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setembro 10, 2018

Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia

Em 1992 os The Disposable Heroes of Hiphoprisy lançavam um álbum de rap intitulado "Hypocrisy Is the Greatest Luxury" no qual atacavam as hipocrisias da sociedade desse tempo. A banda punha o dedo na arte, na política, no emprego, no consumismo, no racismo, no sistema financeiro e na recessão, no bullying e no suicídio. A música homónima do álbum abria com os versos abaixo, que poderiam ter sido facilmente escritos em 2018, mas foi a faixa 3 que ficou desse álbum e porque deles me lembrei, e que se intitulava: "Television, the Drug of the Nation".

"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)


Repare-se que em 1992 a complexidade gerada pela sociedade de informação ainda vinha longe. A internet só existia nos departamentos de informática das Universidades, era a Televisão que regulava as nossas vidas, dizia-nos o que vestir, o que ouvir, ver, ou ler. Como se dizia nesta faixa 3:

“One nation 
Under God 
Has turned into 
One nation under the influence 
Of one drug [television](ouvir)

Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.

A Mathematical Intelligencer depois de aceitar o artigo, deu a aceitação como recusa. O NYJM depois de publicar o artigo, apagou-o sem qualquer explicação ou justificação, e substitui-o por outro artigo, fazendo com que  a publicação anterior nunca tivesse existido.

O apagamento de um artigo de uma revista científica, sem qualquer explicação, é em termos de simulacra comparável aos apagamentos políticos protagonizados pelo aparelho de Estaline.

Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
"Egregious: A math paper that tries to explain a fascinating fact (greater male variability) is censored. Again the academic left loses its mind: Ties equality to sameness, erodes credibility of academia, & vindicates right-wing paranoia." [@sapinker]
Falamos de puro tráfico de influência, de batalhas ideológicas de submissão do outro. Tudo isto esquecendo a Ciência, esquecendo que por mais benéfica que uma ideia nos possa parecer, ela não se transforma em realidade por simplesmente o desejarmos. E que nem sempre aquilo que o colega nos diz que lhe parece ser, o é verdadeiramente. O Facebook vem sendo um palco cada vez maior para todo este tipo de comportamentos, em que vamos assistindo a colegas da academia que deveriam ser isentos, imparciais, defensores do pensamento científico aberto e livre, mas que se deixam embalar pelas inflamações do momento, que aceitam partilhar notícias falsas apenas para promover a guerrilha ideológica. Contudo, e ao contrário de Pinker, não vejo isto como um problema de um dos lados, isto é um problema de ambos — Esquerda e Direita — que se polarizaram tremendamente, não por causa direta do Facebook, mas não se pode dizer que este não tenha vindo a servir de catalisador emocional de toda essa polarização.

Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.

Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).

A esmagadora maioria dos estudos demonstram que a variável que mais afectou o aquecimento foi a humana. Mas isso é razão para não se discutirem outras hipóteses? Para não mantermos a mente aberta? [fonte da imagem]

Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.


Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:

“Television [Facebook], the drug of the Nation 
Breeding ignorance and feeding radiation”

O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".


Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.

outubro 28, 2017

A Internet como Máquina de Propaganda

Há duas semanas apresentei uma comunicação na qual dava conta dos problemas de estarmos a criar uma sociedade baseada no digital, baseada na imensidão de dados que pululam na internet, uma sociedade que segundo Harari se está a virar da ciência e da religião para os dados, criando assim um novo movimento, o dataismo. Nessa altura apontei como alguns dos problemas na base do dataismo, as “Notícias Falsas” e os “Factos Alternativos”, mas optei por não desenvolver, crendo ser algo já amplamente reconhecido. Contudo a leitura recente de um texto da Wired sobre a condição da mulher na Rússia mostrou-me algo que me tinha passado um pouco ao lado, a génese das Fake News internacionais.


