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abril 02, 2023

Lessico famigliare (1963)

Depois de uma certa desilusão com Elsa Morante, com "A História" (1974), agora foi a vez de Natalia Ginzburg, com "Léxico Familiar" (1963). Ambas autoras italianas recuperadas no início deste século XXI por força do êxito estrondoso de Elena Ferrante. Morante e Ginzburg são contemporâneas, viveram tempos muito diferentes dos de hoje, por isso dificilmente podem ser colocadas ao lado de Ferrante, mas se não bastasse, estão elas próprias nas antípodas uma da outra. Se Morante usa e abusa do sentimentalismo, Ginzburg usa e abusa do desapegamento. No entanto, a comparação com Ferrante é inevitável e resultado, para ambas, é pouco favorável.

janeiro 08, 2022

A Filha Obscura (2006)

Ler a "A Filha Obscura" foi uma experiência extremamente estimulante, do ponto de vista do ganho de conhecimento sobre o mundo interior das crises da meia-idade, particularmente, para mim, por me mostrar o lado feminino dessa crise. Mas foi também imensamente estranha, porque senti que estava a ler partes desconhecidas de um universo que conhecia em detalhe, a Saga Napolitana, nomeadamente o último volume "História da Menina Perdida". Nem todos os contornos batem certo, mas começa nos nomes — Leda, Nina, Elena, Gino Vs. Elena, Lenu, Lila, Nino —, passa por Florença onde vive com o marido; num uma escritora, na outra professora universitária; mas essencialmente sonhadoras e fortes numa contínua luta interior com as pressões daquilo que querem ser e aquilo que a sociedade espera que sejam. Como diz Rachel Cusk, "Elena Ferrante escreveu a sua história duas vezes".


abril 24, 2021

Novelas de Ferrante, Roth e Mann

Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".

junho 17, 2017

Para sempre Marie Curie

Pelo título nunca o teria lido, e por isso me apego mais ainda a Montero que pára sempre que se refere aos ‘sempres’ e ’nuncas’, porque são marcas de não retorno, de perda. Porque se nunca o tivesse lido teria 'para sempre' perdido a oportunidade de descobrir a beleza do interior de Marie Curie, assim como a beleza da escrita de Montero, ainda que há muito tivesse interesse no seu trabalho. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um livro singular porque feito da mescla de géneros — romance, autobiografia e biografia —, um 3 em 1 que recorre ao melhor de cada género para nos cativar, informar e emocionar.


Montero perdeu o marido em 2009, depois de 21 anos juntos. Passados 3 anos chega-lhe às mãos um pequeno diário de Marie Curie que viria a ser a centelha deste livro que hoje podemos ler. O diário de Curie são pouco mais de oito cartas, uma vintena de páginas, escritas ao longo de um ano exato, de Abril 1906 a Abril 1907, ao marido Pierre Curie morto a 19 de Abril de 1906. Este mesmo diário pode ser lido na íntegra no final do livro, onde surge como anexo. Montero resolve então utilizar o diário de Curie para expressar as suas ideias sobre a emoção e a razão. Ao longo das pouco mais de 150 páginas Montero conta-nos quem foi Marie, de onde veio, como lutou e como sentiu a perda de Pierre. Para tal Montero vai socorrer-se de várias fontes além do diário, sendo duas principais: o livro da filha Eve Curie sobre a mãe, e a sua própria história de perda do marido, três anos antes.

Marie Curie foi a primeira mulher a receber um Nobel (Física em 1903), e a única a receber dois nobeis (segundo em Química em 1911). A sua filha, Irene Curie, iria suceder-lhe em 1935 (Química).

A partir destes ingredientes Montero constrói um livro sobre a dor e a morte, mas simultaneamente sobre a força e a razão de se estar vivo. Uma parte do texto parece jornalismo de investigação à volta da vida de Marie, escrita como uma boa história, com direito a suspense e mistério. Outra parte é relato interior dos sentires de Montero que se abre, fazendo-nos sentir que aos 60 anos e com mais de duas dezenas de obras publicadas já não tem de provar nada a ninguém muito menos ter medo de se libertar e desvelar totalmente. O diário de Curie não foi escrito para ser publicado, mas Montero escreve para ser lida, por isso não se esperem jorros de sentimentos. Aliás Montero refere que nunca tinha gostado de ler os teceres sobre a morte de alguém querido, dando o exemplo de "Tears in Heaven" de Eric Clapton ou "Paula" de Isabel Allende, porque diz ela: “Para mim era como se estivessem, de alguma forma, a traficar com dores que deviam ter sido conservadas puras.”

