Ao chegar ao fim de "The Man from the Future: The Visionary Life of John von Neumann" (2021), e tendo em conta a enorme particularidade do intelecto de Von Neumann — aos 6 conseguia fazer divisões com 8 dígitos de cabeça e conversar em grego antigo e latim, aos 8 trabalhava com cálculo diferencial e integral e falava Francês, Inglês e Alemão além do Húngaro, no entretanto leu uma história mundial em 45 volumes e conseguia recitar capítulos inteiros décadas mais tarde —, não consigo deixar de pensar que por mais que endeusemos alguns humanos em particular pelos seus aparentes enormes feitos, o certo de tudo é que estes nada fizeram sozinhos. Ananyo Bhattacharya esquiva-se a falar da pessoa de Von Neumann, centrando-se exclusivamente sobre os seus contributos teóricos. Para esse efeito, trabalha os contributos de Von Neumann para as múltiplas ciências — mecânica quântica, teoria dos jogos, implosão nuclear, arquitetura de computadores e a teoria dos autómatos—, e como esses conduziram no futuro outros a saltos aplicados na história da ciência e tecnologia do século XX. Deste modo Bhattacharya espera demonstrar que Von Neumann previa ou viajava no futuro, contudo, Bhattacharya esquece-se de fazer o mesmo trabalho olhando para o passado, e mais em particular para o lado. Sendo o trabalho de Von Neumann de grande valor, ele não teria existido sem todas as restantes mentes brilhantes com quem se cruzou, de Claude Shannon a Alan Turing, de Einstein a Kurt Gödel, de Erwin Schrödinger a Werner Heisenberg. Este endeusamento pela abstração de ideias pode ser interessante para os colegas das ciências duras, mas eu senti imensa falta do factor humano. Gostaria de ter aprendido mais sobre a pessoa por detrás do modelo usado por Stanley Kubrick para criar Dr. Strangelove, não só pelas profundas contradições morais, mas também para compreender melhor a base dos seus processos criativos.
julho 17, 2022
julho 03, 2022
A vida de Montaigne, segundo Bakewell
Adoro Montaigne, mas soube-me a pouco o livro de Sarah Bakewell, "How to Live, or a life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer" (2010) de quem tinha adorado "At the Existentialist Cafe: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), talvez porque sabia menos sobre Sartre, Beauvoir e Heidegger. Já me tinha acontecido com o livro de Stefan Zweig, "Montaigne" (1942), sobre o qual disse "não se pode chamar a um texto que aglutina um conjunto solto de ideias sobre alguém uma biografia". E agora com Bakewell, voltei a sentir um pouco disto mesmo. Contudo, refletindo, talvez o problema não esteja nos biógrafos, nem tão pouco no biografado, mas na obra principal deste. O brilho dos "Ensaios" (1580) está no modo como nos dá acesso ao modo de ver do próprio Montaigne. Lendo os Ensaios conseguimos em vários momentos calçar as suas botas e viajar pelo seu mundo. Uma viagem que segue pelo meio dos seus pensamentos, sem inícios nem fins, já que é de um modo associativo que cada ensaio se vai desenvolvendo e nos oferecendo acessos ao seu mundo interior e ao passado. Tentar transformar este mundo rizomaticamente livre num encadeado fixo de momentos temporais parece estar destinado à decepção.
fevereiro 12, 2022
Isaac Newton
Isaac Newton é talvez a mais importante figura da história contemporânea pelo modo como conseguiu extrair da natureza um conjunto de regras abstratas que permitiram a Revolução Científica, base do Iluminismo, que por sua vez impactariam fortemente a Revolução Industrial e todo o posterior progresso tecnológico. Gleick dedica-lhe este livro, no qual faz uma boa introdução, mas podia ter ido mais fundo e mais longe.