O Brexit e a eleição de Trump trouxeram para o centro da discussão internacional o impacto das Notícias Falsas nas sociedades, nomeadamente pelo facto da Rússia se ter transformado, de novo como que renascida das cinzas, em arqui-inimigo dos EUA e simultaneamente do bloco UE. Só que desta vez o problema não assenta em força bruta, armas ou nuclear, assenta em algo muito menos visível mas paradoxalmente muito mais próximo, que entra pelas nossas casas e vidas adentro, a internet. Sobre esta rede como um todo, mas com particular destaque para as redes sociais — Facebook e Twitter —, pode dizer-se hoje, sem grande exagero, que se transformou no Cavalo de Tróia perfeito para quem quer que deseje agir na arena geopolítica.

Mas como é que isto aconteceu? E como é que ninguém previu isto?

Existem vários pontos que sustentam o surgimento deste fenómeno. O primeiro é naturalmente a passagem de toda a informação e comunicação dos meios tradicionais para o meio digital. Ou seja, toda a comunicação social, todas as empresas, todas as pessoas a nível pessoal, e claro também todos os governos passaram a comunicar através de uma canal único, a internet. Neste quadro, não só todos têm acesso às mesmas ferramentas de produção de informação, como todos acedem ao mesmo canal para divulgar e promover as suas ideias. Isto forçou o aparecimento de técnicas de comunicação que se assemelham mais a propaganda e menos a comunicação. Se primeiramente vimos as empresas a fazer uso destas, rapidamente os governos começaram a pensar que essa era também a única via.

Recordemos a revolução da década anterior no seio das indústrias criativas, nomeadamente musical e cinematográfica, em que as empresas viram os seus lucros cair a pique porque os seus produtos eram partilhados na rede pelas pessoas, minimizando drasticamente a necessidade de compra de novas cópias. As soluções encontradas foram múltiplas, desde processos em tribunal e consequente capacidade para eliminar sites que partilham, às atuais plataformas de streaming, mas pelo meio e de forma muito menos visível e menos discutida, as empresas utilizaram tácticas, e continuam a utilizar, de contrainformação. Ou seja, se tentarem procurar hoje na rede algum filme, música ou livro para fazer download vão encontrar dezenas e dezenas de links e sites dedicados, mas falsos. Os sites possuem descrições das obras, possuem vários botões que apontam para o potencial local em que se pode descarregar a mesma, mas nunca se chega a aceder verdadeiramente a obra. Faz-se circular por labirintos de informação falsa, sem retorno, cansando assim o potencial “pirata” levando-o a desistir das suas intenções.

Ora foram exatamente estas mesmas tácticas que a empresa conhecida como Internet Research Agency baseada em St. Petersburg, mas às ordens do Kremlin, começou a utilizar para manipular a política interna. Putin está no comando da Rússia há quase duas décadas e isso num país com as assimetrias e dimensão que se conhecem não se consegue sem um controlo muito grande das populações. Não podemos esquecer que Putin foi agente do KGB, e depois diretor do mesmo, é alguém profundamente treinado no secretismo, nomeadamente na arte da manipulação humana. Deste modo quando Putin percebeu que apesar de controlar toda a Comunicação Social no seu país, a informação imparcial continuava a jorrar e entrava diretamente em casa da população por via da internet, foi obrigado a agir. Primeiramente tentando controlar a informação que circulava na rede, o acesso a meios internacionais, mas rapidamente percebeu, ao contrário da China (não que a China não esteja a acordar para o fenómeno e talvez de forma ainda mais brutal), que não podia controlar a internet e por isso subiu a parada. O passo seguinte foi inundar a internet com toneladas de informação falsa, impedindo os cidadãos russos de conhecer a verdade, ou pelo menos criarem uma base sólida sobre a realidade.


Falamos de uma técnica antiga de guerrilha, a contrainformação, utilizada em toda e qualquer disputa pela verdade, e já amplamente utilizada pela URSS no passado. Mas no passado o governo da URSS limitava-se a deter os meios de comunicação social para debitar a informação que lhe interessava, criando assim uma sensação, imensamente descrita pelos povos que viveram sob esse regime, de choque permanente entre realidade e ficção. Hoje numa Rússia aparentemente mais livre, dotada de internet, é mais difícil controlar a informação que se produz, desse modo a alternativa que sobrou foi a de produzir informação falsa e contrária misturando-a com a demais. Se antes o povo sentia que aquilo que os órgãos de comunicação social da URSS diziam não se ligava muito com a vida real que levavam, hoje o povo ao aceder à informação e contrainformação, acaba por ficar de tal forma baralhado, sendo conduzido ao mesmo ponto do “pirata” de música, o de desistência.