Monteiro viria a reconhecer que o idealismo não nos leva longe, e que na verdade todos nós o fazemos, cada um à sua maneira, e é aqui que nos vai dizer algo que muito me emocionou a propósito da arte, evocando Pessoa:
“Na origem da criatividade está o sofrimento, o próprio e o alheio (..) ‘A arte é uma ferida feita de luz’, dizia Georges Braque. Não só quem escreve ou pinta ou compõe música mas também os que leem e veem quadros e ouvem um concerto. Precisamos todos de beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou-o muito bem: 'A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.'”
Esta passagem é tão bem conseguida porque dá conta de uma forma tão singela daquilo que  este livro representa. Mas se não bastasse, ainda antes mesmo de entrar na discussão de Curie, e quando explicava porque escreveu este livro, Montero em mais um breve conjunto de linhas dá conta da arte da escrita, do que está por detrás do processo de escrever um romance, e posso dizer que é a descrição mais perfeita que já li:
"Para conseguir escrever um romance, para aguentar o tempo longuíssimo e aborrecido que esse trabalho implica, mês após mês, anos após ano, a história tem de manter bolhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emoção candente. E é pelo desejo de chegar a uma dessas cenas que, não sabemos porquê, nos deixam tiritar, que atravessamos talvez meses de soberano e insuportável aborrecimento ao teclado. De modo que a paisagem que avistamos ao começar uma obra de ficção é como um longo colar de escuridão iluminado de quando em quando por uma grande pérola iridescente. E avançamos com esforço pelo fio de sombras, de uma conta para a outra, atraídos como traças pelo brilho, até chegarmos à cena final que, para mim, é a última dessas ilhas de luz, uma explosão radiosa."
Este é o processo da escrita de Montero, mas é também a analogia que serve a Montero para nos dar a conhecer Curie. Não quero entrar no detalhe porque julgo este livro obrigatório, porque é obrigatório conhecer a história desta enorme senhora, da sua força interior gigantesca, não apenas dotada de razão científica mas claramente imbuída de uma força emocional muito grande capaz de lhe conferir doses de auto-motivação quase infinitas.

"Na vida, nada é para ser temido, tudo é para ser compreendido." Marie Curie

Mas se a criação artística e a ciência não forem os vossos pratos favoritos, ainda assim considero este livro obrigatório para todas as mulheres, para todos os homens feministas, e para todos os que ainda não compreenderam a razão do feminismo. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um grito lancinante sobre a posição da mulher, sobre as mudanças ocorridas na sociedade ao longo do século XX, e claro sobre a importância de Curie em todo esse processo. Não é mero romancear de papéis, de lutas entre sexos, é um olhar acutilante produzido a partir de uma mente habituada a desconstruir a sociedade em que vivemos através da carteira de jornalista, e por isso é um relato tão próximo e real e ao mesmo tempo, belo.

Para quem, como eu, sentiu uma ponta de tristeza pela resignação e enterrar de sonhos da Saga Napolitana de Elena Ferrante, posso dizer que não poderia ter lido melhor antídoto para essa tristeza. Marie Curie arrebata qualquer coração, que Força da Natureza. Obrigado Rosa Montero.


"Querido Pierre, a quem não voltarei a ver aqui, quero falar-te no silêncio deste laboratório, onde não imaginava ter de viver sem ti."
Marie Curie, 30 de abril de 1906

maio 17, 2017

A saga napolitana

Elena Ferrante desenvolveu uma forma particular de escrita assente em descrições simples mas viscerais do sentir feminino. Se serve o agarrar fácil do leitor pela emocionalidade, consegue a proeza de tocar em comportamentos e motivações que descrevem com particular acuidade os desejos do leitor feminino. Ou seja, mais do que a criação de universos de sentido, de lógicas e sistemas explicativos da realidade, Ferrante foca-se na instabilidade do relacional, nas fragilidades que sustentam as ligações humanas. Para acentuar esta focagem Ferrante cria um mundo em que tudo o que se diz é desdito logo a seguir, a obra constitui-se numa oscilação constante entre o desejo e a repulsa, tornando impossível a ligação empática com os personagens, apostando mais na gratificação pela visceralidade e voyeurismo.

