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julho 26, 2020

A ciência do sobrenatural

“Supersense. Why we believe in the Unbelievable” (2009) é o segundo livro que leio de Bruce Hood, professor britânico de neurociência cognitiva do desenvolvimento, e se não traz nada de muito novo, acaba tocando e aprofundando um assunto pelo qual tendemos a passar e definir de dois modos opostos, dependendo do momento: secundarizando como inexorável, parte da condição humana; ou criticando como efeito de baixa literacia científica. Falo da crença na superstição e religiosidade, a crença em tudo o que está para além da experiência empírica do natural, ou seja, o sobrenatural. Hood trabalha ao longo de todo este livro, munido de dezenas de exemplos e estudos, a estrutura cognitiva que dá suporte àquilo que faz de nós humanos e simultaneamente crentes.
Temos uma necessidade absoluta de significado, sem o que não conseguimos atribuir valor ao mundo que nos rodeia, daí que passemos, o nosso cérebro passa, praticamente todo o tempo a decifrar padrões e a dar-lhes sentido. Não é suficiente que a realidade exista enquanto conjunto de objetos e elementos, precisamos de lhes conferir categorias, hierarquias, valores, atributos, pesos, precisamos de comparar, e acima de tudo de significar. Isto é inerente a nós, não é possível sair deste modo de conhecer a realidade, porque é assim que o nosso cérebro está desenhado. Isto não é propriamente negativo, pois foi este mesmo design mental que nos permitiu criar a ciência e evoluir tudo aquilo que evoluímos como espécie ao longo de milénios. Mas como em tudo, existem sempre perdas ou disfunções. Assim como conseguimos criar algo tão impressionante como a Matemática, conseguimos simultaneamente criar algo como a Religião. Ambas nasceram do mesmo modo de trabalhar a realidade, ambas seguem necessidades impostas pelo nosso modo de pensar, e ambas parecem, ao nosso cérebro, fazer absoluto sentido.

Leia-se a seguinte lista e reflita-se sobre o que tem em comum:

  • O monumento Pártenon em Atenas, ou o Coliseu de Roma;
  • Um autógrafo de Stephen Hawking, ou de Stephen King;
  • Um casaco usado por Michael Jackson, ou por Ted Bundy;
  • A casa em que viveu Leonardo Da Vinci, ou Adolf Hitler;
  • A caneta usada por Eça de Queiroz, ou Fernando Pessoa;
  • O barco em que viajou Vasco da Gama, ou Cristóvão Colombo;
  • Um quadro de Picasso, ou de Van Gogh; 
  • Uma casa em que se deram múltiplos assassínios, ou suicídios;
  • O coelhinho ou bonequinha com que dormíamos em criança;
  • Fotografias de familiares que já partiram;
  • Etc.

Nada existe de comum entre estes, a não ser que são coisas, objetos constituídos de átomos, moléculas e substâncias. Contudo quando observados por nós, humanos, ganham camadas adicionais de significado, que por sua vez introduzem variáveis novas que alteram a nossa perceção dos mesmos. É a isto que Hood chama de SuperSentido. A nossa capacidade para percecionar além da matéria, para percecionar além da natureza, o Sobrenatural.

Um dos exemplos mais discutidos neste tipo de abordagem psicológica é a visita às Caves de Lascaux, França, lugar com uma história que percorre no tempo 30 mil anos. A sensação de estar em frente de desenhos, carvão gizado na pedra, com todos aqueles anos, séculos, milénios e depois perceber que se está numa cave réplica, a meia-dúzia de metros da real gera uma desilusão potente. O mesmo efeito poderia ser criado se nos dissessem que estaríamos a visitar a caravela original em que Vasco da Gama descobriu a Índia para a seguir descobrir que era uma mera réplica com meia-dúzia de anos. Assim, talvez não seja de admirar que o Governo da Grécia ande numa guerra jurídica há dezenas de anos com o British Museum, para reaver o conjunto de pedras pertencentes ao friso do Pártenon, e que poderiam facilmente ser replicadas.
O governo francês gastou 75 milhões de dólares na criação de uma réplica, o mais autêntica possível, das Caves de Lascaux, por forma a preservar as originais dos vários problemas que produziriam as visitas de diárias de milhares de turistas e curiosos. Contudo quando as pessoas descobrem que não estão a visitar as verdadeiras caves a desilusão é enorme.

