“Supersense. Why we believe in the Unbelievable” (2009) é o segundo livro que leio de Bruce Hood, professor britânico de neurociência cognitiva do desenvolvimento, e se não traz nada de muito novo, acaba tocando e aprofundando um assunto pelo qual tendemos a passar e definir de dois modos opostos, dependendo do momento: secundarizando como inexorável, parte da condição humana; ou criticando como efeito de baixa literacia científica. Falo da crença na superstição e religiosidade, a crença em tudo o que está para além da experiência empírica do natural, ou seja, o sobrenatural. Hood trabalha ao longo de todo este livro, munido de dezenas de exemplos e estudos, a estrutura cognitiva que dá suporte àquilo que faz de nós humanos e simultaneamente crentes.
Temos uma necessidade absoluta de significado, sem o que não conseguimos atribuir valor ao mundo que nos rodeia, daí que passemos, o nosso cérebro passa, praticamente todo o tempo a decifrar padrões e a dar-lhes sentido. Não é suficiente que a realidade exista enquanto conjunto de objetos e elementos, precisamos de lhes conferir categorias, hierarquias, valores, atributos, pesos, precisamos de comparar, e acima de tudo de significar. Isto é inerente a nós, não é possível sair deste modo de conhecer a realidade, porque é assim que o nosso cérebro está desenhado. Isto não é propriamente negativo, pois foi este mesmo design mental que nos permitiu criar a ciência e evoluir tudo aquilo que evoluímos como espécie ao longo de milénios. Mas como em tudo, existem sempre perdas ou disfunções. Assim como conseguimos criar algo tão impressionante como a Matemática, conseguimos simultaneamente criar algo como a Religião. Ambas nasceram do mesmo modo de trabalhar a realidade, ambas seguem necessidades impostas pelo nosso modo de pensar, e ambas parecem, ao nosso cérebro, fazer absoluto sentido.
Leia-se a seguinte lista e reflita-se sobre o que tem em comum:
- O monumento Pártenon em Atenas, ou o Coliseu de Roma;
- Um autógrafo de Stephen Hawking, ou de Stephen King;
- Um casaco usado por Michael Jackson, ou por Ted Bundy;
- A casa em que viveu Leonardo Da Vinci, ou Adolf Hitler;
- A caneta usada por Eça de Queiroz, ou Fernando Pessoa;
- O barco em que viajou Vasco da Gama, ou Cristóvão Colombo;
- Um quadro de Picasso, ou de Van Gogh;
- Uma casa em que se deram múltiplos assassínios, ou suicídios;
- O coelhinho ou bonequinha com que dormíamos em criança;
- Fotografias de familiares que já partiram;
- Etc.
Nada existe de comum entre estes, a não ser que são coisas, objetos constituídos de átomos, moléculas e substâncias. Contudo quando observados por nós, humanos, ganham camadas adicionais de significado, que por sua vez introduzem variáveis novas que alteram a nossa perceção dos mesmos. É a isto que Hood chama de SuperSentido. A nossa capacidade para percecionar além da matéria, para percecionar além da natureza, o Sobrenatural.
Um dos exemplos mais discutidos neste tipo de abordagem psicológica é a visita às Caves de Lascaux, França, lugar com uma história que percorre no tempo 30 mil anos. A sensação de estar em frente de desenhos, carvão gizado na pedra, com todos aqueles anos, séculos, milénios e depois perceber que se está numa cave réplica, a meia-dúzia de metros da real gera uma desilusão potente. O mesmo efeito poderia ser criado se nos dissessem que estaríamos a visitar a caravela original em que Vasco da Gama descobriu a Índia para a seguir descobrir que era uma mera réplica com meia-dúzia de anos. Assim, talvez não seja de admirar que o Governo da Grécia ande numa guerra jurídica há dezenas de anos com o British Museum, para reaver o conjunto de pedras pertencentes ao friso do Pártenon, e que poderiam facilmente ser replicadas.
O governo francês gastou 75 milhões de dólares na criação de uma réplica, o mais autêntica possível, das Caves de Lascaux, por forma a preservar as originais dos vários problemas que produziriam as visitas de diárias de milhares de turistas e curiosos. Contudo quando as pessoas descobrem que não estão a visitar as verdadeiras caves a desilusão é enorme.
Hood realizou um conjunto de experimentos, com crianças, e alegadas máquinas avançadas de replicação atómica, que permitiriam replicar todo e qualquer objeto, propondo às crianças duplicar os seus brinquedos/objetos de estima pessoal. A reação foi invariavelmente a mesma, por mais idênticas que fossem as cópias, nenhuma criança as preferia às que eram suas. Como se esses objetos estivessem imbuídos de substâncias sobrenaturais, autênticas, sagradas ou mais puras. Isto leva Hood a dizer o seguinte:
“Society can tell us what is sacred but, to be experienced as sacred, something must become supernatural. It has to be more than mundane. It must possess qualities that are unique and irreplaceable. Discerning such qualities requires a mind designed to sense hidden properties. If something can be copied, duplicated, corrupted, cloned, forged, replaced, or substituted, it is no longer sacred. To arrive at this belief we have to infer that there are hidden supernatural dimensions to our sacred world. And with this thinking comes all the supernatural qualities of connectedness and deeper meaning. We need these to make sense of why we value some things over and above their objective worth.”