A saga napolitana é um romance de Elena Ferrante, constituído em 4 volumes, editados em Itália entre 2011 e 2014.

A escrita de Ferrante não se faz de floreados nem rebuscados, é muito direta, muito assente no visível no imediato, são poucas as vezes em que se permite sair do concreto, criar abstrações do real e erudizar o discurso. Por outro lado, consegue ir ao fundo da psique feminina sem rodeios nem metáforas, descrevendo o interior da mente humana como quem descreve ações externas sem complexidade. E é deste modo que agarra o nosso sentido voyeurístico de querer saber o que vai dentro de cada um daqueles personagens. A esta forma, Ferrante junta uma estrutura clássica narrativa assente no mistério e suspense, que lhe serve para ir enredando o leitor, envolvendo-o na visceralidade das ações que o mantém focado continuamente na interrogação do que vai acontecer a seguir.

Se tudo funciona na perfeição em termos voyeurísticos e viscerais, não posso dizer o mesmo no campo empático. Ou seja, enquanto leitores queremos saber mais, queremos conhecer o interior e o exterior e chegar ao que se disse, ao que se pensou, ao que se sentiu, deixar-nos levar entretidos pela fluidez descritiva que nos agarra e praticamente sufoca. Contudo, as personagens e as suas relações, por um desejo de naturalismo procuram ser imperfeitas a ponto de se tornarem inconsequentes, impedindo o leitor de se colocar na pele dos personagens, de compreende-las antecipando o seu sentir. As personagens são próximas porque se nos abrem completamente, mas distantes porque não encaixam nos nossos modelos mentais do mundo.


**** A partir daqui surgirão potenciais SPOILERS ****

Em termos temáticos temos uma saga napolitana, a história de uma comunidade de famílias de um bairro pobre de uma das cidades mais pobres de Itália, Nápoles. Dividido em quatro livros, mas fundamentalmente em duas partes, com a primeira centrada num “coming of age” de duas amigas, que trilham caminhos distintos — uma segue até à universidade, enquanto a outra tem de começar a trabalhar a partir do final da escola primária. A primeira, Lenu, limita-se a seguir as regras societais, subjuga-se ao imediato na esperança de conseguir algo melhor no futuro, enquanto a segunda, Lila, se destaca pela força interior criativa dotada pela total insubmissão. Já na segunda parte, com as amigas adultas, o “coming of age” acaba por dar lugar aos romances, e os caminhos previamente trilhados pouco ou nenhum valor parecem ter, com a promiscuidade a assumir a centralidade das vidas narradas, pondo de lado qualquer progresso civilizacional.