Esta questão torna muito mais claro e óbvio o que viria a acontecer no ano passado com o Brexit e Trump. Depois de criada a “Fábrica de trolls” na Rússia, e controlada a sua própria população, era preciso continuar a dar trabalho a todo um exército digital, e nada poderia ser mais apetecível do que a destruição dos seus rivais, no fundo os responsáveis pela entrada da tal “informação imparcial” no seu país por via da internet. O bloco europeu, mesmo ao lado, tem sido uma das maiores ameaças ao seu poder, muito provavelmente um dos maiores responsáveis pela queda da URSS, pelo exemplo democrático, de modo que tudo o que puder afundar esse bloco servirá a causa de Putin. Já no caso dos EUA não seria preciso grande motivação para além de todo o historial entre os dois países, mas é claro que a supremacia económica e cultural ainda detida pelos EUA continua a ser um alvo apetecível.

É claro que se o problema tivesse partido de Putin e tivesse ficado contido na sua figura, como o “elo do mal”, nada disto seria muito preocupante para os povos não governados pelo mesmo. Ou seja, se os restantes governantes e políticos tivessem recusado estas tácticas e se tivessem desviado das mesmas, o seu impacto teria sido muito atenuado. O problema é que tivemos políticos em todo o lado, dos EUA ao Reino Unido, passando pelos casos mais recentes da Alemanha e Áustria que resolveram enveredar pelo mesmo caminho. Alguns assumindo uma fachada de inocência, limitando-se a surfar a onda proporcionada pela contrainformação das fábricas russas, outros indo mais longe, iniciando as suas próprias estratégias, se não produzindo especificamente contrainformação, fazendo uso das mesmas tácticas de apelo emocional. Ou seja, fazendo política com base no nacionalismo como forma de luta contra a crise económica internacional, como pudemos ver na Hungria, em Inglaterra, na Holanda, em França, na Alemanha, na Áustria e agora mesmo iniciando-se a nível regional em Barcelona e no Norte de Itália.

Fica só a faltar o último “player” de toda esta equação, as redes sociais, porque se a internet é o canal que tudo proporciona, as redes sociais são as plataformas que verdadeiramente interligam todas as pessoas, predispondo-as a abrir-se à informação, mas acima de tudo à comunicação. Neste sentido as redes sociais tornaram-se muito mais poderosas que os órgãos de comunicação social, pois acreditamos mais num ato de comunicação do que num de mera informação. Ou seja, em conversas que possamos ter com outros, que vão reforçando as nossas crenças, porque são nossos amigos próximos, e nos habituámos a respeitar. E por isso se uma informação começa a circular sem fundamento, mas alguém próximo de mim a partilha, abre-se desde logo um precedente para que eu próprio inicie a crença nessa informação. E uma vez instalada, torna-se difícil de apagar, mesmo quando a informação surge desmontada, porque mais uma vez, acreditamos mais nas pessoas iguais a nós do que em órgãos de informação abstratos. Veja-se o caso decorrido esta semana em Portugal, que ficou conhecido por "Chemtrails".

Não admira então que dentro de poucos dias, a 1 de Novembro, o Twitter, o Facebook e a Google vão ser ouvidos nos EUA pelo Senate Select Committee on Intelligence, uma audição imensamente aguardada não apenas para tentar compreender melhor o que aconteceu com a eleição de Trump, mas para tentar compreender o papel que estas três empresas estão verdadeiramente a desempenhar na formação e manipulação da opinião pública. A quantidade de dados que existem já oferecem poucas dúvidas à intromissão da Rússia nas eleições americanas de 2016, seja pela produção de contrainformação, seja pela recente descoberta de compra de anúncios por esta. O cenário para um completo embuste foi montado, agora falta descobrir o quão efetivo verdadeiramente foi. E a verdade é que a imagem de Silicon Valley não sairá disto incólume.
“I think the time has come that we are going to see an end to Internet exceptionalism where platforms can continue to claim some sort of immunity because of their nature.
It's going to be an interesting moment of seeing where the rubber hits the road in terms of…their kind of market positions as bastions of liberal ideals, and their distaste and disdain for being regulated by anyone but themselves”.