Ou seja, a coisa sagrada é uma coisa culturalmente criada pela nossa mente no momento em que a dotamos de significado, colocando a coisa num patamar distinto, especial. É daqui que depois surgem todas as dimensões criadas pelo humano que conduzem à produção de religiões, monarquias, mitologias ou simples cultos de personalidade. Tudo é possível, porque em tudo podemos ver mais do que aquilo que lá está, não porque lá esteja, mas porque somos feitos desta forma, temos esta necessidade de interpretar, de atribuir propósito.
A base deste supersentido somos nós mesmos, os humanos. Tendemos a não colocar as pessoas no mesmo patamar das coisas. Consideramos que essas não são descartáveis como meros objetos, porque essas são únicas em si, também pelas relações que construíram conosco. A sua perda por morte, traição ou simples conflito, não é mera perda de substância, nem sequer de pessoa exterior a nós, mas de algo que somos graças a essa pessoa, e que deixamos de poder continuar a ser quando a perdemos.
Daqui emana o problema central do “supersentido”, já que enquanto espécie aprendemos a compreender o outro enquanto imbuído de características vitais e mesmo essenciais, atribuindo-lhe na gíria a designação de “alma”. Na verdade, o vitalismo ou animismo não se distingue muito do modo como funciona efetivamente o processo da vida, e como esta a separa do mero objeto, ou como preferimos dizer do inanimado. Mas é desse animismo que fizemos evoluir o conceito de essencialismo, pela elevação da vida a algo único e dotado de essência extraordinária. A partir daqui, foi muito fácil começar a transpor essa essência para outras espécies, tais como os nossos animais domésticos, desde logo por via da sua antropomorfização, seguindo-se os objetos e todo o restante mundo real.
Ou seja, por um lado vemos toda a realidade como dotada de propósito, o que nos conduz a produzir significados explicativos. Por outro lado, para produzir as interpretações desses propósitos, tendemos a colocar-nos no lugar dessas coisas, o que acaba transferindo o modo como sentimos e percecionamos, e como qualificamos o nosso próprio animismo, para tudo o resto.
Hood defende que a origem está no desenvolvimento da cognição, e que o processo começa em criança. Enquanto crianças acreditamos que o Sol existe para nós, que nos segue para onde formos, ou que o modo como pensamos é idêntico para todos. Por isso se queimarmos uma cadeira, acreditamos que ela sentirá dor, do mesmo modo que sentirá a bicicleta quando a pontapeamos, isto para não falar do terror que podemos sentir se algo acontecer com os tais brinquedos/objetos prezados a nível pessoal e emocional.
"Sentimental" de Reagan Caron
As religiões, habilmente ou canhestramente, tendem a manter estas crenças vivas, trabalham sobre a ideia do propósito, centradas na figura do humano como centro do universo, transferindo o animismo para tudo, tornando o universo numa versão maior do nosso próprio modo de conceber a realidade. Hume já tinha desmontado este princípio, há 200 anos, como cita Hood:
“There is an universal tendency among mankind to conceive all beings like themselves, and to transfer to every object, those qualities, with which they are familiarly acquainted, and of which they are intimately conscious. We find human faces in the moon, armies in the clouds; and by a natural propensity, if not corrected by experience and reflection, ascribe malice and good-will to everything, that hurts or pleases us. Hence . . . trees, mountains and streams are personified, and the inanimate parts of nature acquire sentiment and passion” Hume (1757), in "Natural History of Religion"
Por isso, mais facilmente aceitamos vestir um casaco sujo com cocó de cão e não lavado, do que um casaco usado por um serial killer, mas lavado pelos métodos mais higiénicos à face da terra. A ideia de que o mal possa ter trespassado para o casaco impede-nos de raciocinar. Do mesmo modo, a nossa experiência de uma tela pendurada na parede da nossa cozinha pode ser cabalmente transformada, da noite para o dia, se nos disserem que não é uma cópia, mas uma tela verdadeiramente pintada pelas mãos de Salvador Dali. Daqui para a perceção do mundo como criado por um Deus, super-humano, criador daquilo que somos é um passo natural. O ceticismo e a racionalidade requerem o esforço de sair da caixa que o design mental cria e a manutenção de alerta constante, sem o que mesmo os mais cépticos podem cair nas suas próprias armadilhas, correndo atrás do autógrafo da pessoa adorada, ou elegendo a superstição como forma de atravessar momentos de crise.
Vejam-se os casos seguintes:
“Tony Blair always wore the same pair of shoes in the House of Commons at Prime Minister’s Question Time. During his Presidential campaign, President Barack Obama carried a lucky poker chip. He also developed a bizarre superstitious ritual of playing basketball on the morning of every election in his path to the White House. His opponent, John McCain, was open about his catalogue of superstitions, always carrying a lucky feather and a lucky compass from his Vietnam piloting days. One wonders why, as he was shot down and spent many years as a prisoner of war. During the presidential race, McCain also always carried a lucky penny, a lucky nickel, and a lucky quarter. Apparently, this sum of 31 ‘super cents’ was not enough to secure presidential victory for this luckless senator.”