Tive um choque quando se deu a transição de uma parte para a outra, fui-me abaixo, passei muitos dias a pensar na saga. Questionei-me muito sobre como pôde Ferrante ter escrito uma saga que se contradiz. Uma primeira parte completamente contrária, ideologicamente, a tudo o que nos diz na segunda parte. Ao longo dos quatro livros escrevi muitas ideias, copiei muitas frases, mas nada batia certo com nada. Cheguei a escrever sobre os fundamentos neoliberais na base do discurso apresentado, a elevação do ser individual acima do colectivo. A busca desenfreada pelo direito de ser feliz e o completo desrespeito pelo outro. Realizei comparações com a saga “Corre Coelho” (1960) de Updike. Mas no final acabei por chegar ao que disse acima, de que tudo em Ferrante é imperfeito, nada é previsível e muito é inconsequente, o que acaba por configurar o seu discurso numa certa apologia do niilismo, que fica bem patente numa descrição de Lenu no último livro a propósito de Nápoles:
“o sonho do progresso sem limites é na realidade um pesadelo cheio de desumanidade e de morte” volume IV, p.297
Sendo progressista convicto, acredito que podemos progredir como seres humanos infinitamente, propulsionados pelo conhecimento de nós próprios e da ciência. Acredito que um ser humano consciente é um ser humano mais livre, mas ser mais livre, não quer dizer fazer tudo o que lhe dá na gana. Ser livre através de uma consciência do mundo quer dizer conhecer os direitos e os deveres através dos limites do mundo físico, social e psicológico em que se vive. Conhecer até onde podemos exigir que o planeta se nos ofereça, que os outros se nos ofereçam, e nós próprios nos ofereçamos, e compreender o que nos é pedido em troca por essas ofertas. Por isso não me revejo no mundo de Ferrante, nomeadamente quando diz:
“talvez as coisas tenham de ser mesmo assim com os homens: viver algum tempo connosco, fazer-nos filhos e acabou. Se fossem superficiais como Nino, ir-se-iam embora sem sentir qualquer tipo de obrigação; se fossem sérios como Pietro, não faltariam a nenhum dos seus deveres e em caso de necessidade dariam o melhor de si. De qualquer modo, o tempo das fidelidades e das vidas em comum sólidas acabara, tanto para os homens como para as mulheres.” volume IV, p.347
Acredito na condição social como condição essencial da nossa espécie. Como questão de edificação cognitiva e emotiva, porque acredito que o condicionamento social fez algo mais importante por nós, permitiu-nos descobrir a razão e passar a domesticar a emoção. A espécie que hoje somos é capaz de refrear os seus instintos animais porque aprendeu que tem mais a ganhar com isso. Porque aprendeu que se pode ser muito melhor humano se se conseguir balancear entre o seu eu e o dos outros.

É verdade que tudo isto é pedir demais a quem saiu de um bairro pobre da Europa do Sul na primeira metade do século XX. Mas era sobre isto que Ferrante nos falava durante a primeira metade, mas que acaba por fazer desaparecer por completo na segunda metade. O que me leva a questionar sobre o porquê de uma “amiga genial”? Existe mesmo algum génio aqui? Ainda assim, e contra a ponta que a autora procura atar no final da história, acabo a sentir que só Lila poderia merecer esse rótulo.

Lila não seguiu a escola porque tinha dois pais que nunca acreditaram nela. Lila começou a trabalhar desde criança. Lila tinha uma veia criativa enorme, despontada pela sede de risco, mas nunca foi ouvida por ninguém, nem a professora quis saber do seu primeiro conto ”A Fada Azul”, nem o pai quis saber dos seus modelos inovadores de sapatos. Depois disso arranjou um marido que a violou no dia de núpcias, e continuou a violar durante muito tempo. Juntou-se a um galã irresponsável que lhe fez um filho e a abandonou. Perdeu uma primeira gravidez, e penou para levar a segunda até ao fim. Fugiu sozinha com o filho nos braços, encontrou finalmente alguém que a respeitasse, mas teve de se submeter a um trabalho e um patrão imundos para sobreviver. Voltou, engravidou de novo, para acabar por perder essa filha com 4 anos…

Comparado com isto, a vida de Lenu foi um mar de facilidades. E poderia ter sido fruto dos estudos de Lenu, mas não o é. Lenu consegue o que consegue por mera sorte. A professora que convence os pais e lhe compra os livros, e a amiga que está lá sempre para a apoiar. Todos os namorados que encontra no seu caminho lhe querem bem e a tratam bem, apesar dela nunca deles gostar. A sogra abre-lhe o caminho editorial e transforma o sonho em realidade, mas ela decide ir atrás da paixoneta de adolescente que vai espezinhar todos os valores que tinha conseguido edificar. Consegue emergir novamente graças a um romance reciclado. O pai das suas filhas mais velhas continuou sempre a tratá-la bem, e a tomar conta das filhas, fazendo com que estas fossem estudar para grandes escolas. Lila não trabalharia menos que Lenu, por várias vezes consegue despontar, atingir picos, mas existe sempre algo que a puxa para baixo. Lila teve direito a todos os azares, Lenu a todas as sortes.

