“Blitzed: Drugs in Nazi Germany” (2015) chamou-me a atenção por ser um assunto muito pouco discutido, apesar da poderosa indústria química alemã. No início do século XIX, a Merck criava a Morfina a partir do ópio e no final desse século a Bayer criava não só a Aspirina mas também a Heroína que iria promover "para as dores de cabeça” assim como na forma de xarope "para a tosse das crianças”, recomendando-a mesmo para as “cólicas dos bebés", tendo conseguido manter a droga legal na Alemanha até aos anos 1950. Ainda na Primeira Grande Guerra, o nobel da Química, Fritz Haber, dedicava-se ao desenvolvimento de armas químicas, ganhando o rótulo de "pai da guerra química", acabando por impactar fortemente a Segunda Grande Guerra, uma vez que os processos químicos por si criados viriam a dar origem ao Zyklon B, o veneno que seria aspergido pelos chuveiros das câmaras de gás de Auschwitz.
Daniel Kahneman tem 87 anos, e o seu leegado está construído, tendo-lhe sido reconhecido o mesmo com o Nobel pela criação de uma área inteira: a economia comportamental. Neste livro, Kahneman apresenta-se com outros dois autores, Olivier Sibony quase desconhecido, e Cass R. Sunstein, reconhecido pela sua hiperatividade, com mais de 30 livros publicados, só em 2021 já vai com 3, mas também conhecido pela sua crença numa sociedade governada por algoritmos. Os autores dedicam-se à apresentação de uma nova variável de viés, ou melhor, uma nova designação para uma especificidade de viés, o ruído. Para os autores o "ruído é a variabilidade indesejável de juízos". Ou seja, é a variabilidade que acontece numa mesma decisão quando tomada por pessoas diferentes. O clássico exemplo é o dos juízes que podem atribuir uma sentença de 11 meses a 11 anos, em função do juiz que decide, podendo este ser influenciada pela hora do dia, pela vitória de uma equipa de futebol, e uma miríade de outros fatores, no momento da sua decisão.
Anna Lembke é psiquiatra e diretora da Clínica de Medicina em Dependências da Universidade de Stanford. Uma especialista no vício em ópio, sobre o que escreveu um livro em 2016, "Drug Dealer, MD: How Doctors Were Duped, Patients Got Hooked, and Why It's So Hard to Stop". Neste seu novo livro, "Dopamine Nation: Finding Balance in the Age of Indulgence" (2021), fala-nos do vício em geral, mas dedica-se à discussão do que tem vindo a ser discutido como "vício comportamental", visto por vezes como menos relevante que o vício em substâncias, as chamadas drogas. A abordagem realizada começa pelo próprio título que dá conta de uma nova era que Anna Lembke designa por "idade da indulgência" e que tem conduzido a própria sociedade aceitar desvios comportamentais com vícios como "comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos digitais, mensagens de texto, sexting, facebooking, instagramming, youtubing, tweeting" como algo natural. A sua abordagem não é meramente crítica, mas construtiva, procurando essencialmente contribuir para a tomada de consciência do problema, expondo-se a si mesma, e desse modo, ainda que paradoxalmente, tornando a própria leitura do livro quase compulsiva!
"The Catalyst: How to Change Anyone's Mind" (2020) é o segundo livro de Jonah Berger que leio, longe de ser tão bom como o primeiro — “Contagious: Why Things Catch On” (análise VI) — não deixa de ser imensamente interessante. O livro é pequeno e apresenta um modelo de intervenção persuasiva, por meio do acrónimo REDUCE que resume 5 princípios — "Reactance - Endowment - Distance - Uncertainty - Corroborating Evidence "— que são discutidos, um por capítulo, e suportados com exemplos relevantes, ainda que por vezes acabem roçando o anedótico.
“Ser Mortal” (2014) de Atul Gawande é um livro sobre a experiência de morrer, ou de viver para morrer. Discute o processo como chegamos, fisiológica e psicologicamente, ao fim e avança com dezenas de casos e estudos sobre os diferentes modos de partir, e especialmente sobre o modo como nós, enquanto sociedade ocidental, temos vindo a tratar essa partida. Dá conta dos problemas criados pelas ilusões da medicina e dos hospitais assim como das angústias da morte, focando-se especialmente na área que se veio a definir como “cuidados paliativos”, que tem como missão exatamente evitar os problemas e as angústias da chegada ao fim. O livro está escrito num tom próximo e extremamente empático, abrindo-nos a território normalmente colocado à margem da discussão diária, mas inevitável para todos nós. Nem sempre concordando com Gawande, considero que o livro faz um excelente trabalho na discussão do tema, oferecendo matéria e espaço ao leitor para elevar a consciência de si.
“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.
As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
“A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened. And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior. (…) There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.
Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
“If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try. Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.”
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:
“Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
“Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
“Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
“Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
“We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”
O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".
"Elements of Surprise: Our Mental Limits and the Satisfactions of Plot", (2018) de Vera Tobin, é um livro académico sobre desenho de narrativa, que apesar de apresentar uma escrita por vezes leve e fluída, e um tema acessível, mais ainda pelos exemplos utilizados — "The Sixth Sense", "The Murder of Roger Ackroyd", "Great Expectations", "Emma", ou "Citizen Kane" —, não deixa de apresentar algumas componentes mais crípticas, com jargão próprio, que para quem não trabalha na área o pode tornar menos apetecível. Ainda assim, a sua essência é acessível a quem quer que sinta curiosidade pela temática e queira realizar algum esforço para entrar no discurso académico. Enquanto obra académica apresenta defensores e detratores [1,2], desde logo do campo da literatura que continuam a não ver com bons olhos a entrada da psicologia cognitiva no seu reino obscuro de pura especulação interpretativa. O que não deixa de ser ridículo, se olharmos para os estudos fílmicos onde a psicologia já entrou nos anos 1980, sendo talvez por isso mesmo que Tobin usa imensos exemplos cinematográficos lado a lado com exemplos literários, sem qualquer coibição e diga-se de forma imensamente refrescante para quem trabalha na área, cansado de divisões artificiais no campo da narrativa.
“Elementos de Surpresa” trabalha como o próprio título refere: a emoção de Surpresa. É algo novo, já que temos tido trabalhos sobre quase todas as outras emoções básicas —Medo, Alegria, Tristeza, Nojo e Raiva —, tendo a surpresa sido deixada de fora, não que surpreenda, dada a sua complexidade em termos de valência. Ou seja, a surpresa tanto pode ter peso negativo como positivo, por isso funciona mais como quadro emocional e menos como catalogador de situações. Isto para se trabalhar com histórias e narrativas não é propriamente o ideal, já que aquilo que é mais relevante é o modo como as emoções contribuem para a significação do conteúdo. Tobin, foca-se na forma por excelência, ou seja, como é que o design da narrativa, e a gestão de informação, operam a surpresa junto dos recetores. Ainda que não se possa dizer, que de uma forma geral, seja completamente novo, podemos juntar aqui obras que têm trabalhado o Suspense, que não são muitas e a Curiosidade, que em muitos momentos do livro me fizeram pensar que eram tópicos a que a autora deveria ter dado um pouco mais de atenção.