maio 30, 2020
"I Will Never See the World Again" (2019)
O livro de memórias "I Will Never See the World Again" foi escrito durante os primeiros tempos de prisão, relata o momento de prisão, a espera, os julgamentos e a estadia na prisão. É um livro muito curto, focado num breve momento de vida, mas é um livro pleno de fôlego. Não existem aqui dedos em riste, acusações, existe um escritor que analisa o que sente, o que vê e como isso altera o seu interior. É uma verdadeira viagem pelo interior de alguém a quem foi retirada a liberdade, a autonomia. Altan, sem acesso a internet nem biblioteca, cita autores e frases completas de memória, dos clássicos com que vai convivendo no seu mundo interior, interagindo com autores como Dante, Homero, Tolstói ou Saramago.
O livro está escrito como momentos que se dividem em capítulos, alguns dedicados ao sentimento da prisão, injustiça e esperança outros dedicados à arte e literatura. Num desses capítulos Altan disserta sobre diferença entre os escritores do século XIX — Tolstói, Balzac, Flaubert e Dostoiévski — que qualifica de centrados nos personagens e suas emoções e os escritores do século XX —Musil, Céline ou Joyce — focados apenas nas ideias. Diz algo com que concordo, os personagens dos primeiros são mais importantes do que os seus autores, enquanto para os segundos apenas lhes interessa falar de si mesmos, servindo os seus personagens apenas de veículos.
A escrita, bagagem e visão do mundo apresentada nestas poucas linhas atraíram-me a ponto de ter começado a procurar o próximo livro do autor para ler.
março 23, 2019
Brincando com a mente, Claude Shannon
Existem dois contributos que são considerados como os marcos de Shannon, a sua tese de mestrado “A Symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits” realizada em 1937 e o paper "A Mathematical Theory of Communication" publicado em 1948. A tese de mestrado — realizada num MIT que ainda não era o que é hoje, apesar de ter sido onde encontrou e trabalhou com outro dos grandes pioneiros do digital, Vannevar Bush — é considerada hoje como a tese de mestrado provavelmente mais relevante de sempre, porque é nesta que são apresentados, pela primeira vez, os rudimentos que permitiriam transformar sistemas fixos de transmissão de energia, como os circuitos elétricos, em sistemas dinâmicos, que se adaptam em função das necessidades. No fundo a conversão de sistemas analógicos em sistemas, ditos hoje, digitais.
“This was the computer before the digital revolution: a machine that literally performed equations in the process of solving them. As long as the machine was acting out the equations that shape an atom, it was, in a meaningful sense, a giant atom; as long as it was acting out the equations that fuel a star, it was a miniature star. “It is an analogue machine,” said Bush. “When one has a problem before him, say the problem of how a bridge that has not been built will sway in a gusty wind, he proceeds to make a combination of mechanical or electrical elements which will act in exactly the same manner as the bridge—that is, will obey the same differential equations.” For the physicist or engineer, two systems that obey the same equations have a kind of identity—or at least an analogy. And that, after all, is all our word analog means. A digital watch is nothing like the sun; an analog watch is the memory of a shadow’s circuit around a dial.”Esta conquista de Shannon só foi possível graças à sua formação dual, em Engenharia e Matemática. Ou seja, o seu conhecimento de eletrotécnica e o seu conhecimento de matemática, nomeadamente lógica, fez com que conseguisse juntar os dois mundos de conhecimento, a assim procedesse à construção de uma máquina que operava não em função do problema a resolver, mas antes em função de um sistema de lógica booleana. E assim temos que:
“It’s not so much that a thing is “open” or “closed,” the “yes” or “no” that you mentioned. The real point is that two things in series are described by the word “and” in logic, so you would say this “and” this, while two things in parallel are described by the word “or”... There are contacts which close when you operate the relay, and there are other contacts which open, so the word “not” is related to that aspect of relays... The people who had worked with relay circuits were, of course, aware of how to make these things. But they didn’t have the mathematical apparatus of the Boolean algebra (..) “I think I had more fun doing that than anything else in my life.” [said Claude Shannon]”.
