Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.
Piketty foca-se nos movimentos globais económicos dos últimos 200 anos, nomeadamente a Revolução Francesa e o fim do esclavagismo, mas defende que o ponto de charneira para atingir o estado mais igualitário que temos hoje sucedeu entre 1914 e 1980, altura em que se iniciou a criação do chamado Estado Social que Piketty define como a "grande redistribution".
Piketty diz-nos que tal foi apenas possível por via de um enorme conjunto de variáveis, desde logo as Grandes Guerras, mas também o próprio experimento do comunismo na Rússia, assim como a grande depressão nos EUA. E tal foi conseguido graças ao chamado Imposto Progressivo, que considera ser a pedra basilar do estado social atual, mas também do estado mais igualitário do futuro. Sem os impostos progressivos não seria possível sustentar a Educação nem Saúde e menos ainda qualquer tipo de Segurança Social. Claro que para isto também contribuiu a diminuição tremenda nos investimentos em guerras, ainda que Piketty considere que todos estes avanços só foram possíveis exatamente por força dessas guerras.
"The experiment of Soviet communism (1917–1991), a major event that runs through and to a certain extent defines the twentieth century, perfectly illustrates these two pitfalls [a) neglecting the role of struggles and power relationships; and b) sanctifying the importance of political and institutional outcomes]. On the one hand, it was in fact power relationships and intense social struggles that allowed the Bolshevik revolutionaries to replace the czarist regime with the first “proletarian state” in history, a state that initially achieved considerable advances in education, public health, and industry, while at the same time making a major contribution to the victory over Nazism. Without the pressure of the Soviet Union and the international communist movement, it is not at all certain that the Western property-owning classes would have accepted Social Security and progressive income taxes, decolonization and civil rights. On the other hand, the sanctification of power relationships and the Bolsheviks’ certainty that they knew the ultimate truth concerning equitable institutions led to the totalitarian disaster we witnessed."
Neste pequeno excerto podemos ver como Piketty vê os efeitos do movimento Comunista do início do século passado a contribuir para a criação do Estado Social.
Piketty apresenta todo um trabalho dedicado às questões coloniais, desde logo as reparações, sendo o ponto alto a questão do Haiti, um dos maiores embustes das reparações coloniais realizadas pela França, e que está até hoje por resolver. Piketty espera que o seu trabalho contribua para a resolução do problema, e recentemente o NYT fez um trabalho impressionante de reconstituição da questão. Mas não se fica por este caso concreto, Piketty ataca fortemente a Europa por tudo aquilo que conseguiu nestes últimos 200 anos à custa do resto do globo, e fala da necessidade de converter tudo isso num futuro pós-colonical mais igual para todo o planeta.
Piketty é assumidamente de esquerda e propõe neste livro o socialismo como chave para combater a desigualdade, por isso não admira que fale dos sistemas soviético e até defenda o modelo chinês atual, ainda que ressalvando sempre todos os perigos que estes sistemas têm vindo a demonstrar. Se fui sendo muito cético quanto a isto, a determinada altura Piketty agarrou-me quando colocou a nu a presença dos Estados na detenção de Propriedade Pública. Repare-se no gráfico como a Europa e os EUA venderam tudo o que detinham, enquanto a China seguindo esse caminho, parou nos 30%. Porquê? Porque sem isso não teria poder para intervir na economia de forma direta. Ainda assim, ressalve-se que neste bolo de 30% a China apenas preservou propriedades de empresas, todo o mercado residencial por exemplo desapareceu. Ou seja, se a China consegue controlar grande parte da indústria a nível estatal, nada consegue fazer em termos da especulação imobiliária. Claro que é tudo muito discutível, porque como temos visto na Europa e nos EUA, os Estados continuam a ter muitas ferramentas para atuar sobre a economia e os grandes grupos económicos, mas para o fazerem precisam cada vez mais de se concertar uns com os outros, pois sozinhos ficam à mercê do capital, como temos visto com os paraísos fiscais ou os lucros das grandes multinacionais.
A parte final é dedicada ao modo como devemos atacar o futuro socialismo, e aqui senti várias vezes descrença nas suas ideias, mais ainda com tudo aquilo que temos vindo a assistir com a Invasão da Ucrânia, proveniente tanto da Rússia como da China e India. Piketty apresenta um conjunto de ideias muito interessantes, e que talvez um dia possam vir a existir, mas requerem um alcance global e universal, o que me deixa muito reticente no presente e futuro imediato. A sua grande proposta vai para a criação de um imposto progressivo sobre grandes lucros a nível mundial que seria depois convertido numa oferta igual para todos aqueles chegados aos 25 anos (em números atuais cerca de 120 mil euros), assim como na total desmercantilização dos sectores sociais essenciais - educação, saúde, cultura, transportes e energia. Ou seja, a criação de um mundo de oportunidades (incentivo inicial quando mais falta faz, e uma rede de segurança ampla) oferecidas a todos de modo igual, garantindo a essência motriz da motivação humana, a autonomia, deixando assim que cada pudesse decidir sobre o seu futuro. É um sonho, mas é um sonho assente em dados trabalhados com uma base científica, com uma larga margem para erro, mas ainda assim plenamente exequível.
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