something better - what makes something better is connection.” Brené Brown

novembro 20, 2013

análise do uso de LEGO no ensino da Matemática

Encontrei um artigo sobre o uso de LEGO que é extremamente interessante pela análise que faz, e pela meta-análise que proporciona do LEGO. A análise centra-se sobre a importância do LEGO para o ensino da matemática. A meta-análise surge no modo como Alycia Zimmerman enquadra o LEGO no seu crescimento, contando-nos que em pequena não conseguia perceber o encantamento que essas pequenas peças tinham sobre os seu irmãos, para ela não passavam de "blocos rígidos". Alycia vai mais longe ainda e refere que a grande maioria dos professores de hoje são mulheres e que por isso existe uma grande probabilidade de estas não terem brincado suficientemente com LEGO.



Nesta constatação de Alycia verificamos apenas o velho paradigma, já bem enunciado por Baron-Cohen, de que o cérebro masculino está mais orientado aos sistemas, e o feminino à empatia (ver post anterior). Apesar destas abordagens não poderem assumir-se como absolutas, tal como não podemos assumir que todo o ser humano é heterosexual, sabemos que serve numa análise de médias gerais. Dos meus estudos à volta deste assunto, venho concluindo que a generalidade dos homens, por possuírem maiores níveis de testosterona, agem mais sobre o mundo exterior e para isso precisam de o sistematizar, estruturar e quantificar. Já as mulheres, maiores produtoras de ocitocina, têm uma maior tendência para a proximidade e intimidade com o outro, tornando-se melhores na gestão de relações humanas.

E foi isso que mais me interessou neste texto de Alycia Zimmerman, além da sua contribuição com exercícios para a aprendizagem de matemática. O modo como ela concebe que o LEGO é à partida algo mais atractivo para os rapazes do que para as meninas. Mas é também algo que não afasta as meninas, já que se torna também muito interessante para estas, não pelo seu lado de sistema, mas pela sua componente estética.

No fundo, o diferente da sua abordagem ao ensino está no modo como ela realiza o esforço de captação da atenção dos seus alunos. Alycia criou exercícios com LEGO para o ensino da matemática, sabendo que deste modo estaria a criar pontes de empatia com os seus alunos. A questão não é o LEGO ser a melhor ferramenta para o caso. A grande questão, e no fundo o que revela a inteligência social feminina desta professora a funcionar, é ela ter ido buscar elementos do mundo das crianças para através destes metaforizar o mundo abstracto da matemática. Isto é ensinar Matemática de um modo que só um cérebro feminino conseguiria fazer. Porque só a sua necessidade de gerar empatia no receptor, o aluno, a levaria a desenhar ideias a partir do mundo dos seus interlocutores.


Para todos os que ensinam matemática, professores ou pais que têm de ajudar os seus filhos, aconselho vivamente a leitura do texto e o download das fichas de exercícios com LEGO.

julho 04, 2013

a empatia e a moral estão inscritas na nossa biologia

Ainda não foi há muito que aqui falei dos estudos de Paul Bloom sobre o lado negro da moral. Hoje trago a TED de Paul Zak, Confiança, Moralidade e Oxitocina, sobre o seu trabalho em redor da chamada "molécula da moral". Em ambos os casos, verifica-se que a selecção natural, dentro da espécie humana, nos tem conduzido a uma optimização biológica que tem como objectivo máximo a criação de seres profundamente sociais. A espécie tem progredido em função da sua capacidade para gerar laços, comunidade, colaboração, interdependência, entreajuda, e tudo aquilo que congrega, e une cada ser humano ao outro. Então porque raio teimamos no isolamento?