Mas a abordagem de Tobin acaba seguindo muito de perto os meus interesses de investigação e as abordagens que tenho tentado seguir, que é de utilizar todo o conhecimento produzido pelas Ciências Cognitivas, nomeadamente no campo do “behavioural economic” com autores como Kahneman, Tverski, Thaler, Ariely, Levitt, entre outros, e assim tentar desconstruir, desmontar, o design das narrativas, nomeadamente os padrões e modelos como nos agarram, envolvem, imergem e transportam para for a de nós mesmos. Por isso, não posso dizer que tenha sido surpreendido pelos resultados obtidos pela autora e que nos apresenta, contudo servem não só para reforçar a abordagem que alguns de nós temos vindo a defender, contribuindo para o avanço do nosso conhecimento sobre a psicologia e design da narrativa.
O principal conceito utilizado por Tobin é o “curse of knowledge” (maldição do conhecimento), um dos muitos vieses cognitivos, que ela define como: “the more information we have about something and the more experience we have with it, the harder it is to step outside that experience to appreciate the full implications of not having that privileged information”. No fundo, é o problema que surge sempre que temos que explicar a alguém alguma coisa, para o qual é necessário um determinado contexto, detendo nós o contexto e a outra pessoa não. Acontece todos os dias em sala de aula, mas acontece sobre as coisas mais simples, quando por exemplo queremos explicar algo que acontece num filme a alguém, mas a pessoa não percebe sem lhe explicarmos todo o enquadramento do filme primeiro. O que este viés nos diz é que normalmente não nos apercebemos dessa diferença de possessão de informação, ou se nos damos conta, não percebemos a diferença que ela comporta para a compreensão do que se está a dizer. Ou pondo-nos a nós no lugar da vítima, quando tentamos compreender porque um filósofo disse o que disse há 2, 3 ou 20 séculos, sem o devido contexto podemos simplesmente não compreender o que está em causa nas palavras escritas nesse outro tempo.
Tobin usa este modelo de criação de sentido, para tentar explicar o modo como a narrativa consegue gerar surpresa nos seus recetores, definindo a surpresa da seguinte forma: “one in which information revealed late in the narrative reveals a new, transformative interpretation of what has gone before.” Claro que Tobin está interessada em surpresa elaboradas, ou como ela diz “well made”, e não no simples ato de surpreender, que como ela também diz "pode facilmente ser feito, basta por exemplo, matar um personagem sem pré-aviso", como tanto gosta de fazer George RR Martin. No fundo ela está focada nos chamados “twists” narrativos, tais como o célebre final de “The Sixth Sense”, ao que acrescento aqui um, entretanto esquecido, “The Crying Game”.
"The Sixth Sense" (1999)
"The Crying Game" (1992)
O livro apesar de constituído de múltiplos capítulos, tem toda a sua essência concentrada no capítulo “Poetics of Surprise”, é aqui que nos apresenta os 5 modelos de produção de surpresa — Frame shift, Managed reveal, Finessing misinformation, Burying information, Emotional involvement — a que chegou com o estudo e levantamento que realizou, e é no fundo aquilo que importa reter deste livro e do excelente trabalho da autora. Vejamos então cada um destes, para cada um destes aponto uma dimensão da produção narrativa mais facilmente reconhecível entre parêntesis.
— Frame Shift (gag)
Este modelo assenta nos conceitos cognitivos — de frame, schema e contexto — que determinam os modelos mentais que utilizamos para compreender a realidade. Estes servem para enquadrar uma informação nova que nos chega, que nos ajuda a rapidamente assimilar a mesma, mas cria um conjunto de expectativas sobre o que se deve suceder a essa nova informação, mas que entram em choque sempre que essas expectativas não acontecem. Assim, gera-se um enquadramento na cabeça do recetor, conduz-se o mesmo numa direção de sentido, e no final faz-se uma curva de 90º. Aqui parece-me que teria sido relevante também Tobin dar conta do facto de ser o modelo mais utilizado pelos humoristas, no fundo a base daquilo que chamamos “gag” (piada que nos engasga pela surpresa). Deixo um exemplo:
“Um oficial iraquiano chama os oito sósias do Saddam e diz: Tenho boas e más notícias. A boa notícia é que Saddam está vivo. Todos os sósias comemoram. A má notícia é que ele perdeu um braço.”
— Managed Reveal (fechamento)
Neste modelo a surpresa dá-se por meio de uma revelação de informação cuidada, estruturada, em jeito de explicação do que aconteceu, oferecendo uma nova perspetiva sobre o que aconteceu, que cose todas as pontas soltas e faz com que tudo ganha um sentido novo e coerente. Isto funciona muito bem porque lidamos muito mal com dados incompletos, temos de por qualquer meio fechar tudo aquilo que se abre, e por isso estas revelações que nos surpreendem são ainda mais prazerosas porque nos aliviam do stress da incompreensão.
Para além do fechamento, que já vem da Gestalt, e que serve perfeitamente à narrativa, existe ainda um conjunto de estudos que têm demonstrado o quão ávidos de explicações somos, e como o mero ato explicativo por si é suficiente para nos seduzir. A autor dá um exemplo, estudado, que tem demonstrado resultados, e que acontece quando uma pessoa quer passar a frente numa fila, bastando para o efeito oferecer uma explicação mesmo que esta seja vazia: “May I use the Xerox machine, because I have to make copies?”
— Finessing misinformation (ilusionismo)
Este modelo serve imensamente bem ao cinema porque as suas origens estão umbilicalmente ligadas ao mundo do ilusionismo desde o grande Méliès. Assim, este modelo assenta na ideia de construção de ações de dissimulação. Aproxima-se do “frame shift”, embora aqui não se objetiva a desviar o foco explicativo, mas antes o foco de atenção, esperando que o recetor não se dê conta do que está verdadeiramente acontecer, e assim possamos no final apresentar a informação como novidade ou algo desconhecido. Tobin usa o viés do “anchoring”, próximo do “priming”, em que certa informação apresentada primeiro, condiciona aquilo que tendemos a pensar no momento seguinte, induzidos pelo que vimos ou ouvimos antes.
O modo base deste modelo assenta no desenho dos personagens, que vão debitando linhas que nos levam atrás dos mesmos, que nos convencem de ser algo, mas que no final se revelam ser outra coisa completamente. Aqui podemos enquadrar o personagem de Bruce Willis em Sexto Sentido.
