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outubro 25, 2020

As origens dos Rougon-Macquart

“La Fortune des Rougon” (1871) é um livro menos conhecido de Zola, no entanto é um livro de grande importância para o conhecimento da sua obra, por se tratar do livro que inicia a sua série “Rougon-Macquart” (1871-1893). Esta série é ela mesma o seu maior legado, não apenas pelas 20 obras que a perfazem, mas pela planificação, dedicação e intenção votada à mesma. Zola, muito impressionado com “A Comédia Humana” de Balzac (92 livros, escritos entre 1830 e 1856), decidiu avançar para algo próximo, ainda que menos ambicioso, mais focado, deixando a sociedade como um todo para se focar na família, como ele diria “menos social e mais científico”:

“Je veux expliquer comment une famille, un petit groupe d’êtres, se comporte dans une société, en s’épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus, qui paraissent, au premier coup d’œil, profondément dissemblables, mais que l’analyse montre intimement liés les uns aux autres. L’hérédité a ses lois, comme la pesanteur.” Émile Zola, Préface, “La fortune des Rougon”, 1871

Tendo em conta este enquadramento percebe-se a relevância maior de “La Fortune des Rougon” que como diria J.K. Huysmans, poucos anos depois do lançamento, em 1877, que “deveria ter como verdadeiro título, as Origens”. É nesta obra que conhecemos Adelaide Fouque a progenitora de toda a árvore genealógica dos Rougon-Macquart, algo que é per se um facto de grande peso, já que nos faz sentir e compreender não apenas a família que vamos acompanhar ao longo de décadas, mas como funciona em essência a espécie humana, a sua arborescência natural e progressiva florescência. 

A árvore genealógica dos Rougon-Macquart criada por Zola na planificação da sua obra (versão de 1878)

Existe algo na questão familiar que nos fascina intrinsecamente, o compreender como surgem os seres-humanos, assim como o compreender como estamos todos interligados, apesar de toda a nossa aparente individualidade. Nascemos como bonecas russas, uns dos outros, brotamos como frutos que por sua vez dão origem a novos frutos, que seguem em ciclos, de morte e nascimento, em que a vida dá lugar à morte, mas a morte é apenas o fim de uma etapa, não do todo. A família surge de uma pessoa apenas que se une a outra a partir do que se originam dezenas, centenas, milhares, milhões de outras vidas, tornando impossível o fim, tornando possível o infinito dos legados de cada um de nós. É todo um processo de aparente naturalidade, mas deveras impressionante, pela complexidade de cada nova vida que surge a partir de algo tão insignificante como a união de duas microscópicas células. Zola não fala desta biologia, foca-se na interação humana, nas relações, intenções, motivações e desgostos e como trespassam os humanos nas suas encadeações familiares, o que inevitavelmente nos leva a questionar não apenas a família Rougon-Macquart, mas a imagem natural de qualquer família.

Quanto à escrita e forma, sendo boas, têm alguns momentos menos conseguidos, com excessivo estender de algumas cenas ou falhas na ilustração de algumas ações, mas talvez o pior seja mesmo o excesso de exposição em detrimento da ação dramática. Zola sente-se a contar o início de uma história, e conta descrevendo, esquecendo muitas vezes de mostrar o que se passou, fazendo com que por vezes conte a penas a informação que está a ser debitada para nosso registo. Ainda assim, provavelmente pela relevância dessa informação para o resto dos livros que pensamos querer ler, mantém-nos sempre interessados, progredindo atrás de cada um dos filhos de Adelaide e seus netos.

Sobre a continuidade da leitura, fiquei em dúvida. Este foi o meu terceiro Zola, depois do magnífico “Germinal” (1885) (que é o 13º volume dos Rougon-Mcquart), e do interessante “Thérèse Raquin” (1867) (o seu terceiro livro e primeiro sucesso literário), e aproximou-se mais de Thérèse do que de Germinal, o que não me dá suficiente força para ir a correr ler os restantes volumes. Contudo, e tendo em conta a facilidade com que se podem ler os livros em qualquer ordem, penso ler mais alguns dos volumes, ao longo dos próximos tempos, nomeadamente “L'Assommoir” e “Nana” e ver como corre, talvez ainda também “L'Œuvre” e “La Bête humaine”. É certo que este livro me deixou com vontade de ler o último, por ser dedicado ao filho mais íntegrou dos Rougon, “Le Docteur Pascal”, mas esse terá de esperar. 

Para quem quiser entrar na aventura, deixo a recomendação de um sítio "Le Compagnon des Rougon-Macquart", onde poderão encontrar muitíssima informação sobre a série, não só críticas e resenhas à data de saída de cada livro, mas também considerações, esboços e planos de Zola para a escrita e construção da saga. 