Sarah T Roberts, professora de Estudos de Informação na UCLA
Posto tudo isto, encontramo-nos numa encruzilhada. Criámos as melhores tecnologias de informação e comunicação algumas vez existentes, mas em vez de servirem para nos unir, parecem estar a produzir o oposto. Pode parecer surpreendente, mas não é. Na verdade as tecnologias não mudam o ser-humano, apenas ampliam as suas qualidades, e claro os seus defeitos. Neste caso a internet e as redes sociais estão a fazer exatamente isso, a ampliar a nossa sede de comunidade, a nossa sede de grupo, e essa precisa de ser alimentada, precisa de "um outro". A criação de uma comunidade global completa não deixa de ser uma utopia, tal como a Torre de Babel o foi. Precisamos de cola para unir o grupo e a comunidade, e essa só pode ser fornecida pela existência de perigos a partir dos outros, iguais a nós mas em quem sempre encontraremos a diferença. Porque no fundo, aquilo que verdadeiramente nos une enquanto comunidades, não é a fraternidade, mas o medo.

julho 03, 2014

Problemas do marketing digital

Hoffman é autor de "101 Contrarian Ideas About Advertising" (2011) e do blog Ad Contrarian, é ainda CEO da agência americana Hoffman/Lewis, tendo desenvolvido campanhas para a McDonald's, Toyota, Shell, Nestle, etc. Com formação de base em ciências e sendo assistente especial da California Academy of Sciences, parte do seu discurso move-se no sentido da obtenção de fundamento e evidência científica. E é por isso que esta palestra dada em Março na Advertising Week Europe 2014, intitulada, “The Golden Age of Bullshit” é extremamente interessante.

Bob Hoffman

Bob Hoffman procura ao longo de uma hora de palestra desmontar alguns mitos do mundo da publicidade e do marketing digital, com base num estudo comparado entre aquilo que os Marketeers e Publicitários foram dizendo ao longo dos anos e aquilo que verdadeiramente foi acontecendo no mundo real. Um dos maiores criadores desses mitos tem sido Seth Godin, um dos grandes gurus dos novos paradigmas de marketing, e em quem eu tenho vindo a confiar cada vez menos, nomeadamente desde que resolveu começar a aplicar as suas ideias sobre marketing, como grande martelo para tudo, como é o caso do livro autopublicado “Stop Stealing Dreams: What is School For?”. Esta crença nos gurus não acontece por acaso, mas porque como diz Hoffman no final da palestra, e citando Daniel Kahneman, "People don't believe in facts, they believe in experts."