— Burying information (cavalo de Tróia)
Este padrão assenta na introdução de informação de forma encapotada, aproximando-se do ilusionismo, embora aqui não se procure fazer divergir a atenção, mas apenas só que o recetor não se aperceba dessa mesma informação. Tobin usa um conjunto de preceitos criados por colegas anteriormente, Emmott e Alexander [3] e que listo aqui também:
Técnicas para esconder informação
"1. Mention the item as little as possible.2. Use linguistic structures which have been shown empirically to reduce prominence (e.g. embed a mention of the item within a subordinate clause). 3. Under-specify the item, describing it in a way that is sufficiently imprecise that it draws little attention to it or detracts from features of the item that are relevant to the plot. 4. Place the item next to an item that is more prominent, so that the focus is on the more prominent item. Hence, when fore- grounding is used it may have an automatic effect of down- playing nearby items, like a spotlight that makes items around the light less noticeable. 5. Make the item apparently unimportant in the narrative world (even though it is actually significant). 6. Make it difficult for the reader to make inferences by splitting up information needed to make the inferences. 7. Place information in positions where a reader is distracted or not yet interested. 8. Stress one specific aspect of the item so that another aspect (which will eventually be important for the solution) becomes less prominent.”
— Emotional involvement (engajamento)
Aqui Tobin entra diretamente no domino que mais tenho trabalhado do engajamento humano com artefactos, e que tem múltiplos nomes, dependendendo da área científica por onde nos aproximamos. Desde o “narrative transportation”, à “presença” , passando pelo “flow” de Csikszentmihalyi (no meu livro "Emoções Interactivas" fiz uma tabela de conceitos similares com cerca de 15 conceitos [4]). Assim Tobin, usa estes modos de inteira absorção por parte das obras como potenciais modos de geração de surpresa, pelo simples facto de que quando inteiramente absorvidos na experiência, muitos dos detalhes do que vai acontecendo nos passam ao lado, não nos damos conta, e por isso a obra vai manipulando o nosso pensar por via do nosso sentir. Como ela diz “the more engaging and vivid the story events are, in fact, the less vigilant readers are about policing source information.”
Ficam assim as cinco principais estratégias para desenvolver surpresa numa narrativa, seja em que meio for. São estratégias pensadas por meio da psicologia cognitiva, mas que descrevem aquilo que o guionista faz, na maior parte do tempo sem saber que o está a fazer. Técnicas passadas pela experiência, que se socorrem de vieses cognitivos que todos, enquanto leitores, espectadores, e jogadores sofremos. O facto de terem sido aprimorados, ao longo de séculos de produção de narrativa, faz com que se tenham tornado tão naturais, no sentido em que não nos conseguimos aperceber da persuasão e manipulação de que somos alvo. A força destes vieses, e por isso destas técnicas, é tão grande que mesmo sabendo da sua existência, como acontece no final da leitura deste texto ou do livro da Tobin, continuamos a deixar-nos surpreender à medida que as vamos encontrando, como acontece com a maior partes dos vieses cognitivos.
REFERÊNCIAS
[1] Robert Appelbaum (2018) Joseph North, Literary Criticism (..) Vera Tobin, Elements of Surprise (..), Studia Neophilologica, DOI: 10.1080/00393274.2018.1550624
[2] Thomas Manuel, 2018, Do Writers Care for What Psychology Has to Say About the Curse of Knowledge?, in The Wire
[3] Emmott, C., Alexander, M., (2014). Foregrounding, burying, and plot construction. In The Cambridge Handbook of Stylistics, edited by Peter Stockwell and Sara Whiteley, 329–343. Cambridge: Cambridge University Press.
Já não é a primeira vez que aqui trago o trabalho de Leonard Mlodinow, que se tem vindo a assumir como um dos mais influentes comunicadores de ciência da atualidade, contudo o modo como desta vez procedeu ao levantamento do tema acabou por revelar-se, em minha opinião, bastante superficial, desde logo porque não existe qualquer menção ao trabalho mais relevante da área, o de Daniel Kahneman e Amos Tversky. Ou seja, Mlodinow fala de experiências similares, mas ao não reconhecer o trabalho prévio, acaba por não recorrer a todo um manancial de conhecimento criado nas últimas décadas no domínio da Behavioural Economics, que desde logo fica evidente num título assente num conceito que foi popular há mais de 30 anos mas entretanto caiu em desuso: "Subliminal: How Your Unconscious Mind Rules Your Behavior" (2011).
Mlodinow trata o modo como o cérebro opera a realidade, nomeadamente a relação entre consciente e não-consciente, e como essa constante passagem entre os dois modos produz desvios ou erros nos processos de racionalização. Ou seja, Mlodinow analisa o impacto desses erros de leitura a partir das capacidades dos processos cognitivos de percepção, memória e atenção sobre as relações humanas, ou processos de socialização. Fala-nos assim do modo como lemos e julgamos os outros por meio de generalizações que o nosso cérebro opera para conseguir lidar com a complexidade da realidade. Deixo um excerto que resume os processos descritos:
“We like to think we judge people as individuals, and at times we consciously try very hard to evaluate others on the basis of their unique characteristics. We often succeed. But if we don’t know a person well, our minds can turn to his or her social category for the answers. Earlier we saw how the brain fills in gaps in visual data — for instance, compensating for the blind spot where the optic nerve attaches to the retina. We also saw how our hearing fills gaps, such as when a cough obliterated a syllable or two in the sentence “The state governors met with their respective legislatures convening in the capital city.” And we saw how our memory will add the details of a scene we remember only in broad strokes and provide a vivid and complete picture of a face even though our brains retained only its general features. In each of these cases our subliminal minds take incomplete data, use context or other cues to complete the picture, make educated guesses, and produce a result that is sometimes accurate, sometimes not, but always convincing. Our minds also fill in the blanks when we judge people, and a person’s category membership is part of the data we use to do that.”
Tenho aqui feito muitas resenhas de livros e algumas têm conseguido atingir níveis de profundidade com que não contava à partida. A literatura é um meio rico para compreender o mundo e a realidade, ainda assim nem sempre os temas se aproximam dos nossos interesses o suficiente para justificar um investimento grande no estudo e interpretação da mesma. Neste caso senti alguma ambivalência: por um lado queria compreender melhor a Rússia, nomeadamente a sua evolução política; por outro, não esperava retirar daqui conhecimento particularmente novo, uma vez que o sistema político ali implantado teve tempo para demonstrar a sua ineficácia, não querendo debater algo que empiricamente já foi demonstrado como utópico. Contudo, não deixava de me intrigar o como, ou seja, a História conducente à Revolução Russa, à criação da primeira nação governada segundo um regime comunista. Embora talvez o mais importante para mim tenha sido mesmo o tentar compreender como é que um simples livro, a simples literatura, contribuiu para tal. O problema é que ao tentar compreender apenas isto, vi-me enredado num mar de leituras sem fim, já que para compreender o impacto deste livro, tive de aprender mais sobre a realidade em que ele surgiu. Assim, tentarei nas próximas linhas dar conta do que li, compreendi e interpretei.
Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.
O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.
Nikolai Tchernichevski (1828-1889)
A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.
Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.
Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.
Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.
“How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner
Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.
E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.
O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
“O romance de Tchernichévski é demasiado complicado, muito cheio de ideias para ser entendido e avaliado numa idade precoce... Mas depois da execução do meu irmão, sabendo que o romance de Tchernichévski era um de seus livros favoritos, comecei a lê-lo de outra forma e fiquei a refletir sobre ele não apenas alguns dias, mas semanas inteiras. Foi só então que entendi a sua profundidade. É uma coisa que pode fazer disparar as energias duma pessoa para toda a vida.” Vladimir Lenine, in The Russian Revolutionary Novel, (1985, p.24)
Vladimir Lenine (1870-1924)
As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.
Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.
Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.
Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.
Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.
Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro." in "O Que Fazer" (p.363)
Se a Rússia se transformaria numa ditadura pesada, gerida por um dos mais vis chefes-de-estado de sempre — Estaline — a abordagem acabaria por saltar fronteiras e entrar, como um cavalo de Tróia, no ocidente por meio de Ayn Rand, nascida em São Petersburgo. Um século depois, esta apresentava o seu objetivismo — o indivíduo como o fim em si mesmo —, que sustentaria a criação da grande ideologia económica — o Neoliberalismo —profundamente promovida pelo seu discípulo, Alan Greenspan, o arquiteto da recente crise financeira mundial de 2008. É impressionante descobrir que Alan Greenspan, o potenciador do capitalismo selvagem internacional, levou para a sua cerimónia de juramento na sala oval apenas duas pessoas, a sua mãe e Ayn Rand. Não admira que se designasse o séquito de Rand como seita.
Ayn Rand (1905-1982)
Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.
Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.
Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.
Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.
O texto "The Demoralized Mind" é de 2016, mas fica para mim como um dos textos mais interessantes que li em 2017. O seu autor, John F. Schumaker, um académico da área da Psicologia Clínica com trabalho reconhecido internacionalmente ao longo de décadas, fala-nos sobre a epidemia das doenças mentais, focando-se na depressão, indo ao fundo da mesma, para mostrar que quando não é patologicamente motivada, é mais certo tratar-se de um problema do foro do significado, que se pode designar por Desmoralização.
Da Depressão à Desmoralização
“Three decades ago, the average age for the first onset of depression was 30. Today it is 14. Researchers such as Stephen Izard at Duke University point out that the rate of depression in Western industrialized societies is doubling with each successive generational cohort (..) depression is so much a part of our vocabulary that the word itself has come to describe mental states that should be understood differently (..) Since it shares some symptoms with depression, demoralization tends to be mislabelled and treated as if it were depression. A major reason for the poor 28-per-cent success rate of anti-depressant drugs is that a high percentage of ‘depression’ cases are actually demoralization, a condition unresponsive to drugs.”
Esta é uma realidade incontornável, as drogas são cada vez melhores neste domínio, da fluoxetina à paroxetina ou citalopram, mas estamos ainda muito longe de uma SOMA à lá Aldous Huxley, porque se nos fazem sentir felizes, funcionam mais como anestesia, esquecimento das dores do mundo, e quando o seu efeito termina, tudo fica igual ao ponto de partida, porque o problema não está na serotonina, está no modo como atribuímos significado à realidade.
Mas o que é a Desmoralização?
“Rather than a depressive disorder, demoralization is a type of existential disorder associated with the breakdown of a person’s ‘cognitive map’. It is an overarching psycho-spiritual crisis in which victims feel generally disoriented and unable to locate meaning, purpose or sources of need fulfilment.”
Mas porque está então tomar conta de nós, em pleno século XXI? Schumaker aproxima-se de Lipovetski e Baudrillard, e aponta o dedo à sociedade de consumo, para dizer que as suas práticas e rotinas estão atingir-nos e a corroer-nos por dentro.
“Consumer culture imposes numerous influences that weaken personality structures, undermine coping and lay the groundwork for eventual demoralization. Its driving features – individualism, materialism, hyper-competition, greed, over-complication, overwork, hurriedness and debt.”
“The level of intimacy, trust and true friendship in people’s lives has plummeted. Sources of wisdom, social and community support, spiritual comfort, intellectual growth and life education have dried up. Passivity and choice have displaced creativity and mastery. Resilience traits such as patience, restraint and fortitude have given way to short attention spans, over-indulgence and a masturbatory approach to life.”
“Research shows that, in contrast to earlier times, most people today are unable to identify any sort of philosophy of life or set of guiding principles. Without an existential compass, the commercialized mind gravitates toward a ‘philosophy of futility’, as Noam Chomsky calls it, in which people feel naked of power and significance beyond their conditioned role as pliant consumers. Lacking substance and depth, and adrift from others and themselves, the thin and fragile consumer self is easily fragmented and dispirited.”
“By their design, the central organizing principles and practices of consumer culture perpetuate an ‘existential vacuum’ that is a precursor to demoralization. This inner void is often experienced as chronic and inescapable boredom, which is not surprising. Despite surface appearances to the contrary, the consumer age is deathly boring. Boredom is caused, not because an activity is inherently boring, but because it is not meaningful to the person. Since the life of the consumer revolves around the overkill of meaningless manufactured low-level material desires, it is quickly engulfed by boredom, as well as jadedness, ennui and discontent. This steadily graduates to ‘existential boredom’ wherein the person finds all of life uninteresting and unrewarding.”
“Repeated consummation of desire, without moderating constraints, only serves to habituate people and diminish the future satisfaction potential of what is consumed. This develops gradually into ‘consumer anhedonia’, wherein consumption loses reward capacity and offers no more than distraction and ritualistic value. Consumerism and psychic deadness are inexorable bedfellows.”
Ou seja, Schumaker fala do consumismo como alavanca, mas coloca o dedo numa suposta génese deste consumo que parece advir pela perda da crença, pela perda das verdades religiosas, e consequente ausência de guias ou orientações. Estamos entregues a nós próprios, restando-nos apenas a constante luta por mais, e mais, e mais, ainda que nos iludamos a nós mesmos com a ideia de que tudo o que fazemos tem como fundamento o melhorar e fazer bem ao humano.
Eu trabalho a Ciência todos os dias, e por mais que queira contradizer este panorama, não consigo. A realidade que habitamos hoje, pós-industrial e embebida de facilidades, que nos deveria fazer chorar de alegria a cada momento, não consegue elevar o nosso sentir. Já Harari repete esta ideia por várias vezes nas suas duas obras, "Homo Sapiens" (2014) e "Homo Deus" (2017), dizendo que tudo aquilo que hoje temos, tudo aquilo que aparentemente conseguimos além do que já tínhamos na Idade Média, em nada nos faz sentir melhores, ou ser mais felizes do que quem viveu nessa altura. Mas Schumaker vai mais longe, tentando explicar porque razão estamos a ser corrompidos pelo nosso "sucesso", citando os estudos do antropologista Raoul Naroll, que:
“used numerous examples to show that entire societies can become predisposed to an array of mental ills if their ‘moral net’ deteriorates beyond a certain point. To avoid this, a society’s moral net must be able to meet the key psycho-social-spiritual needs of its members, including a sense of identity and belonging, co-operative activities that weave people into a community, and shared rituals and beliefs that offer a convincing existential orientation.”