A Editora Civilização lançou em Portugal, nos anos 1980, todos os 20 livros encadernados em 10 volumes de luxo. Existem múltiplas edições das encadernações, eu comprei até agora 4 volumes, pertencentes a 3 séries diferentes, ainda que o conteúdo interno seja igual entre todas as edições.

Sobre as edições e traduções, comprei alguns volumes da coleção completa em 10 volumes da Editora Civilização, mas fiquei um tanto mal impressionado com algumas partes da tradução, de modo que li apenas um terço nessa, acabando de ler o livro no original. O francês de Zola não é fácil, nomeadamente pelos tempos verbais usados, mas ainda assim pareceu-me acessível. A Biblioteca Eletrónica do Quebec disponibiliza os 20 volumes em francês gratuitamente.

julho 08, 2019

Therese Raquin (1867)

"Therese Raquin" (1867) é um romance curto, quase uma novela, centrado num triângulo amoroso com crime, e as consequências psicológicas desse crime. O cenário é tão antigo como o humano, a novidade assenta no modo como Zola trabalha os efeitos do crime, como entra pelas mentes dos criminosos adentro que soltos de culpa oficial não conseguem livrar a sua consciência da mesma. É algo que já tinha sido feito, com grande sagacidade no ano anterior, pelas mãos de Dostoiévski com “Crime e Castigo” (1866). Zola não desilude, mas corre mais riscos, apesar de naturalista não consegue evitar uns certos traços de terror psicológico por via de algum exageramento. O livro continua a ler-se bem ainda hoje, mas talvez o mais interessante seja mesma a parte académica, o lançamento da obra e as críticas duras que recebeu, o que pretendia Zola fazer e as justificações nos prefácios seguintes, assim como as adaptações para teatro e depois cinema.


Deixo ainda uma nota, estes clássicos têm sempre algo de mais relevante que é o modo como nos dão a ver outras épocas, os costumes e comportamentos, os receios e os despreendimentos. Uma das cenas mais impressionantes deste livro acontece na descrição do funcionamento da morgue de Paris em 1860. É uma descrição absolutamente macabra. Deixo um excerto:
“A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogéneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o rito de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cómicas no silêncio arrepiante da sala.”

junho 27, 2017

Germinal (1885)

Zola é considerado o pai do naturalismo literário, mas é um naturalismo muito particular que vem carregado de simbolismo e melodrama. Zola parte de uma abordagem panfletária assente em intensidade retórica, mas não deixa de lado toda a maquinaria da narrativa e persuasão dramática para nos envolver e ao mesmo tempo instigar à reflexão. O resultado é uma obra muito forte que nunca se verga porque não procura dar respostas, exatamente por fugir ao panfleto e porque está mais interessada em questionar o fundo da tragédia.

"Germinal" acontece numa região mineira francesa focando-se numa greve desencadeada por uma crise internacional que pressiona a baixa de salários. O conflito serve para descrever as condições de trabalho, a criação de uma organização sindical de operários e as reações da burguesia e do capital. Pelo meio ficamos a conhecer as condições em que trabalham e vivem os mineiros que servirão para nos interrogar sobre a natureza do humano.
O naturalismo literário apesar de se definir como imanente das grandes teorias científico-naturais da época (nomeadamente a teoria da evolução de Darwin), e apesar de considerar o humano na sua envolvente natural e biológica, afastado das problemáticas religioso-superticiosas, serve-se da força da tragédia dramática para acentuar a emoção narrativa. Ou seja, tendo ideias fundeadas na natureza para relatar, não procura formas expressivas, ditas naturais, para o fazer. Isto é tanto mais evidente quando comparado, por exemplo, com o chamado neo-realismo italiano (movimento artístico cinematográfico dos anos 1940-50), em que para dar conta de forma naturalista das realidades vividas, se empregavam atores não-profissionais, filmava-se nos locais reais, e usava-se uma cinematografia o mais sóbria possível. É verdade que em termos narrativos também se apontava o foco às tragédias e aos dilemas, contudo notava-se uma tentativa de refrear os mecanismos do cinema para não impactar de modo visceral os espectadores.

Zola pelo seu lado não olha a meios. Vai ao fundo da investigação sobre o que está a relatar. Passou meses numa comunidade de mineiros e desceu ao fundo de várias minas para compreender a brutalidade da experiência, trazendo tudo para o centro do livro. Mas não se limita a descrever ou sequer demonstrar, tudo é envolvido por um teia de personagens ainda que naturalistas, colocados em situações de conflito geometricamente definidas para produzir impacto dramático nos leitores. Isto é tanto mais evidente pela quantidade de situações simbólicas que vão surgindo ao longo do texto (ex. título da obra, os nomes das minas e de vários personagens; a descida e subida dos cavalos; os corpos que bóiam; ou os excisados das partes), quanto pelo melodrama representado na figura do romanceado do trio de personagens centrais; ou do administrador da mina e da sua infiel mulher.