A base do nosso sistema moral, aqui defendido por Zak, assenta em duas moléculas, a Oxitocina e a Testosterona. Sendo a a Oxitocina responsável por gerar Empatia, enquanto a a Testosterna é responsável por gerar o seu contrário.
"Mostrámos que a infusão de oxitocina aumenta a generosidade em transferências monetárias unilaterais em 80 por cento. Mostrámos que aumenta os donativos para a caridade em 50 por cento. Também investigámos formas não farmacológicas de aumentar a oxitocina. Que incluem massagens, dança e orações… sempre que aumentámos a oxitocina, as pessoas abriram as suas carteiras voluntariamente e partilharam dinheiro com estranhos.
Mas porque é que fazem isso? O que é que sentem quando o cérebro é inundado de oxitocina? Para investigar esta questão, fizemos uma experiência em que as pessoas viam um vídeo de um pai e do seu filho de quatro anos, e o seu filho tem cancro terminal no cérebro. Depois de verem o vídeo, eles avaliaram as suas emoções e deram amostras de sangue antes e depois para medir a oxitocina. A mudança na oxitocina previu as suas emoções de empatia. Por isso é a empatia que nos liga às outras pessoas. É a empatia que nos faz ajudar as outras pessoas. É a empatia que nos faz morais."
Já sabíamos que aquilo que gera um psicopata é a sua incapacidade para sentir Empatia. Agora ficamos a saber que aquilo que gera um psicopata, é a sua incapacidade biológica para gerar Oxitocina.
"Descobrimos, testando milhares de indivíduos, que cinco por cento da população não liberta oxitocina quando estimulada. Se houver dinheiro na mesa, eles ficam com ele todo… Têm muitos dos atributos que têm os psicopatas."
Outra grande questão é que a Oxitocina pode ser inibida. Ou seja, não se trata de nascer apenas com um problema genético. A falta de carinho, a violência e o abuso destroem a capacidade de gerar oxitocina. Aliás, não é por acaso que uma grande parte dos psicopatas são pessoas que sofreram abusos de alguma forma.
"Há outras formas de o sistema ser inibido. Uma é através de cuidados afectivos inadequados. Estudámos mulheres abusadas sexualmente, e cerca de metade não libertam oxitocina quando estimuladas. Precisamos de cuidados afectivos suficientes para este sistema se desenvolver devidamente. Além disso, o stress elevado inibe a oxitocina." 
Finalmente o mais interessante sobre a molécula oposta, a testosterona, é que o Homem possui 10 vezes mais que a mulher, assim como a mulher possui 10 vez mais oxitocina. Ora, será preciso alguma coisa mais para se perceber, de uma vez por todas, que a forma como um Homem e uma Mulher reagem emocionalmente, e logo racionalmente, são diferentes? Depois disto ainda haverá alguém que se sinta capaz de evocar a Cultura, e a formatação da sociedade, para dizer que estes são os responsáveis pelas diferenças que existem entre género? É claro que existem variações, existem mulheres com níveis maiores de testosterona, e homens com níveis maiores de Oxitocina. Mas a realidade é que estamos perante diferenças do foro biológico, que condicionam fortemente aquilo que somos.

"Há outra forma de a oxitocina ser inibida, que é interessante através da acção da testosterona. Em experiências, administrámos testosterona a homens. E em vez de partilharem dinheiro, eles tornaram-se egoístas… Agora pensem nisto. Significa que, dentro na nossa biologia, temos o yin e o yang da moralidade. Temos a oxitocina que nos liga aos outros, que nos faz sentir o que eles sentem. E temos a testosterona. E os homens têm 10 vezes mais testosterona que as mulheres, por isso os homens fazem isto mais que as mulheres, temos testosterona que nos faz querer punir as pessoas que se comportam imoralmente. Não precisamos de Deus ou do governo para nos dizer o que fazer. Está tudo dentro de nós."
Para fechar quero apenas deixar a receita que Zak deixa, a quem quiser ser mesmo feliz nesta vida, e que consiste num acto diário simples, mas poderoso, Zak recomenda "oito abraços por dia."


É inevitável não pensar em todas aquelas campanhas que vamos vendo um pouco pelas cidades mais cosmopolitas, em que as pessoas vivem cada vez mais isoladas, de oferta de abraços grátis. É uma realidade que estes nos comovem, nos fazem sentir, mesmo quando não conhecemos o outro, porque o abraço é um elemento físico de toque, fundamental no estabelecimento de empatia.

TED Talk de Paul Zak, "Trust, morality and oxytocin" (2011)

Se preferirem ver a palestra com legendas em português, vejam directamente no site TED.

abril 05, 2013

a criança e o brinquedo

"Nestas idades, todos eles são mais ou menos iguais. Eles querem apenas brincar." É esta a conclusão de Gabriele Galimberti ao fim de 18 meses passados a fotografar crianças junto dos seus brinquedos preferidos. Ainda assim Galimberti diz que se podem notar diferenças no modo como brincam.