No final de todas as contas realizadas, aquilo que Ferrante tinha para nos dizer, com as suas tão distintas duas partes da saga, com as suas tão distintas duas personagens, é que a vida é uma roleta de casino, que por mais que a queiramos pegar pelos cornos e domá-la, ela não se verga, não se dá. E por vezes temos sorte, outras vezes temos azar. E isto acaba sendo o meu real problema com esta saga, a sua resignação, o seu niilismo que derruba qualquer tentativa de criar empatia com as personagens, porque na verdade a autora parece nada ter para dizer. Não adianta estudar, não adianta procurar um homem/mulher, não adianta construir uma família, não adianta procurar o trabalho perfeito, não adianta educar os filhos, não adianta ir atrás de amores, não adianta criar amizades, nada adianta nada. Acaba por saber a pouco. A saga napolitana acaba por ser uma mão cheia de sonhos decepada.


Uma nota final. Na comparação com "Os Dias do Abandono" (2002) sobrelevam-se dois elementos: a autenticidade e a empatia. Os discursos em ambas as obras são muito próximos — primeira-pessoa e confessional — contudo "Os Dias..." é bastante mais puro, sente-se mais a carne e o frémito. No campo das ideias, a personagem de "Os Dias..." é também bastante mais consistente, e repare-se que o é sem perder todos os contornos de imperfeição naturalista. A saga napolitana é mais trabalhada, o número de personagens, as suas teias, os seus sentires, os seus anseios, o mundo em que vive, o cenário sócio-político, é tudo muito mais amplo, muito mais rico, mas também parece a esparsos momentos ser tudo menos autêntico, mais fabricado. Fico a pensar, até que ponto esta saga não perde por Ferrante ter dado um passo maior que a perna. Ou seja, Ferrante ao longo de 15 anos, de 1992 a 2006, escreveu apenas 3 novelas, que juntas se resumem a um livro, e depois, de um momento para o outro, resolve escrever 4 livros inteiros de uma assentada em apenas 4 anos, de 2011 a 2014. Pensando sobre tudo o que li dela, e sobre o modo como diz que gosta de escrever, com pouca edição o mais próximo possível da primeira versão escrita, que estes livros teriam ganho imenso com um apurado trabalho de edição realizado após a publicação dos 4 tomos. Existem demasiadas pontas contraditórias que impedem a obra de se mostrar completamente.

janeiro 03, 2017

“Os Dias do Abandono” de Elena Ferrante

Quem quer que esteja a par do que vai sendo editado, sabe que o fenómeno Ferrante atingiu Portugal em cheio nos últimos dois anos com a publicação da sua obra pela Relógio d’Água, apesar de “Os Dias do Abandono” ter sido editado entre nós há mais de uma década pela D. Quixote. Do meu lado, conhecendo apenas o nome, não tendo lido críticas além das de amigas do Goodreads, nem nada da autora, fui apanhado completamente de surpresa quando por acaso resolvi ler a primeira página de “Os Dias do Abandono”, no ebook da edição brasileira, editado pela Biblioteca Azul. Estaquei no final da página, queria ler o resto sem parar, necessitava desesperadamente de ler o resto.


Mas não queria ler em português do brasil, tentei em inglês mas também não funcionou, e o italiano estava ainda mais distante. A escrita era de tal forma direta, humano para humano, que não queria ler o texto numa qualquer forma que me impedisse de chegar o mais perto possível da origem. A única forma de o fazer era na língua materna e numa abordagem escrita próxima no tempo e na geografia, tornando mais neutro o veículo textual, para que a sintonia pudesse conferir o esquecimento do processo de leitura. Esgotada a edição da D. Quixote, sobrou comprar a edição da novela pela RA, que me custou quando descobri que vinha enxertada numa coletânea, “Crónicas do Mal de Amor”.

Iniciada a leitura, nem queria acreditar no que estava a ler, sentia como jorros, literalmente, jorros de experiências projetados na escrita que agora se vertiam das páginas. Acontecimentos cuspidos no papel, crus, nus e reais. Realidade fria mas dada a quente. E só pensava, que forma de escrever é esta? De onde veio isto?! Era pura telepatia, como se pudesse aceder ao sentir da autora sem intermediário. Não era o que era dito, mas era o que se dizia fundido com o como se dizia, que me fez começar a investigar sobre o estilo por detrás daquela escrita. Era, talvez também, o facto de estar a ver, e a sentir, o mundo através do interior da mente feminina que me impactava tão fortemente, criando ainda mais a necessidade de compreender em maior profundidade o que tudo aquilo representava.