Ora isto aproxima-se de algo que tenho vindo a estudar a propósito das razões que nos levam a jogar videojogos, e que me tem levado a compreender que as motivações para o ato de jogar assenta fundamentalmente em disfunções humanas cognitivas. Ou seja, muitas das rotinas exploradas pelo design de videojogos para engajar os jogadores, estão diretamente ligadas a vieses cognitivos que podemos encontrar, por exemplo, definidos no trabalho de Daniel Kahneman. Ora o que Naroll parece querer dizer é que a nossa cognição, por sofrer destes vieses e entorses, requer algum tipo de estrutura externa, de condicionamento, para se manter equilibrada, o que já era dito antes por Erich Fromm a propósito do “frame of orientation”, que é aqui também citado, acabando Schumaker por rematar: “demoralization is a generalized loss of credibility in the assumptions that ground our existence and guide our actions.”
Ou seja, a nossa ânsia por nos liberar das "verdades" religiosas, entre outras, atirou-nos para um mar de incerteza e dúvida, no qual só nos resta continuar a navegar em frente. Por sua vez, ir em frente está-nos no DNA, precisamos continuamente de mais, de conseguir ter mais, de ir mais além. Mas quanto mais vamos obtendo mais precisamos de obter para continuar a sentir que dominamos o mar que navegamos, fazendo com que conseguir ter mais seja o nosso único desígnio. Deste modo, se este nosso desejo intrínseco é a nossa maior força, enquanto seres humanos, centelha fundamental da curiosidade e da criação de novo conhecimento, parece ao mesmo tempo estar a tornar-se na nossa maior prisão.
O "tratamento" sugerido é complexo, citando novamente Fromm, "We can’t make people sane by making them adjust to this society. We need a society that is adjusted to the needs of people". Ou seja, o problema não está nos indivíduos, mas na rede social que os sustenta a todos. Não podemos mudar nada disto de modo individual, e o maior paradoxo de tudo isto é que quanto mais livre é a sociedade mais individualistas nos vamos tornando, afastando-nos de poder vir a encontrar uma solução para o problema. O destino de tudo isto, proposto por Schumaker, é distópico, mas talvez não seja irrealista, porque na orgânica da natureza tudo funciona por ciclos, e cada ciclo atinge sempre o seu fim para dar lugar a um novo.
Atualização 26.XI.2017
Se o texto acima termina numa nota negativa, numa certa desesperança face ao que nos aguarda enquanto espécie, como em tudo o que é discussão filosófica, existe sempre um outro lado da argumentação. Nesse sentido, veio mesmo a calhar o último episódio da "Shot of Awe" de Jason Silva, publicado também ontem, que aqui deixo para contrabalançar. Silva é reconhecido pelo seu imenso otimismo, à lá Carl Sagan, e este pequeno shot de vídeo é inspirador, para quem se quiser deixar levar.
Adam Alter é doutorado em psicologia social e é professor de Marketing na NYU, o que só por si já nos diz um pouco sobre aquilo que podemos esperar encontrar nas páginas do seu mais recente livro “Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked” (2017). Ou seja, um trabalho de análise social e psicológica sobre as mais recentes estratégias de marketing e de design, utilizadas pelas grandes empresas tecnológicas, para agarrar os seus consumidores e mantê-los entretidos a ponto de os tornar viciados nos seus produtos. É um livro que toca sobre vários assuntos centrais do meu trabalho em design de interação e design de jogos.
O livro inicia-se com uma alargada discussão sobre a conceito do vício, sobre o modo como surgiu na história, como ganhou carga pejorativa, e como mais recentemente se veio a dividir em dois grandes ramos: comportamental e baseado em drogas. Enquanto o vício baseado em drogas está completamente estabilizado e é descrito pelos manuais de diagnóstico da psiquiatria, o vício comportamental (behavioural addiction) é ainda visto ainda como a necessitar de mais estudos. Ainda assim a variante de jogos de azar a dinheiro (gambling) foi uma das primeiras categorias a entrar nos manuais, tendo nos anos mais recentes surgido algumas evidências que levam a considerar casos como o vício: na internet, em sexo, em pornografia, comida, exercício, compras, computadores ou videojogos.
Apesar da clara separação entre o uso de drogas e os comportamentos, Alter escreve de forma um apouco atabalhoada, acabando por a certa altura parecer estar a defender que são a mesma coisa, ou seja, que em termos de efeitos e problemas poderão conduzir às mesmas situações. Isto porque Alter defende aqui que o problema da viciação, a dependência, é antes de mais um problema de contexto e auto-determinação, e menos da droga, o que me levanta muitas dúvidas. Para reforçar esta ideia avança com uma ideia, baseada num medo, que eu também tinha quando era pequeno: “As a kid I was terrified of drugs, I had a recurring nightmare that someone would force me to take heroin and that I’d become addicted”. Ao dizer isto Alter acaba por dizer que tal nunca aconteceria, porque a heroína precisa de um contexto para se tornar um vício. Para tal dá o exemplo dos combatentes do Vietname, altamente viciados em heroína e que facilmente abandonaram o vício ao chegar aos EUA, ou seja, pela drástica mudança de contexto. Contudo, isto está longe poder ser assim simplificado. Não conheço o caso da heroína, mas conheço de outras drogas mais recentes, que são capazes de produzir dependência independentemente da vontade dos sujeitos. Sendo verdade que as mudanças de ambiente, de contexto, contribuem imenso para atenuação destes seus efeitos.
O problema do texto de Alter é que está claramente à procura de audiências. Aliás, não é por acaso que abre o livro com a discussão, já esgotada, de que os criadores de tecnologias de Silicon Valley, focando-se sobre o icónico Steve Jobs, proíbem o uso das próprias tecnologias aos seus filhos. Alter chega mesmo a dizer, o que me parece de mau tom, que os criadores de tecnologias no que toca aos seus filhos seguem a máxima dos traficantes: “never get high on your own supply”. De mau gosto, não só por brincar com as pessoas identificadas, mas porque ao esticar as ideias desta forma, acaba por ultrapassar a fronteira entre o informativo e o alarme. Se muitos dos criadores de tecnologias não colocam os filhos nas escolas mais avançadas em tecnologia, não é com certeza pelo medo de que estes desenvolvam dependências, mas é antes, e aqui sim recorrendo ao seu conhecimento tecnológico, por saberem que as crianças aprendem muito mais efetivamente com outros seres humanos do que com qualquer tecnologia.