Assim algo concreto de que tenho desconfiado no marketing contemporâneo, é o hype em redor do storytelling e dos videojogos. Ideias que têm sido vendidas como uma necessidade para criar relações com os consumidores. Ora, se é verdade que estas duas formas de construir experiências trabalham sob o desígnio do engajamento e envolvimento, ligando as pessoas às obras, não é claro que isso seja facilmente trespassável para o mundo do marketing ou branding. Mais, se tem sido imensamente difícil passar estas abordagens para o mundo da educação, porque é que haveria de ser tudo fácil no mundo do consumo? Deste modo Hoffman abre a palestra dizendo, o seguinte,
“We’re so drunk on this stuff that we’re starting to believe our own bullshit.
There are people in our business who believe that consumers are in love with brands! They believe consumers want to have relationships with brands. They want to have brand experiences and be personally engaged with brands. This people actually believe in this. You go to their Twitter profiles,
- “I’m passionate about brands”
- “You’re what? Dude get a fucking girlfriend”
There are people in our business who believe that consumers are going on Facebook and Twitter and having conversations with each other about  brands. All you have to do is going to your Facebook page, and if you can read, you can see that people are having conversations about everything in the universe, except brands.
And yet the bullshit we tell ourselves is apparently so powerful that it supersedes the evidence of our own eyes.”
Esta é a dura realidade que o marketing digital ainda não quis encarar de frente. Ninguém online fala das marcas, nem sequer está importado com as páginas das marcas, a não ser quando elas fazem asneira, tendo assim uma espécie de canal directo para lançar algum fel. As pessoas procuram outros seres humanos, não procuram objectos, artefactos, e menos ainda marcas. Quem tem página online de uma empresa, associação ou blog de certeza que já percebeu a diferença entre publicar algo no facebook sob o nome da página ou sob nome individual. As pessoas clicam mais quando a partilha é feita por uma pessoa, do que por uma marca, uma identidade abstracta desprovida de sentir. As pessoas querem a garantia que do outro lado está alguém capaz de interpretar aquele clique, aquele like. Clicar num like não é uma mera acção abstracta, é um acto de comunicação, é um acto de aceitação do outro.

Bob Hoffman, "The Golden Age of Bullshit" na Advertising Week Europe 2014

Isto não quer dizer que o marketing não está a mudar, que o digital não lhe serve. Serve sim, mas serve essencialmente para compreender melhor para quem se fala, e como se deve falar. O Facebook é muito útil para conseguirem compreender melhor o que move as pessoas, e conseguirem assim criar e desenhar para as suas verdadeiras necessidades. Mas não esperem que porque têm um discurso mais próximo, até mais humano, as pessoas desatem a envolver-se com as marcas, ou como diz o Hoffman, “amem as marcas”, isso não vai acontecer.

julho 22, 2013

Medo e a Modernidade

Perdemos o medo de sobrevivência física, de quando vivíamos com outras espécies na floresta, mas ganhámos novos medos, como o da sobrevivência da nossa identidade aos avanços da tecnologia. Somos seres feitos de medo, é ele que mantém a chama da vida acesa.


Num artigo do New York Times compara-se o Facebook ao surgimento dos primeiros cafés em Londres no século XVII, e coloca-se a nu o facto dos medos de há quatro séculos, terem mudado muito pouco. Por sua vez Randall Munroe do XKCD fez uma tira de BD na qual cita uma série de comentários do final do século XIX e início do século XX, a partir de várias revistas científicas da altura, nas quais se podem identificar muitos dos “males” da sociedade do corrente século XXI. Em ambos os casos, o discurso pouco se alterou, a nossa biologia ainda menos, as tecnologias evoluíram mas os nossos medos permaneceram inalterados.
Anthony Wood, um académico de Oxford, dizia em 1677: "Why doth solid and serious learning decline, and few or none follow it now in the University? Answer: Because of Coffea Houses, where they spend all their time."
As distração que corrompe as massas, os males das escolas, os efeitos perniciosos da falta de leitura, a perda da decência, a perda das vivências em família, o jornalismo do sensacionalismo, a destruição do pensamento pelo aumento velocidade da comunicação... São apenas alguns dos assuntos, através dos quais podemos viajar no tempo, e compreender como apesar de termos progredido bastante, os nossos medos continuaram intactos, e a dar-nos razões para continuar a viver!

do correio ao e-mail


 
das escolas incapazes de motivar as crianças


da velocidade furiosa da informação


do jornalismo sensacionalista


os laços familiares, das revistas ao iPad


da decência e bons-costumes

setembro 25, 2012

Perigos do Facebook: dados, perfis e controlo

O estudante de direito austríaco, Max Schrems, apresentou 22 queixas contra o Facebook. Após muita insistência, Max Schrems conseguiu um CD com toda a informação colectada durante os três anos em que fez parte da rede, quando impresso, o conteúdo do CD formava uma pilha de 1200 páginas.