Ainda sem ter lido resenhas profissionais, tinha evitado ler as palavras do respeitadíssimo James Wood, que vinham como prefácio à edição da RA, e resolvi pesquisar sobre “escrita confessional”. Era o que me parecia estar ali em causa, alguém que nos revela, na primeira pessoa, o seu sentir a propósito de uma tragédia da vida. Tinha lido várias obras dentro do tipo, mas não tinha noção do seu alcance criativo, nem da existência de sub-géneros. Da minha pesquisa, encontrei três grandes sub-géneros: memórias e diários, iniciado por Marco Aurélio, tornado popular por Anne Frank no século XX, podendo definir-se, latamente, como conjunto de factos reais escritos sem um objeto definido, nem intenção de ser tornado publico; confessionalismo, iniciado por Santo Agostinho em plena idade média, tornado ex-libris literário em Sylvia Plath no século XX, definindo-se num conjunto de factos reais trabalhados pela imaginação, escritos com o objetivo de expiação, daí que tenda a centrar-se em aspetos humanos mais negativos; não-ficção criativa, um estilo muito mais recente, que se desfia no limite da linha entre o documental e o ficcional, tendo sido de certo modo iniciado por Henry David Thoreau, com seguidores como Jack Kerouac ou Jon Krakauer, e ainda experimentado noutras formas por Truman Capote, que se pode definir por conjuntos de factos reais trabalhados pela experiência, escritos com objetivos sociais ou políticos.

Como se pode ver, todos estes modos se configuram a partir de algum tipo de conjunto de factos reais, podendo nuns casos resvalar mais para o não-ficcional, enquanto noutros para o ficcional, muito em função do que cada autor pretende. Diga-se ainda, que saindo da literatura e entrando nos textos de revistas e jornais, podemos encontrar o estilo de escrita confessional desmultiplicado numa imensidade de formas e formatos. Desde quase o início do século XX que se edita nos EUA uma revista chamada “True Story” com o lema, “A Verdade é mais Estranha do que a Ficção”. Esta mesma revista daria origem ainda a mais duas novas revistas: “True Conventions” e a “Creative Nonfiction”. Mas não se fica por aqui, no início deste novo século, a escrita confessional ganhou um palco ainda mais poderoso e desmultiplicador, com a facilidade de publicação online, desde os blogs ao facebook. Só em Portugal, existem centenas de pessoas que se dedicam a este tipo de escrita, das quais aproveito para deixar dois casos que espelham a qualidade do meio: Ana Cássia Rebelo e Mil Ghent.

Por outro lado, e mais ainda por termos uma Elena Ferrante italiana, ou localizada em Itália, torna-se inevitável falar do movimento artístico fílmico aí surgido nas décadas de 1940/50, o neorealismo italiano, que procurava apresentar na tela a vida tal como ela era, sem qualquer embelezamento. Pensando em "Os Dias do Abandono", vêm-me a memória a mãe em "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rossellini, ou o pai em "Ladrões de Bicicleta" (1948) de Vittorio De Sica. Embora em termos de representação de estados emocionais, considere que o neorealismo estava ainda muito apegado ao classicismo cinematográfico. Em termos cinematográficos, considero que existe todo um movimento, tendencialmente europeu, que reflete uma realidade na qual Elena Ferrante bem se enquadra, que qualifiquei recentemente como Realismo Áspero, e que envolve filmes como “The Seventh Continent” (1989), “The Celebration” 1998, “Tuesday, After Christmas” (2010).

Voltando à escrita em tom confessional, apesar de todos os géneros aqui listados, parece existir uma certa tendência para seguir a pauta ditada por Santo Agostinho, em termos de propósito. Ou seja, servir uma certa catarse interior, revelando um sentir normalmente não verbalizado, desvelando aquilo que faz mover quem escreve, acabando por se centrar invariavelmente nos pensamentos mais negros, em tragédias humanas das mais variada espécies. Desta forma, é também um género em que quem escreve tende a optar pelo anonimato, o que faz pleno sentido. Quem não sendo capaz de revelar aos mais próximos os seus males interiores , optando pela escrita como prática quase terapêutica, o faria de modo público?!