Contudo, não é do meu interesse alongar-me aqui sobre esta discussão, já que o que me levou à leitura deste livro foi o modo como o design produz engajamento. Para tal aceitarei a definição de que o vício comportamental consiste numa compulsão para se envolver em comportamentos gratificantes, de tipo repetitivo, não relacionados com drogas, deixando de lado as questões de definição de dependência. Com isto não estou a minorar os seus efeitos, eles podem ocorrer, contudo, e tal como se pode ver pelas reticências da comunidade psiquiátrica, estão longe de se poderem considerar universais. Por outro lado, a auto-determinação terá maior eficácia quando utilizada contra um vício comportamental, como o sexo ou os jogos, do que num caso de vício numa droga, como muitos dos antidepressivos que são hoje amplamente utilizados. Mais, se assim não fosse, teríamos de esquecer tudo aquilo que escreve Alter ao longo do seu livro, já que no final do livro, esquecendo e minorando grandemente os efeitos ou capacidades da tecnologia e sua viciação, apresenta o uso controlado da Gamificação como uma potencial forma de combate dessa viciação!
Apesar de tudo isto, não quero esquecer o trabalho de Alter, e por isso mesmo me alongo a falar dele, porque julgo que a parte central do seu contributo é válido, e esse sustenta-se nos padrões, encontrados por ele na análise das tecnologias, que têm servido as grandes empresas para nos manter focados (ou viciados) nos seus produtos. E é sobre esses que me deterei agora aqui, e que são no fundo aquilo porque vale imenso a pena ler este livro. Porque tenho de concordar quando Tristan Harris, um especialista em ética do design, diz que o problema não está na falta de força de vontade das pessoas mas no facto de “there are a thousand people on the other side of the screen whose job it is to break down the self-regulation you have.”
Alter apresenta então seis padrões que definem no fundo seis grandes estratégias de design: 1 - Goals, 2 -Feedback, 3 - Progress, 4 - Escalation, 5 - Cliffhanger, 6 - Social Interaction. Para complementar este trabalho aconselho vivamente a leitura de “Contagious: Why Things Catch On” (2013) Jonah Berger, no qual Berger apresenta também seis padrões, no caso de potenciação de partilha online, mas que se aproximam bastante do que aqui se discute: Moeda Social, Gatilhos, Emoção, Público, Valor Prático, Histórias. Muito provavelmente, aqui ou noutro lado, procurarei em breve estabelecer paralelos entre os padrões de Alter e Berger. Vejamos então cada uma das estratégias encontradas por Alter:
Estratégia 1 - Goals / Metas
As metas são, provavelmente, o mais eficaz modo de garantir a motivação humana em termos extrínsecos, já que recorrem a um elemento constituinte da nossa biologia, o factor de competição. Ou seja, a primeira condição do estabelecimento de uma meta assenta na comparação com os outros. Somos seres profundamente sociais, e necessitamos constantemente de nos comparar aos demais, para compreender se somos seres humanos completos. Como tal, as metas não são meros indicadores abstratos, elas representam todos os outros, e no fundo o grupo desses outros em que nós nos encaixamos. O melhor exemplo disto é dado por Alter com a análise dos comportamentos de maratonistas não se regulam apenas pelo completar dos 42 km, mas utilizam como motivador para conseguir tal feito metas de tempos. No gráfico abaixo podemos ver como as metas de 3h, 3h30, ou 4h, são usadas massivamente pelas pessoas para terminar as suas corridas. Tendo tomado a decisão de correr a maratona e preparando-se para entrar nesse grupo, começa a preocupação com saber em que sub-grupo me incluo. As metas permitem assim aos corredores, quantificar e dosear o investimento, conseguindo perto das metas ir buscar energia em si próprios que já não acreditavam existir, mas que despoletado pela adrenalina do objetivo constituído pela meta consegue chegar lá. Isso explica porque no gráfico temos tantas pessoas a terminar imediatamente antes de cada intervalo, e tão poucos imediatamente a seguir.
Tempos agregados de milhares de corredores que correram os 42km da maratona
Este pequeno exemplo, quando aplicado às tecnologias sociais que nos rodeiam, e aos videojogos, rapidamente nos fazem lembrar miríades de aplicações. Se no passado as metas serviram ao ser-humano como fundamento de sobrevivência (subir uma montanha com a meta de encontrar comida ou um novo abrigo), hoje as metas são a coroa da sociedade capitalista, que ao puxar por essas raízes biológicas de obter mais e mais, acabou por criar a sociedade mais competitiva que alguma vez conhecemos, algo que foi radicalmente acentuado com o surgimento das Tecnologias de Informação, que permitiram a criação e desenho de métricas em absolutamente tudo aquilo que hoje fazemos. Repare-se no modo obtuso como se passou a quantificar o número de amigos através do Facebook, o número de seguidores através do Twitter, o número de gostos através do Instagram, o número de passos no pedómetro da Nike. A gamificação não inventou nada, apenas libertou e descomplexificou o mundo para aceitarmos que a tecnologia passasse a controlar a nossa biologia.
As Universidades hoje vivem para atingir Metas
Repare-se como as universidades passaram a viver obcecadas por Rankings, que dependem do números de artigos que cada investigador publica, colocando pressão na publicação apenas para atingir metas completamente artificiais. Não surge inovação, nem qualquer melhoria para a sociedade através do cumprimento destas metas. Isso já foi amplamente debatido e discutido, inclusive com vários experimentos. Contudo, sem qualquer consciência dos seus efeitos secundários, as administrações universitárias em conjunto com os administradores políticos, continuam a colocar toda a sua ênfase governativa nestes indicadores. A razão é simples, é muito mais fácil vender a ideia de que estamos a subir a montanha para encontrar uma ilusão no topo, do que vender a subida da montanha porque faz parte da nossa caminhada.
Deste modo, as metas tornaram-se na estratégia número do design de qualquer atividade. As metas produzem um efeito visceral nos seres-humanos, e por isso o simples explicitar da mesma é suficiente para garantir o interesse dos sujeitos e colocá-los no caminho da sua obtenção. Claro que as metas só se tornam efetivas quando complementadas pelos devidos quadros comparativos, aquilo que nos jogos chamamos de 'quadros de honra'. Por isso, e com a entrada da gamificação, criou-se uma estratégia de design, que ficou conhecida como PBL (Points, Badges and Leaderboards), que já eram usada nas escolas, mas passou a ser utilizada um pouco por todo o lado como fundamento de motivação.
O lado negativo das metas, e no fundo de todos os sistemas de métricas, é que não funcionam como motivação intrínseca. São meros despoletadores externos que desaparecem no momento em que desaparece a sua quantificação. Ninguém vai passar a correr mais por usar o quantificador de passos da Nike, já que apenas o fará enquanto o quantificador de passos estiver ativo. No momento em que desaparecer, desaparece a motivação do corredor. O que não é mau de todo, já que explica porque dizia acima que a capacidade de criar verdadeira viciação ou dependência é residual. Mas afeta, quando se acredita que para mudar culturas basta a simples introdução de métricas para o transformar das pessoas.
