"Emília" (2023), de Filipa Amaro, é a mais recente série da RTP, e apresenta um discurso inteligente sem nunca se levar demasiado a sério. Parecendo por vezes dirigida a um público mais jovem, apresenta um discurso cómico-existencialista, capaz de cruzar a realização pessoal pela arte com o síndrome do impostor e um certo niilismo suave.
junho 11, 2023
março 26, 2023
O não-consciente de Cormac McCarthy
"Stella Maris" é o segundo volume da obra que Cormac McCarthy lançou em 2022, 16 anos depois do seu último livro, agora com 89 anos. Se no primeiro volume, "O Passageiro", nos introduziu a um mundo denso e complexo de ações humanas para as quais não parecia possuir uma ideia concreta a transmitir, "Stella Maris" é todo o contrário, quase vazio de ação, completamente focado naquilo que tem para dizer, ainda que o faça por meio de alguém em quem não podemos confiar totalmente, pelo diagnóstico de loucura a que está votada. É uma viagem científica realizada por meio de um vertiginoso diálogo entre um terapeuta e uma paciente, 20 anos, que desistiu de fazer o seu doutoramento em matemática para se auto-internar no hospital pisquiátrico Stella Maris.
setembro 11, 2021
Na esplanada do Existencialismo
Numa palavra, brilhante. É com uma enorme admiração por Bakewell que chego ao final da leitura de "At the Existentialist Café: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), plenamente satisfeito com o conhecimento e experiência proporcionados. Sarah Bakewell fala a partir de um enorme lastro de conhecimento sobre a corrente do existencialismo, assim como das histórias de vida dos seus autores mais reconhecidos: Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Brentano, Merleau-Ponty, Camus, Sartre e Beauvoir. Bakewell usa as histórias dos filósofos para construir uma narrativa ligeiramente romanceada — usando como personagens centrais: Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Beauvoir —, apresentando todo o conhecimento fora do reino da abstração e focado nas histórias, relações, ações e decisões ao longo do século XX. Desta forma, a leitura permite-nos não só compreender os objetivos, alcance e limitações da corrente, como o contexto das suas origens e desenvolvimento. Ao chegar ao final, sentimos conhecer de perto não só aquelas pessoas e o seu tempo, mas acima de tudo as razões que suportaram as suas ideias.
janeiro 22, 2020
"My Year of Rest and Relaxation" (2018)
Em “My Year of Rest and Relaxation” encontramos uma personagem feminina nova e bonita, recém-licenciada, vivendo em Nova Iorque no final do milénio passado. Quando entrou para a Universidade perdeu ambos os pais e teve de se desenrascar sozinha, conquanto estes lhe terem deixado meios para continuar a ter casa, comida e fazer o que quisesse sem preocupações financeiras. Prossegue licenciando-se em História de Arte, mas pouco depois de terminar, que é quando a encontramos, parece ser quando tudo finalmente se abate dentro de si. O seu único desejo é dormir, passar o máximo de tempo possível a dormir. Para o efeito recorre a uma psiquiatra alucinada que lhe vai passando drogas cada vez mais fortes para dormir, até começarem a produzir vários efeitos secundários.
No início, ficamos colados a tentar perceber o que leva alguém a querer dormir ininterruptamente, porque em última instância parece uma espécie de suicídio mas sem o problema da irreversibilidade, e talvez tenha sido isso que mais me atraiu. Embora, e tendo em conta as doses de medicamentos usadas, pudesse ser visto como mero entorpecimento por drogas, para esquecer o mundo, que é aquilo que acaba por acontecer com os toxicodependentes. Mas existe algo que descarta essa hipótese que é a consciência da realidade e vontade férrea de conseguir levar o seu projeto de dormir o máximo possível avante.
Se tudo isto é interessante pela estranheza, o enredo e as competências de Moshfegh não são menos já que passamos todo o tempo em casa com a protagonista que vai falando com outros personagens, mas poucos, o que demonstra a grande capacidade de contar e manter-nos interessados da autora. Num livro que atravessa pouco mais de um ano, esse ano é passado numa luta para conseguir dormir mais e mais, dentro de quatro paredes. Nada se faz, nada mais se pretende ou objetiva além de dormir, e no entanto ali estamos a seguir, interessados e focados, a tentar compreender a psique da personagem, a tentar perceber o que se passa na sua cabeça. É impressionante como tudo parece tão banal e natural e no entanto se pensarmos no que vai sendo representado em cada página, no modo como se vão criando mundo e ação de personagens, existe aqui uma capacidade expositiva excepcional atuando para nos manter focados no que irá acontecer a seguir, mesmo sabendo que pouco ou nada se espera que aconteça.