Todos os dados - mensagens, estados, comentários, toda a informação submetida, todas as alterações realizadas, assim como as datas dessas alterações, etc. - eram classificados em 57 categorias que possibilitam facilmente o cruzamento de dados, e assim descobrir qualquer informação que se pretenda sobre a vida pessoal, profissional, religiosa ou política de qualquer utilizador do Facebook. Além desse material, todas as mensagens, fotos e outros arquivos que ele tinha apagado continuavam armazenados nos servidores do Facebook. Quando questionado sobre isto, o Facebook afirmou que apenas "removia da página" e não que "apagava".


Isso significa tão somente, que tudo aquilo que for escrito no Facebook, jamais será apagado. Até as alterações de ideias no tempo ali ficarão registadas. O grande perigo de tudo isto não é, de todo, a venda de dados para efeitos comerciais, mas é muito mais profundo que isso porque significa que se algum dia algum governo quiser impor um regime ditatorial num país, não precisará sequer de criar uma PIDE. Através desta mina de informação será possível estabelecer todos os perfis dos cidadãos de um país. Escolher aqueles que devem ser arredados e eliminados logo à partida, chantagear e pressionar os outros, e simplesmente regular os menos incómodos.


É insustentável tudo isto. E se ontem aqui falava a propósito do meu desinteresse com as memórias digitais, hoje peço que esse desinteresse seja a norma, e que aquilo que eu disser num registo digital de conversação assuma exatamente o mesmo registo daquilo que eu digo numa conversação oral, não dure mais do que o estritamente necessário. Este assunto explodiu no ano passado e a Comissão Europeia já começou a tentar regular tudo isto, mas a verdade é que do meu uso do Facebook acredito que nada mudou ainda. E a reposta dada esta semana a um dos processos em curso pela Comissão de Dados da Irlanda é esclarecedora quanto ao poder do Facebook.

 

Os objectivos dos 22 processos movidos por Max Schrems, no âmbito do Europe-v-Facebook.org, passam por:

Transparency. It is almost impossible for the user to really know what happens to his or her personal data when using facebook. For example “removed” content is not really deleted by facebook and it is often unclear what facebook exactly does with our data. Users have to deal with vague and contradictory privacy policies and cannot fully estimate the consequences of using facebook.
A company that constantly asks its costumers to be as transparent as possible should be equally transparent when it comes to the use of its costumers personal data. [Request a full copy of all your personal data, “request your data!”].

Opt-in instead of Opt-out. Facebook often claims that all users have consented to the use of their personal data. But in reality facebook users know that facebook is more of an “opt-out”-system: If you do not change all the preset privacy settings most personal data will be visible without restrictions. Users that do not want this have to struggle with endless buttons and settings. This oftentimes means that the more privacy a user wants, the more clicks and the more care for every detail is necessary. Older or inexperienced users may not even be able to do so. New functionalities are activated automatically without proper information of the users.

Decide yourself. There are people that do not want to share too much information online. But facebook found a way to get their personal data too: Facebook is encouraging other users to deliver their data. Examples of this practice is the possibility of synchronizing mobile phones, importing e-mail addresses or by “tagging” other users in photos, videos or even at certain locations.
By allowing this, facebook is ignoring another principle of European data protection law: Only the individual user can consent to the use of his or her data. It is not sufficient that some other user think that they can tag you in an embarrassing picture or send other people’s e-mails to facebook. Other social networks have solved this problem and do not process the data until the individual user has agreed to the use of the specific data.

Data Minimization. Have you ever looked at your facebook wall all the way to the end? How much information have you collected that is useless (to you)?
Facebook offers no sufficient way of deleting old junk data. Every inconsiderate comment, every invitation to an event (e.g. a demonstration) and every “like” is recorded for an indefinite amount of time.

Open Social Networks. Today Facebook is a monopoly. Because Facebook drained the users from all other networks there is no realistic choice to chose an other provider. The failed Google+ experiment shows that not even Google was able to provide for an alternative in the market. This is typical for a “closed system”: Like a black hole Facebook managed to get more and more users until there was a point where everyone had to join because all of their friends moved to Facebook.

Uma outra reportagem em inglês da EuroNews.