Dito isto, assumo a minha precipitação na publicação de um texto em que defendia a necessidade de conhecer a identidade de Elena Ferrante. Sei agora o que isso implica, ou pode implicar, e aceito completamente a vontade da autora, contudo, apenas na expectativa de que após a sua morte nos possa ser revelada. Isto porque só na posse da identidade e conhecimento da sua vida, poderemos chegar a uma cabal definição do género literário de Ferrante. Não estão aqui em causa as "desculpas" dadas pela autora — da fama, celebridade ou voyeurismo —, discordando totalmente da sua afirmação de que a obra existe autonomamente. Não podemos chegar ao âmago completo do entendimento do texto porque desde logo é-nos pedida a crença em algo, em algo que aconteceu. Podemos dizer que apreciamos a obra pela obra, mas ela não existe sem o ser-humano que a criou, parte da chave daquele texto está nessa pessoa, é essa a condição fundamental da escrita confessional. Aliás, a própria Ferrante afirma-o em entrevista, contradizendo-se:
"Eu prefiro chamar [a escrita] de apropriação ilícita em vez de indiscrição. Escrever para mim é como um arrastão que carrega tudo consigo: expressões e figuras de discurso, posturas, sentimentos, pensamentos, problemas. Em suma, a vida de outros." Elena Ferrante em entrevista ao The Guardian
Mas definindo o género de escrita confessional de Ferrante, fica tudo dito? A opção por este modo é suficiente para tornar um texto íntimo, poderosamente emocional, como acontece com Ferrante? Não, simplesmente não. O género é apenas uma estrutura que em termos artísticos tende a ser sempre algo imensamente lato. Ferrante não é apenas escrita confessional, é algo mais, algo diferente, e que não é fácil de definir. Se evocarmos Sylvia Plath, que deambulou por este género como acima dissemos, veremos que se aproximam nas intenções (especulando no caso de Ferrante), mas ainda assim existe uma gigantesca distância entre ambas em termos discursivos. Aliás, não querendo discutir Plath, mas agora que comparo, penso que se tornou mais ícone pelo tempo e forma como morreu, o que de certo modo acaba dando ainda mais força à ideia que tenho tentado passar, de que as obras não existem sem os seus autores. Aquilo que os criadores fazem fora das suas obras contamina totalmente aquilo em que as obras se transformam.

Em termos técnicos, o que Ferrante faz é muito interessante porque não se escusa a usar a forma narrativa clássica para comunicar o sentir mais íntimo. Usa essa forma para construir e organizar as suas ideias, encadeando todos os eventos de forma causal, exteriorizando muitos dos pensamentos em ações físicas, num sucedâneo perfeitamente cronológico, tornando assim o acesso ao que nos diz muito fácil. Não existe qualquer tentação por trabalhar em fluxo de consciência, com fragmentação de memórias ou polifonias, que pudessem aproximar o leitor do modo como funciona o pensamento humano, naquela ânsia por chegar mais próximo do experienciar e sentir. Ainda mais, tendo em conta que nos quer dar a sentir o caos emocional que tem sido melhor trabalhado em abordagens mais experimentalistas. Contudo, Ferrante não sucumbe, mantém-se linear, muito direta, muito correta, falando connosco, dialogando sempre, sem esquecer que existe um leitor do outro lado. E se o faz, é porque de algum modo consegue fazer-nos chegar essa experiência do sentir, mesmo colocando-se do outro lado da folha de papel, assumindo-se como contadora, mas também como ser-humano igual a nós, mantendo a compostura para continuar a relatar, como se conversando pudesse simultaneamente gritar.