Estratégia 2 - Feedback / Reação
As lógicas de feedback não se distinguem muito das metas, já que estão intrinsecamente conectadas, no sentido em que elas dependem do estabelecimento de metas para ocorrer. Ou seja, o Facebook só me pode dar feedback de um novo pedido de amigo porque quantificamos os amigos, ou do surgimento de uma nova mensagem porque quantificamos o número de mensagens. Como tal, o feedback funciona como amplificador do objeto de meta. Mais ainda, quando os estudos demonstram, que psicologicamente somos muito mais afetados, ou seja recompensados emocionalmente, pelo facto de estarmos quase a atingir uma meta, do que pelo facto de a atingir. A razão é simples, o estar quase, implica ainda investimento emocional, enquanto o atingimento da meta, corta abruptamente as sensações dessa atividade.
Da próxima vez que abrirem a página do facebook no vosso computador ou telemóvel, reparem como o vosso coração palpita no aguardo pelo carregamento dos dados até que verificam que os balões vermelhos de notificações estão acesos. E como no caso de estarem sentem um alívio, a recompensa, que pode ser aumentada no caso de estar não apenas um balão, mais dois, ou mesmo três ligados (notificações+mensagens+novos pedidos de amizade). O feedback é talvez o elemento mais importante do Design de Interação. Ou seja, é o garante da organicidade do sistema, da sua capacidade de se dar a quem com ele interage. No fundo, porque são sistemas que simplesmente emulam a comunicação humana. Reparem como nos damos mal com alguém que falha o feedback; se dizemos algo, esperamos sempre reação do outro lado, quanto mais não seja, um grunhido, dando conta da recepção daquilo que dissemos.
Por outro lado, se as metas se energizam pela necessidade de competição, o feedback energiza-se pela necessidade de colaboração. O feedback garante que não estamos sozinhos, e é por isso que tantas tecnologias se têm esforçado por encontrar formas de estarmos constantemente a debitar feedback, e tanto estudo tem sido dedicado a tentar compreender os melhores tipos de feedback (Like vs. +1, Reações do Facebook). Tudo isto explica também o crescimento insano nos últimos anos dos sistemas de notificações. Aliás, por reconhecer este poder invisível dos sistemas de notificação, na maior parte das tecnologias que uso — do telemóvel ao computador — só permito notificações do meu calendário pessoal e do alarme do relógio. O meu telemóvel tem todos os serviços de push desligados, e todas as aplicações têm as notificações inativas. No computador igual, nenhuma aplicação social me pode enviar e-mails, ou apresentar feedback nos ecrãs fora do âmbito da própria aplicação.
Estratégia 3 - Progress/o
Tendo em conta que já vai bastante longo este texto, não me vou alongar tanto nos próximos padrões, pela simples razão de que não são propriamente uma novidade para quem vai acompanhado este blog. No caso do padrão de progresso já aqui foi discutido várias vezes, nomeadamente aquando da recensão do livro "The Progress Principle" (2011) de Teresa Amabile.
O progresso diz respeito ao recortar do caminho para a meta em etapas (por exemplo os capítulos de um livro). A ideia passa por criar metas intermédias que funcionam como feedback em relação à meta final, deste modo desenvolve-se no sujeito a sensação de progresso. Este progresso é assim responsável por conferir motivação para se manter no caminho através das recompensas despoletadas pelo antingimento das metas intermédias. Um exemplo dado por Alter que é excelente, é o do “Dollar Auction Game”, que vale a pena analisarem no pequeno video da National Geographic (abaixo).
O experimento “Dollar Auction”.
Como se percebe, este jogo demonstra muitos dos problemas criados pelas metas e feedbacks, e pela noção de progresso, e como podem ser usadas contra nós. Muitas das atuais apps sociais aproveitam-se de tudo isto, e alguns dos sistemas que mais têm tirado vantagem deste design são os jogos “free-to-play”, daí que no meio dos estudos de game design, se tenha começado a definir muitos destes jogos como jogos predadores. Ainda assim o jogo que mais efetivamente soube rentabilizar todas estas técnicas foi “World of Warcraft”, acima de tudo pela sua forte componente social, tendo-se tornado num dos jogos que mais pessoas obrigou a recorrer a centros de ajuda na luta contra a dependência. Ou seja, apesar de continuar a defender os videojogos como pouco capazes de criar dependências reais, o cenário muda de figura quando falamos de jogos online, principalmente jogos massivos online. Nesses casos, não temos apenas sistemas desenhados para engajar jogadores, temos os jogadores incluídos num sistema em que se influenciam uns aos outros, criando sistemas de pressão social que vão muito além daquilo que a tecnologia consegue fazer per se.
Estratégia 4 - Escalation / Escalar
Provavelmente se utilizar a palavra que é utilizada no mundo da Educação e dos Videojogos, Scaffolding, reconhecerão mais facilmente do que trata este padrão. A discussão deste ponto realizei-a já bastante em detalhe no artigo académico "Elementos do design de videojogos que fomentam o interesse dos jogadores".
De forma resumida, o scaffolding consiste no desenho de “andaimes” por forma a ajudar os sujeitos no processo de escalada. Ou seja, toda a atividade tem as suas dificuldades, contudo os seres-humanos são mais facilmente motivados para a sua realização, quando o nível de dificuldade está ao seu alcance. Deste modo, o design deve levar em conta as necessidades dos utilizadores, e providenciar ajuda, garantindo contudo que não torna tudo demasiado fácil. Isto foi primeiramente definido por Vygotsky num modelo que ficou conhecido por Zona Proximal de Desenvolvimento.
Ao desenhar as atividades por meio de andaimes, garante-se a criação de flow (uma área em que a satisfação é otimizada) criando-se o desejo nos sujeitos de permanecerem envolvidos com as criações indefinidamente.
Estratégia 5 - Cliffhanger / Ganchos
Neste ponto Alter vai evocar o efeito de Zeigarnik, assente na Gestalt, para desconstruir a magia do envolvimento com as narrativas, dedicando assim grande parte da sua discussão às séries televisivas. Este efeito diz-nos que as experiências incompletas nos envolvem mais do que as completas, algo que já aqui tinha falado a propósito do livro de Cialdini "Pre-Suasion" (2016). Ou seja, enquanto não atingimos a completude do sentido de uma história somos envolvidos por esta, deixando-nos levar pela tensão e suspense, até que a resolução se dê, tudo se explique, e a tensão desapareça.