Hood realizou um conjunto de experimentos, com crianças, e alegadas máquinas avançadas de replicação atómica, que permitiriam replicar todo e qualquer objeto, propondo às crianças duplicar os seus brinquedos/objetos de estima pessoal. A reação foi invariavelmente a mesma, por mais idênticas que fossem as cópias, nenhuma criança as preferia às que eram suas. Como se esses objetos estivessem imbuídos de substâncias sobrenaturais, autênticas, sagradas ou mais puras. Isto leva Hood a dizer o seguinte:
“Society can tell us what is sacred but, to be experienced as sacred, something must become supernatural. It has to be more than mundane. It must possess qualities that are unique and irreplaceable. Discerning such qualities requires a mind designed to sense hidden properties. If something can be copied, duplicated, corrupted, cloned, forged, replaced, or substituted, it is no longer sacred. To arrive at this belief we have to infer that there are hidden supernatural dimensions to our sacred world. And with this thinking comes all the supernatural qualities of connectedness and deeper meaning. We need these to make sense of why we value some things over and above their objective worth.”
Ou seja, a coisa sagrada é uma coisa culturalmente criada pela nossa mente no momento em que a dotamos de significado, colocando a coisa num patamar distinto, especial. É daqui que depois surgem todas as dimensões criadas pelo humano que conduzem à produção de religiões, monarquias, mitologias ou simples cultos de personalidade. Tudo é possível, porque em tudo podemos ver mais do que aquilo que lá está, não porque lá esteja, mas porque somos feitos desta forma, temos esta necessidade de interpretar, de atribuir propósito.

A base deste supersentido somos nós mesmos, os humanos. Tendemos a não colocar as pessoas no mesmo patamar das coisas. Consideramos que essas não são descartáveis como meros objetos, porque essas são únicas em si, também pelas relações que construíram conosco. A sua perda por morte, traição ou simples conflito, não é mera perda de substância, nem sequer de pessoa exterior a nós, mas de algo que somos graças a essa pessoa, e que deixamos de poder continuar a ser quando a perdemos.

Daqui emana o problema central do “supersentido”, já que enquanto espécie aprendemos a compreender o outro enquanto imbuído de características vitais e mesmo essenciais, atribuindo-lhe na gíria a designação de “alma”. Na verdade, o vitalismo ou animismo não se distingue muito do modo como funciona efetivamente o processo da vida, e como esta a separa do mero objeto, ou como preferimos dizer do inanimado. Mas é desse animismo que fizemos evoluir o conceito de essencialismo, pela elevação da vida a algo único e dotado de essência extraordinária. A partir daqui, foi muito fácil começar a transpor essa essência para outras espécies, tais como os nossos animais domésticos, desde logo por via da sua antropomorfização, seguindo-se os objetos e todo o restante mundo real. 
Ou seja, por um lado vemos toda a realidade como dotada de propósito, o que nos conduz a produzir significados explicativos. Por outro lado, para produzir as interpretações desses propósitos, tendemos a colocar-nos no lugar dessas coisas, o que acaba transferindo o modo como sentimos e percecionamos, e como qualificamos o nosso próprio animismo, para tudo o resto. 

Hood defende que a origem está no desenvolvimento da cognição, e que o processo começa em criança. Enquanto crianças acreditamos que o Sol existe para nós, que nos segue para onde formos, ou que o modo como pensamos é idêntico para todos. Por isso se queimarmos uma cadeira, acreditamos que ela sentirá dor, do mesmo modo que sentirá a bicicleta quando a pontapeamos, isto para não falar do terror que podemos sentir se algo acontecer com os tais brinquedos/objetos prezados a nível pessoal e emocional. 
"Sentimental" de Reagan Caron