É provável que a escrita na primeira-pessoa e em jeito de memórias ajude, conferindo uma espécie de véu de verdade, mas isso é apenas parte da técnica Moshfegh. Acredito que é também responsável o humor negro utilizado para analisar e depreciar a realidade, as relações humanas, e mostrar o mundo a partir de um olhar distinto, desprendido das necessidades diárias — dinheiro, comida, amor — que nos dá a sentir um mundo em parte decadente, mas ao mesmo tempo liberto de pressões que parece querer conduzir-nos a uma compreensão mais cabal do que representa tudo isto e aquilo que costumamos definir como nós, ou Eu. Tendo em conta o cenário, defini-o como existencialismo naif, uma espécie de preocupação, simultaneamente despreocupada, com aquilo que somos e valemos.
O final é expectável, é impossível ler um livro passado naquelas datas, naquela cidade e não esperar que desemboque naquele fatídico dia, 11 setembro. No entanto ao bater naquela última página não consegui deixar de sentir intensamente o momento que fez com que aquela personagem rodasse integralmente na minha frente, passando em revista os vários momentos vividos com ela ao longo da leitura do livro. Porque querendo ou não, é um momento que recoloca de novo tudo em causa... Pode-se dizer que é uma manobra de Ottessa Moshfegh para garantir um murro emocional, mas repare-se que ela poderia ter gerado todo um turbilhão com o fechar desse dia, no entanto opta por uma descrição sintética, sem grandes divagações, e mais, ao longo das páginas anteriores vai pré-anunciando o evento, retirando-lhe a carga que poderia ter preservado para jogar sobre nós nesse final. Claro que se tivesse usado o evento dessa forma não teria como escapar à acusação acima. Por isso, estamos na presença de alguém muito consciente do que é a literatura, com um domínio magistral não apenas da técnica de escrita, como da compreensão dos leitores e da receção dos textos. Quanto às interpretações, cada um fará as suas.
Nota quantitativa no GoodReads.
dezembro 04, 2019
O peso da existência
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
junho 20, 2016
“Viagem ao Fim da Noite” (1932)
Este lado misantropo de Céline fica bem evidente a meio do livro quando este define o propósito da vida:
"E o pior é pensar como vamos arranjar forças bastantes para continuar a fazer no dia seguinte o que fizemos na véspera e em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para as diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, essas tentativas de vencer a pesada necessidade, tentativas que abortam sempre e todas destinadas a convencer-nos, uma vez mais, de que o destino é insuperável, que todas as noites temos de cair da muralha com a angústia de ser sempre mais precário, mais sórdido, esse dia seguinte.Algo que se repete ao longo da entrevista à The Paris Review, na altura com 66 anos, com a confirmação do texto acima a surgir numa questão muito direta:
Talvez seja a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Em nós já não temos música suficiente para fazer dançar a vida, ora aí está. Toda a juventude foi morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde havemos de sair, pergunto eu, se em nós já não há uma suficiente soma de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Temos de escolher: mentir ou morrer. Eu cá nunca pude matar-me." (p.194)
Entrevistador: "Quando na sua vida foi feliz?"Na escrita, “Viagem ao Fim da Noite” apresenta-se como uma espécie de discurso oral escrito, parecendo simples mas longe de o ser, capaz de nos oferecer momentos de verdadeiro êxtase literário, permitindo ao mesmo tempo ao autor introduzir mundos de puro grotesco, naturais nalguma oralidade mas sempre distantes da literatura que habitualmente nos protege higienizando as formas descritivas, levando-nos assim a recordar a crueza de Henry Miller. Por outro lado esta oralidade, apesar de muitas vezes direta e na primeira-pessoa, nem sempre é acessível destacando-se por alguns breves rasgos de fluxo de consciência.
Céline: "Raios nunca, penso eu."
No tema, temos o relato de uma grande viagem, uma vida ou várias vidas, através das quais vamos descobrindo o interior do personagem, uma espécie de autobiografia do autor, que vai dando conta da diversidade do mundo, no qual convive uma certa harmonia de falso viver, de mentira na aceitação do quão difícil é o simples ato de respirar. Viajar, um pouco à semelhança da música de António Variações, parece ser a única reposta possível à platitude da vida, uma busca por algo nunca encontrado, ou um alimentar da esperança por esse encontro, por forma a dar resposta à insustentável motivação de viver, já que o credo do amor aqui não entra.
“Como não passamos de recintos com tripas mornas e quase apodrecidas, havemos sempre de ter dificuldades com o sentimento. Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil. A imundície, essa, não procura resistir nem desenvolver-se. Aqui, neste ponto, somos bem mais infelizes do que a merda; no nosso estado, a fúria de preservação constitui uma tortura incrível.” (p.312)