O livro "Meio-Irmão" (2001) de Lars Saabye Christensen tem dois grandes atributos, a voz interior do personagem principal, Barnum, que nos dá a sentir com particular intensidade e profundidade a vida na Noruega ao longo de toda a segunda metade do século XX. Este atributo funciona no suporte da saga familiar e coming-of-age contribuindo para a universalidade e consequente interesse internacional. Contudo esse interesse não tem comparação com o sucesso obtido no país, onde foi fortemente aclamado e recebeu vários prémios, e a razão de o ser é a existência de um segundo atributo que tem que ver com o contexto histórico da própria Noruega no pós-Segunda Grande Guerra.
O motivo que lança toda a trama, a violação da jovem Vera, tem uma leitura histórica na Noruega que não tem em mais lado nenhum, está completamente ausente de análises críticas francesas, inglesas ou americanas (L'Express, The Guardian, San Francisco Chronicle, em defesa destes críticos podemos dizer que escreveram as suas análises em 2004, quando este tema era ainda pouco ou nada conhecido fora da Noruega), não tendo encontrado referências mesmo no Goodreads, pelo menos em português ou inglês. A violação acontece no exato dia em que a guerra terminou, 8 maio 1945, um dia muito feliz em toda a Europa, incluindo na Noruega, contudo, nem tudo o que estava em marcha termina porque se anuncia o fim. Quando os alemães invadiram a Noruega, os seus soldados receberam ordens para engravidarem o maior número de norueguesas possível. O programa formal alemão, com a designação Lebensborn ("fonte da vida") defendia que como povo nórdico, deteriam sangue verdadeiramente ariano, por isso era importante fertilizar. Mas isso foi apenas a primeira parte do filme de horror, quando os alemães foram mandados embora, as mulheres que ficaram sozinhas com filhos dessas violações ou pseudo-relações, foram ostracizadas, muitas delas tiveram de abandonar o país, sozinhas, com as crianças.
Imagem do videojogo "My Child Lebensborn" (2018) (análise), em que ajudamos uma criança que vive com uma senhora que o adotou na busca pelos seus pais (o pai alemão foi-se embora, a mãe norueguesa não o quer).
Descobri este mesmo assunto apenas há 2 anos, quando saiu um pequeno jogo documental norueguês, "My Child Lebensborn" (análise do jogo). Agora, por causa de Christensen, fui procurar mais informação e fiquei a saber que o livro saiu na Noruega quando se começou a discutir o perdão do Governo às vítimas dessa ostracização, em 2001, um perdão formal que só chegaria 18 anos depois, na comemoração dos 70 anos da Declaração dos Direitos Universais do Humanos (fonte). Mais, que as mulheres não foram apenas mandadas emboras, muitas, assim como os seus filhos, foram institucionalizadas, tendo nessas instituições continuado a sofrer abusos sexuais, e as crianças idem, sendo usadas como cobaias ou ainda torturadas — algumas eram atadas às camas durante 16 horas por dia, obrigadas a comer à força, se vomitassem tinham de comer o próprio vomitado (fonte). Lendo isto, o guião cinematográfico que surge quase no final, para o suposto filme “Engorda”, ganha uma dimensão nova e fortíssima, muito maior do que o simples e fácil contraponto com “Fome” de Hamsun. Aliás, podemos juntar a esta leitura o facto da avó de Barnum iniciar a obra a queimar os livros de Hamsun por causa do obituário que ele tinha acabado de escrever a Hitler.
Os nazis mandaram criar maternidades para receber as mulheres grávidas dos soldados e os seus filhos. Provavelmente recebendo tratamento preferencial, o que serviria para aumentar o ódio dos noruegueses após o fim da guerra.
Um exemplo famoso, que encontrei agora também, destas crianças é Anni-Frid Lyngstad, cantora dos Abba, filha de uma norueguesa e de um alemão, que no fim da guerra, foi obrigada a emigrar com a mãe para a Suécia, tendo perdido a mesma com a 2 anos e ficado órfã na Suécia onde cresceu. Ela foi um dos rostos do ativismo norueguês na exigência de reparações e pedido de desculpas (fonte).
Anni-Frid Lyngstad, membro dos Abba
Contextualizados historicamente, torna-se mais fácil, ou diferente, compreender o que Christensen está a fazer. Muito do que parecia totalmente desprovido de uma causa, e eu confesso que cheguei a invocar Tchékov ("Nunca se deve colocar uma espingarda carregada em palco se não for para a disparar"), porque Lars parecia lançar os eventos e não querer dar explicações. Parecia querer apenas gerar confusão na nossa cabeça, abrindo conflitos, mas não identificando o quem ou porquê. Contudo para compreender era preciso saber, ser-se norueguês ajudaria, não o sendo obriga-nos a procurar, a ir atrás da História daquele país. Quando chegamos ao substrato que suporta tudo aquilo que acabámos de ler, sentimos um baque enorme. Parece impossível, e por o parecer é que Lars teve de escrever um livro que por vezes borda o absurdo. O tom é cómico, mas não se pode qualificar de comédia-negra, talvez antes de comédia surreal, porque, também talvez, não fosse possível lidar com tamanha tragédia de outro forma.
Claro que podemos apontar o "dedo" a Christensen. Ele coloca-se a jeito na construção de confusão, sendo a mais flagrante, a colagem de uma característica física do violador (um dedo cortado) ao homem com quem Vera acaba mais tarde por casar e ter o segundo filho, Barnum, o meio-irmão de Fred. Seria então violador um alemão em fuga, ou teria sido um simples norueguês mas altamente perverso? Fico com a ideia que para Christensen não era suficiente a ideia do violador alemão abstracto, porque na verdade aquelas mulheres ao serem ostracizadas foi como se fossem violadas uma segunda vez. Por isso, Christensen parece querer colocar o dedo bem dentro da ferida, com esta confusão de dedos cortados, apontando o “dedo” aos alemães, mas também a toda a perversidade norueguesa.
Ao longo do livro, o autor, insistentemente e pela voz de mais do que um personagem, diz: "Não é o que vês que é o mais importante, mas o que pensas que vês." Esta frase dá conta do que vamos presenciando ao longo de todo o livro, e recorda-nos que não chega ver, é preciso refletir, é preciso interpretar. Alguns críticos, muito erradamente, viram na ausência de explicações de Lars, um sentido existencialista, de que a vida é assim porque nem tudo pode ser explicado. Ora Lars, vai muito além disso, ele é verdadeiro pós-modernista, obriga o leitor a trabalhar para desconstruir sentido, para compreender. Não basta abrir o livro e ler, aceitar tudo como contido naquelas páginas e imagens, é preciso ir atrás, trabalhar as ideias e oferecer-lhes substrato para as poder interpretar. Só assim podemos evitar a ilusão.