Imagem do filme de Claude Berri:"Germinal "(1993)

Lê-se que Zola terá optado por uma componente romanceada, com tragédia amorosa, com o objetivo de poder fazer chegar a obra a um público mais vasto, nomeadamente às pessoas com quem conviveu e que lhe serviram de modelo nas minas que visitou. Acredito que sim, tal como acredito que isso é também responsável pela popularidade do livro. Ou seja, questões complexas e muito pouco digeríveis — como a formação de um sindicato, os excessos do capitalismo, as alternativas do comunismo e da anarquia, ou os direitos e os deveres de trabalhadores — não teriam sido capazes per se de catapultar esta obra. Mas de certo modo, esse romancear, ou melhor a nossa necessidade desse romancear, acaba por ir de encontro ao naturalismo. Se desejamos apresentar uma realidade da forma mais natural possível, não deverá essa mesma apresentação realizar-se seguindo a forma mais natural de o recetor/leitor a compreender? É muito provável que Zola tenha conseguido com esta obra algo que tão raramente se consegue, juntar a necessidade de expor factos e a necessidade de experienciar esses factos.
“Esses operários chapeleiros de Marselha que ganharam a sorte grande de cem mil francos e, imediatamente, foram comprar títulos, dizendo que de agora em diante iam viver sem fazer nada! Essa é a intenção de todos vocês, operários franceses: encontrar um tesouro e em seguida comê-lo sozinhos, refestelados no egoísmo e na vagabundagem. Gostam de gritar contra os ricos, mas não têm coragem de dar aos pobres o dinheiro que a sorte lhes envia... Vocês nunca serão dignos da felicidade enquanto possuírem alguma coisa, enquanto esse ódio aos burgueses for apenas o desejo desesperado de serem burgueses também.”
Apesar desta minha aparente crítica, “Germinal” é brutalmente naturalista no que à psicologia e fisiologia se refere. Não é por acaso que muitos se distanciam da obra, pela sua fealdade, pelo retrato grotesco que do humano dá. Zola opera como investigador de microscópio em punho, olhando ao detalhe e relatando ainda mais detalhadamente, o que sentem as pessoas e como sentem. Não há pejo, as palavras são ditas, os atos selvagens representados sem dó, e ao leitor resta esconder-se no cantinho da sua humanidade, e esperar não ser contagiado por tanta barbaridade. Da promiscuidade ilimitada ao assassinato sem motivação, tudo surge por força da natureza humana, da impossibilidade de fugir às malhas naturais não domadas ainda pela civilização.



Imagens reais de mineiros e mineiras da época

Aliás, isso é aquilo que mais ressalta para mim de toda esta obra, mais até do que o fortíssimo ataque ao capitalismo, a animalidade humana. Uma comunidade que durante uma centena de anos trabalhou de sol a sol para ter um tecto e pão na mesa, a quem todos abandonaram. Atirados para um bairro, reduzidos à condição de irrelevantes, sem acesso a escolas, a quem nem sequer a Igreja ligava. Submetidos ao mínimo das necessidades fisiológicas —  a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção e o abrigo (Maslow)—, não restando tempo nem espaço para as restantes necessidades — a segurança, a família, a auto-estima, impossibilitando qualquer almejo de realização pessoal. Zola tendo sentido isto mesmo, dá-o a sentir de forma absolutamente detestável, é difícil ler porque é difícil aceitar que assim se possa viver.

“Germinal” é leitura obrigatória nas escolas francesas, mas não faria mal nenhum se também o fosse nas escolas portuguesas. As primeiras páginas não cativam, mas chegando ao fim da primeira centena torna-se impossível parar o virar de páginas. O desenho da narrativa, a suspensão ante o que vai acontecer a seguir, e o ritmo intenso traduzido em frases curtas e muito diretas, fazem desta obra tão profundamente sócio-política um autêntico thriller. Poder aprender sobre um tema que passados 100 anos continua atual por meio de toda uma experiência de leitura altamente envolvente, tem um valor inestimável.


Nota sobre a tradução. É uma pena que a única tradução portuguesa de Eduardo de Barros Lobo date já de 1885. Apesar de não lhe apontar propriamente erros formais, a fluidez e ritmo tão caros a Zola, perdem-se completamente. Acabei por preferir a leitura na tradução em Português do Brasil, de Francisco Bittencourt para Abril, de 1981.