As religiões, habilmente ou canhestramente, tendem a manter estas crenças vivas, trabalham sobre a ideia do propósito, centradas na figura do humano como centro do universo, transferindo o animismo para tudo, tornando o universo numa versão maior do nosso próprio modo de conceber a realidade. Hume já tinha desmontado este princípio, há 200 anos, como cita Hood:
“There is an universal tendency among mankind to conceive all beings like themselves, and to transfer to every object, those qualities, with which they are familiarly acquainted, and of which they are intimately conscious. We find human faces in the moon, armies in the clouds; and by a natural propensity, if not corrected by experience and reflection, ascribe malice and good-will to everything, that hurts or pleases us. Hence . . . trees, mountains and streams are personified, and the inanimate parts of nature acquire sentiment and passionHume (1757), in "Natural History of Religion"
Por isso, mais facilmente aceitamos vestir um casaco sujo com cocó de cão e não lavado, do que um casaco usado por um serial killer, mas lavado pelos métodos mais higiénicos à face da terra. A ideia de que o mal possa ter trespassado para o casaco impede-nos de raciocinar. Do mesmo modo, a nossa experiência de uma tela pendurada na parede da nossa cozinha pode ser cabalmente transformada, da noite para o dia, se nos disserem que não é uma cópia, mas uma tela verdadeiramente pintada pelas mãos de Salvador Dali. Daqui para a perceção do mundo como criado por um Deus, super-humano, criador daquilo que somos é um passo natural. O ceticismo e a racionalidade requerem o esforço de sair da caixa que o design mental cria e a manutenção de alerta constante, sem o que mesmo os mais cépticos podem cair nas suas próprias armadilhas, correndo atrás do autógrafo da pessoa adorada, ou elegendo a superstição como forma de atravessar momentos de crise. 
Vejam-se os casos seguintes:
“Tony Blair always wore the same pair of shoes in the House of Commons at Prime Minister’s Question Time. During his Presidential campaign, President Barack Obama carried a lucky poker chip. He also developed a bizarre superstitious ritual of playing basketball on the morning of every election in his path to the White House. His opponent, John McCain, was open about his catalogue of superstitions, always carrying a lucky feather and a lucky compass from his Vietnam piloting days. One wonders why, as he was shot down and spent many years as a prisoner of war. During the presidential race, McCain also always carried a lucky penny, a lucky nickel, and a lucky quarter. Apparently, this sum of 31 ‘super cents’ was not enough to secure presidential victory for this luckless senator.”

dezembro 25, 2012

A História do Natal

Acabei de ver The Real Story of Christmas (2010) no Canal História que achei muito interessante por apresentar em detalhe o modo como terá nascido um mito, socorrendo-se das leis da natureza e das capacidades criativas do ser humano. O que mais me vem impressionando nos últimos ano é a força do Natal, que para os Europeus é essencialmente uma festa cristã, mas se festeja em praticamente todo o mundo, mesmo onde a religiosidade não está presente. Sentia falta de compreender como e porquê. Aqui fica um resumo do documentário, entretanto cruzado com informação que recolhi online.


A origem aparece nas comemorações pagãs do Solstício de Inverno, que aconteciam na semana de 21 de Dezembro na zona norte do globo. Desde de há milhares de anos que existem festas de inverno por esta altura, tornando esta data uma das mais populares muito antes do nascimento de Jesus. A data de 25 de Dezembro foi escolhida como o ponto alto para estabelecer os nascimentos de vários deuses ligados à ideia do renascer, já que o Solstício marca o início do crescimento da duração de luz. No caso de Jesus, não existindo forma de confirmar a data precisa do nascimento, no século IV optou-se por esta data por celebrar o nascimento da luz, e provavelmente também terá sido escolhida pela sua enorme popularidade.


Dada a sua associação ao festejos pagãos a festa do nascimento de Jesus nunca se realizou em ambiente de recolhimento e calma, antes pelo contrário. As festas pagãs de rua, com muito álcool e entretenimento continuaram até aos séc. XVII e XVIII quando houve várias tentativas de banimento, tanto da festa de rua como do nascimento de Jesus. Essas proibições não conseguiram os seus efeitos, e as tradições acabaram por emergir novamente, embora agora mais recolhidas, mais familiares.

Nascimento do Pai Natal (Santa Claus)


É uma lenda americana, nascida em Nova Iorque mas de base europeia. Mais concretamente o Natal moderno é baseado num pequeno texto do nova-iorquino Clement Clarke Moore, "A Visit from St. Nicholas" publicado em 23 de Dezembro, 1823. O poema serviu para criar um standard em redor da aparência do Pai Natal, as meias na chaminé, o transporte do pai natal e o facto de ele trazer brinquedos.