Um gancho é na gíria do audiovisual um elemento narrativo que se apresenta para prender o espetador. Por exemplo, numa história surge uma mãe num supermercado que rouba um pacote de bolos para os filhos que esperam lá fora. A seguir passamos para os miúdos e enquanto a mãe não sai da loja, o espetador fica agarrado sem saber se ela será apanhada ou não, se ela conseguirá trazer a comida às crianças. Os ganchos são utilizados sempre que se fecha um episódio de uma série, por forma a manter o interesse do espetador em procurar o episódio seguinte para responder ao gancho que ficou aberto. No fundo, um gancho é um elemento narrativo que se abre mas não se fecha no imediato, impedindo as pessoas de se libertarem da história enquanto não souberem como se resolve o conflito aberto.
O efeito de "Closure" da Gestalt diz-nos que o nosso cérebro não consegue evitar dar sentido ao que vê, por isso procura fechar o que está aberto.
Neste padrão encontra-se o fundamento da recente descoberta, por parte de uma grande fatia da sociedade, do storytelling, que passou a ser visto como a arma número um para garantir o interesse das pessoas, dos colaboradores, dos alunos, dos pacientes, etc. etc. A quantidade de livros que saíram nos últimos anos a defender a aplicação dos princípios do storytelling a praticamente toda a atividade humana é impressionante. Nesse sentido, é natural que muitas das tecnologias que nos rodeiam, tenham de algum modo procurado aqui também alguma da sua força. Não foram apenas os videojogos que se obrigaram a incluir histórias até nos jogos de lutas, carros e futebol, foram ferramentas como o Instagram que passaram a incluir modos de história para a partilha de fotografias, assim como o surgimento de dezenas e dezenas de aplicações para ajudar as pessoas a contar histórias.
Os ganchos são profundamente viciantes e explicam como as séries de televisão se tornaram no produto audiovisual mais influente da era atual, fazendo com que empresas como a Netflix se tenham transformado em colossos multinacionais.
Estratégia 6 - Social Interaction / Interação Social
Não há muito a dizer sobre este tema, ou melhor há mas implicaria todo um artigo completo, já que é de todas, a estratégia mais complexa, no sentido em que não se resume a uma componente, mas antes enquadra toda uma área. Enquanto Alter na estratégia anterior elegeu dentro da Narrativa apenas os Ganchos, aqui optou por apresentar todo o domínio da interação social como parte do padrão. Sobre este mesmo tópico escrevi já bastante no artigo "Social interaction design in MMOs" (2014).
Assim o que está aqui em questão, em essência, é a web social, uma web na qual as aplicações já não existem sem uma camada de Interação Social. Ou seja, o Instagram nunca se teria tornado o monopólio da fotografia digital se não viesse integrado com uma rede social. O Bookings ou o Trip Advisor nunca se teriam tornado nos centros de marcação de hotéis e viagens sem a interação social dos seus utilizadores. Os jornais que não foram capazes de desenvolver as suas próprias redes sociais, viram-se obrigados a despejar os seus artigos no Facebook para que estes pudessem ganhar tração. Tendo o próprio Facebook assumindo proporções inimagináveis para um simples site de internet, possuindo neste momento nas suas base de dados, informação relativa a mais de mil milhões de utilizadores, ou seja mais do que os EUA, Europa e Brasil juntos.
A interação social toca em vários pontos daquilo que nos define como seres humanos, e é por isso que se tornou numa espécie de 'santo graal' do engajamento na internet. Um desses pontos é a necessidade de comparação com os outros, outro é de colaboração, outro é de partilha, outro de competição, outro de compreensão, no fundo tudo aquilo que nos define, e que podemos simplesmente ir buscar ao Interacionismo Simbólico de Mead, quando diz que nos definimos a partir do modo como interagimos com o outro. Ou seja, a interação social é tão fundamental para o ser humano como a comida, a água, ou o respirar, já que sem ela definhamos enquanto seres. Daí que não possamos admirar-nos com a quantidade de pessoas que admite passar tempo excessivo no Facebook, enquanto outros admitem mesmo não conseguir desligar.
No final do livro, Alter procura apresentar algumas ideias interessantes sobre como podemos aprender a lidar com tudo isto, ou sobre como as companhias poderiam rentabilizar as suas técnicas de design sem afetar tão intensamente os sujeitos. Mas não passam de um conjunto de dicas, que acredito que cada um poderá desenvolver melhor à medida que se for tornando mais e mais consciente das manipulações de que é alvo. O livro de Alter e o desvelar destas técnicas, é em si mesmo o melhor antídoto para lidar com tudo isto.
ADENDA, 4 maio 2017
Depois de algumas conversas a propósito deste texto, resolvi deixar aqui quatro notas que podem contribuir para o controlo dos efeitos do envolvimento com as tecnologias de comunicação. A primeira já a tinha aflorado no meio do texto como princípio.
1- Não permitir que sistemas, aplicações, ou sítios web notifiquem, bloquear ou desativar tudo. Sei que dá jeito, mas refletindo sobre os prós e contras, é muito mais nefasto que benéfico. Ou seja, eu não quero os outros a determinar quando é que eu devo ler, aceder ou fazer algo, quero ser eu a decidir, sou eu quem determina o meu tempo. O meu pensamento não pode ser capturado por outros, mesmo que tenham coisas importantes a dizer-me, porque cada interrupção contribui apenas para me retirar daquilo em que estou empenhado no momento. Considero todos os sistemas de notificações como profundamente invasivos, e por isso não os permito no meu espaço.
2 - Uso de ferramentas guilhotina. Tendo em conta o poder de atração de muitos sítios web, passei a utilizar a ferramenta SelfControl (existem muitas outras) que me permite desativar o acesso a uma lista de links criada por mim. Quando ativa, durante o período de tempo escolhido, todos esses sites ficam impossíveis de ser acedidos, mesmo que se apague a ferramenta. Uso-a de momento para vedar o acesso ao Facebook, Twitter, GoogleNews, GoodReads —mas posso ir adicionando o que quiser. Deste modo, o que estou a fazer é a criar uma barreira ao alimento da procrastinação que assenta muitas vezes na sedução criada pela informação infinita presente nestes sítios.
3 - Privilegiar o e-mail em detrimento do telemóvel. Ou seja, o e-mail é uma ferramenta de comunicação assíncrona, permite-me gerir o momento em que recebo e respondo, enquanto o telemóvel pela sua sincronia tende a atuar como as notificações, a invadir o meu espaço mesmo que eu não esteja naquele momento disposto a tal. Deste modo, o que faço é não atender muitas chamadas, na maior parte do tempo porque não tenho ativa a notificação sonora, mas muitas vezes porque não as quero atender naquele momento. Comunico posteriormente às pessoas que é preferível tentarem contactar-me por e-mail.
4 - Limitação das redes sociais no telemóvel. Não uso aplicações de redes sociais no telemóvel — Facebook, Twitter, GoodReads — a única excepção é o Instagram, porque apenas a uso no telemóvel. Deste modo reduzo o uso do sistema à gestão do meu tempo — telefone, e-mail, calendário, agenda e tarefas — e algum entretenimento.