Niko - Homer, Alaska
"As crianças mais ricas, eram mais possessivas. No início, não queriam que eu tocasse nos seus brinquedos, e eu precisava de mais tempo até que elas me deixassem brincar com eles. Nos países pobres era muito mais fácil. Mesmo que apenas tivessem dois ou três brinquedos, elas não se importavam. Na África, as crianças brincavam essencialmente com os amigos fora de casa."
Mais interessante, é a conclusão de Galimberti a propósito daquilo que se pode extrair em termos associativos. Ele sentiu no seu trabalho que de algum modo aqueles brinquedos refletiam também as ambições e mundos dos pais de cada criança. A mãe da Letónia que guiava um taxi e enchia o filho de carrinhos. O agricultor italiano cuja filha orgulhosamente exibia ancinhos, enxadas e pás de plástico. Os pais do Médio Oriente e da Ásia que quase empurravam os miúdos para serem fotografados, mesmo aqueles que não estavam muito dispostos a isso. Enquanto os pais da América do Sul estavam muito mais relaxados e diziam que podia fazer o que quisesse, desde que o seu filho não se importasse.

Os brinquedos são uma parte extremamente importante da cultura humana. Nesta imagem podemos ver um brinquedo grego do Século IV A.C. [Brinquedo em exposição no Museu Arqueológico de Atenas. Fonte]

Do meu lado, o que mais me impressionou neste retrato internacional, foi a obsessão do ser humano pelos conjuntos de peças, de diferentes formas e cores. Como se existisse uma necessidade constante de juntar mais ao que já temos, uma espécie de colecionismo processado ao nível mental. Repare-se na menina da Zambia e os seus óculos de sol, ou no menino do Texas com os seus aviões. Impressiona-me em termos cognitivos, porque se reflete ao longo de toda a nossa vida. Aquilo que buscamos nos brinquedos, de algum modo não se diferencia muito daquilo que vamos procurar mais tarde, na nossa vida. Não me refiro concretamente ao tema dos brinquedos, mas à nossa relação possessiva e coleccionista com estes.

Empatização e Sistematização (Baron-Cohen, 2003: 178)

Sobre os temas, apesar de toda a influência circundante, própria de seres em construção e modelação, o que mais me impressiona é a reiterada clivagem entre meninas e meninas, e uma tão clara afirmação e peso das bonecas para meninas e de carros para meninos. Apesar de podermos encontrar excepções, maioritariamente e independentemente do continente, podemos dizer que universalmente as meninas brinca com bonecas e peluches, enquanto os meninos brincam com carros, comboios e aviões. Sei bem que se levantam muitos contra esta diferença, afirmando que é meramente criada pela sociedade. Do meu lado o que vejo aqui, é aquilo que venho falando, baseado nos trabalhos de Baron-Cohen (ver imagem acima). As meninas recorrem às bonecas porque elas estimulam a imaginação no campo da empatia e do relacionamento social. Já os rapazes recorrem aos carros porque estes evocam a sua motivação para compreender como é que os sistemas funcionam. Isto não quer dizer que não existam homens mais empáticos, e mulheres mais orientadas aos sistemas, mas como podemos ver nesta série fotográfica são mais excepção do que regra.

Allenah - El Nido, Philippines

Abel - Nopaltepec, Mexico

Bethsaida – Port au Prince, Haiti

Chiwa – Mchinji, Malawi

Cun Zi Yi – Chongqing, China

Davide - La Valletta, Malta

Elene - Tblisi, Georgia

Farida - Cairo, Egypt

Arafa e Aisha – Bububu, Zanzibar

Jaqueline - Manila, Philippines

Julia – Tirana, Albania

Kalesi - Viseisei, Fiji Islands

Li Yi Chen - Shenyang, China

Keynor – Cahuita, Costa Rica

Lucas - Sydney, Australia

Maudy - Kalulushi, Zambia

Naya - Managua, Nicaragua

Noel - Dallas, Texas

Norden – Massa, Morocco

Orly - Brownsville,Texas

Pavel – Kiev, Ukraine

Puput - Bali, Indonesia

Shaira – Mumbai, India

Ragnar - Reykjavik, Iceland

Ralf - Riga, Latvia

Reanya - Sepang, Malaysia

Ryan - Johannesburg, South Africa

Stella – Montecchio, Italy

Taha - Beirut, Lebanon

Talia - Timimoun, Algeria

Tangawizi – Keekorok, Kenya

Tyra - Stockholm, Sweden

Alessia – Castiglion Fiorentino, Italy

Botlhe – Maun, Botswana

Enea - Boulder, Colorado