'Twas the night before Christmas, when all through the house
Not a creature was stirring, not even a mouse;
The stockings were hung by the chimney with care,
In hopes that St. Nicholas soon would be there;
The children were nestled all snug in their beds,While visions of sugar-plums danced in their heads;
And mamma in her 'kerchief, and I in my cap,
Had just settled our brains for a long winter's nap,
When out on the lawn there arose such a clatter,
I sprang from the bed to see what was the matter.
Away to the window I flew like a flash,
Tore open the shutters and threw up the sash.
The moon on the breast of the new-fallen snow
Gave the lustre of mid-day to objects below,
When, what to my wondering eyes should appear,
But a miniature sleigh, and eight tiny reindeer,
With a little old driver, so lively and quick,
I knew in a moment it must be St. Nick.
More rapid than eagles his coursers they came,
And he whistled, and shouted, and called them by name;
"Now, Dasher! Now, Dancer! Now, Prancer and Vixen!
On, Comet! On, Cupid! On, Donder and Blitzen!
To the top of the porch! to the top of the wall!
Now dash away! Dash away! Dash away all!"
As dry leaves that before the wild hurricane fly,
When they meet with an obstacle, mount to the sky;
So up to the house-top the coursers they flew,
With the sleigh full of toys, and St. Nicholas too.
And then, in a twinkling, I heard on the roof
The prancing and pawing of each little hoof.
As I drew in my head, and was turning around,
Down the chimney St. Nicholas came with a bound.
He was dressed all in fur, from his head to his foot,
And his clothes were all tarnished with ashes and soot;
A bundle of toys he had flung on his back,And he looked like a peddler just opening his pack.
His eyes — how they twinkled! His dimples, how merry!
His cheeks were like roses, his nose like a cherry!
His droll little mouth was drawn up like a bow
And the beard of his chin was as white as the snow;
The stump of a pipe he held tight in his teeth,
And the smoke it encircled his head like a wreath;
He had a broad face and a little round belly,That shook when he laughed, like a bowlful of jelly.
He was chubby and plump, a right jolly old elf,
And I laughed when I saw him, in spite of myself;
A wink of his eye and a twist of his head,
Soon gave me to know I had nothing to dread;
He spoke not a word, but went straight to his work,
And filled all the stockings; then turned with a jerk,
And laying his finger aside of his nose,
And giving a nod, up the chimney he rose;
He sprang to his sleigh, to his team gave a whistle,
And away they all flew like the down of a thistle,
But I heard him exclaim, ere he drove out of sight,
"Happy Christmas to all, and to all a good-night." 
A Visit from St. Nicholas, (1823) Clement Clarke Moore, texto reeditado em 1844
O texto é baseado em duas personagens da história ocidental, São Nicolau da Grécia e Sinterklaas (Sinter Claes) dos países baixos (Holanda, Bélgica e Luxemburgo), ambos reconhecidos pela sua graça de oferecer. São Nicolau oferecia presentes em segredo, deixava moedas nos sapatos das pessoas sem elas saberem. Sinterklaas era o santo castigador, vinha no inverno para dar presentes aos rapazes que se tinham portado bem.

São Nicolau e Sinterklaas

No século XIX a tradição germânica de trazer árvores para dentro de casa e decorá-las chega a Inglaterra por via do casamento entre a Rainha Victoria e o Principe Albert de origem germânica. Assim em 1848 é publicada uma ilustração com família real em redor de uma árvore decorada com velas. Essa mesma ilustração foi copiada, sendo retirados os elementos reais, como a tiara de Victoria ou o bigode de Albert, para conferir um visual de família americana e foi publicada em 1850 num formato de grande distribuição nos EUA, e assim se fez nascer o mito da Árvore de Natal.

Ilustração de 1850

Em 1863 Thomas Nast, caricaturista americano, nascido na Alemanha, vai criar a primeira imagem do Pai Natal baseada no texto de Clement Clarke Moore, utilizando as feições e barbas do Deus Odin.

Primeira imagem à esquerda de 1863, segunda de 1881. Ambas de Thomas Nast.

O desenho final do ícone do Pai Natal vai surgir já no início do século XX por Norman Rockwell que cria a sua primeira imagem do Santa Claus para o Saturday Evening Post em 1916, e ao longo das décadas seguintes aperfeiçoará a imagem ao ponto de a tornar num padrão internacional.

Norman Rockwell, 1939

Podem ver o documentário The Real Story of Christmas (2010), de 45 minutos, completo na Amazon mediante pagamento, ou no Youtube em partes: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4, Parte 5.