Julgo, em parte, que ela consegue esta proeza pelo modo como fusiona discurso e história. Ou seja, o discurso é uniforme e sóbrio, mas o que nos vai contando roça a insanidade. Da depravação à alucinação, tudo entra, e tudo constrói a nossa impressão do que lemos. O discurso é contido na forma mas completamente incontinente na revelação dos pensamentos mais negros e recônditos da personagem. Mais uma vez comparando, se o Molilóquio de Joyce impressiona pela forma, traduzindo-se tão próximo do modo como pensamos, já naquilo que nos vai revelando é bem mais refreado, algo fantasioso até, ainda que para 1922 já se tenha considerado pornográfico. Ferrante apesar de não inovar na forma, não deixa de ser virtuosa, o modo como movimenta os seus personagens no espaço e tempo, cria ritmos e dinâmicas muito impressivas que espelham o interior mental destes. Toda a novela tem um ritmo muito definido, quase matemático, de intensificação pela escolha dos termos, pontuação e frases que nos conduzem a um clímax, para depois, tudo se aplicar no desencher dessa intensidade, que conduz ao clarear e ganho de consciência revogatório. É classicismo puro, mas é-o de uma forma áspera, algo que nos habituámos a guardar para a vida real, que é no fundo o que Ferrante procura, como fica claro nestas palavras quase no final da novela:
“Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.” (p.286)
Por fim, e agora já depois de ter lido Wood, não tendo sentido grande sintonia com a sua abordagem à obra, concordo plenamente com a sua qualificação de autenticidade. É o que sobressai, um sentimento de verdade discursiva, mesmo não fazendo a mínima ideia se aquilo que se relata, é ou não verdade.


Edição: “Os Dias do Abandono” (2002), in Crónicas do Mal de Amor, Elena Ferrante, Relógio D’Água, Lisboa: 2014 (pp.132-288)

outubro 14, 2016

A manipulação do anonimato

Ainda não li Elena Ferrante, conto começar a ler a tetralogia apenas em janeiro do próximo ano, contudo não posso deixar de comentar o cansaço que sinto com toda esta defesa do anonimato da autora [1, 2, 3]. Percebo o que as pessoas querem dizer, mas estamos a incorrer num endeusamento de algo que verdadeiramente não queremos, e não estou com isto a defender a investigação do jornalista italiano.


Um texto não existe no vácuo, é sempre criado num tempo, espaço e por um ser humano. Essas são condições essenciais para poder estudar esse texto, para o poder compreender na sua plenitude, podendo inicialmente não o ser para dele usufruir, mas se quisermos chegar ao seu âmago, delas precisaremos. Sem qualquer uma destas variáveis presentes, podemos sempre tentar adivinhar por meio da obra, mas não a podemos verdadeiramente contextualizar, suportar, edificar, enquanto criação humana.

Se considero isto hoje importante, mais será no futuro, quando tivermos nas livrarias/cinemas, livros e filmes criados por máquinas. Para quem defende que a obra de Ferrante é o que importa, que não interessa absolutamente nada saber quem a criou, não está a dizer toda a verdade, porque na sua cabeça criou já uma identidade para essa autora, criou um imaginário que responde ao perfil de quem escreveu, onde e quando. Podem até defender que lhes chega, aceito, mas estão simplesmente a viver uma ilusão, uma ficção dentro de outra ficção.

O que pergunto, e porque de arte se trata, não mero entretenimento em que a autoria está por norma ausente, onde fica a verdade? Quem fala ali, quem é a pessoa que escreve, o que se passou com ela, o que viveu, o que sofreu, o que a fez/faz feliz? Como posso na verdade identificar-me com ela? As ideias não existem sem contexto, as histórias de vida não existem sem um autor que tenha vivido o mundo.

Defender, como parece Ferrante defender, que precisa do anonimato para criar com autenticidade, não é nada de novo, a literatura deve ser a arte com mais pseudónimos à procura de manter os seus autores anónimos. Até pode ser uma recusa da fama louvável, mas quantos criadores a recusaram e souberam viver sem necessitar destes subterfúgios! Se alguém quer verdadeiramente ser anónimo, não cria obras de arte, que só se realizam em atos de comunicação. A arte cria-se pela partilha, e a partilha não se faz no vazio, precisa de sujeitos, do lado criador e do lado recetor.

Vou mais longe, o anonimato é, nestes casos, profundamente manipulador, já que coloca em desvantagem quem está do lado da receção. O autor usa o desconhecimento no recetor para o conduzir, para construir na sua cabeça um ideal do autor, que nunca se poderá confirmar, porque nunca lhe será dita a verdade, atirando por terra todos os valores de lealdade e transparência que se esperam de quem a nós se dirige.

Não defendo que se invada a privacidade, que se vasculhem contas, mas também não aceito que se diga que é irrelevante saber quem é Elena Ferrante.