“But the most radical result of Shannon’s thesis was largely implied, not stated, and its import only became clear with time. The implication gets clearer when we realize that Shannon, following Boole, treated the equal sign as a conditional: “if”. “1 + 1 = 1: if the current passes through two switches in parallel, a light lights (or a relay passes on a signal meaning “yes”). 0 + 0 = 0: if the current passes through neither of two switches in parallel, a light fails to light (or a relay passes on a signal meaning “no”). Depending on the input, the same switches could give two different answers. To take an anthropomorphizing leap — a circuit could decide. “A circuit could do logic. Many circuits could do enormously complex logic: they could solve logical puzzles and deduce conclusions from premises as reliably as any human with a pencil, and faster. And because Boole had shown how to resolve logic into a series of binary, true-false decisions, any system capable of representing binaries has access to the entire logical universe he described. “The laws of thought” had been extended to the inanimate world.”A tese de mestrado é o cerne de todo o trabalho de Shannon, porque é o cerne da conversão do mundo real em digital. Obviamente que em 1936 não existia ciberespaço, nem existia internet, tal como não existia Microsoft, Apple, Amazon, Google ou Facebook, as 5 maiores empresas globais da atualidade. Por isso foi preciso continuar a investigação, aprofundar as possibilidades do seu trabalho, até à publicação do paper "A Mathematical Theory of Communication" em 1948, para que a sociedade conseguisse compreender o alcance do que tinha sido apresentado dez anos antes. Tal só seria possível a Shannon pelo ambiente em que trabalhava, e trabalharia durante mais de 15 anos, o Bell Labs:
“In 1925, Bell Labs was carved out of the phone company as a stand-alone entity, with custody shared jointly by AT&T and Western Electric. Walter Gifford, the president of AT&T, observed that the Labs, while nominally an arm of the phone company, could “carry on scientific research on a scale that is probably not equaled by any organization in the country, or in the world.” The goal of Bell Labs wasn’t simply clearer and faster phone calls. The Labs were tasked with dreaming up a future in which every form of communication would be a machine-aided endeavor. (..) When I first came there was the philosophy: look, what you’re doing might not be important for ten years or twenty years, but that’s fine, we’ll be there then. (..) That accumulation of talent paid tremendous dividends. In the span of a few decades, Bell researchers invented the fax machine, touch-tone dialing, and the solar battery cell. They engineered the first-ever long-distance phone call and synchronized the sounds and images in movies. During the war, they improved radar, sonar, and the bazooka, and they created a secure line to allow Franklin Roosevelt to speak to Winston Churchill. And in 1947, Bell researchers John Bardeen, William Shockley, and Walter Brattain created the transistor, the foundation of modern electronics. The trio would earn a Nobel Prize, one of the six Nobels given to Bell scientists during the twentieth century. (..) It was one thing for an industrial laboratory to hire qualified PhDs and put them to work on various pressing engineering problems. But Nobel Prizes? Pie-in-the-sky projects? Ten or twenty years of leeway? Even accounting for nostalgia, Thornton Fry’s judgment hardly seems out of place; looking back on the Labs, he called it “a fairyland company.”Neste paper, de 1948, Shannon vai para além do que tinha apresentado na sua tese, porque converte o seu conhecimento, restringido ao desenho de lógica numa máquina, num modelo matemático capaz de calcular e prever com exatidão a informação que entra e a informação que sai, num circuito. Ou seja, criava o primeiro modelo de comunicações, capaz de converter impulsos eletrónicos em bits (nome adotado para a unidade de informação, e que chegou a ser designado por "shannons"), ou seja, de transformar Energia em Informação. Este modelo alarga completamente a relevância de Shannon, porque não só alarga o domínio da Eletrónica, fazendo-o colidir com o da Computação, mas vai mesmo até ao cerne da Comunicação. Ou seja, o modelo não diz apenas como é que podemos garantir que a informação que sai e que entra é igual, recorrendo a circuitos de lógica e matemática (probabilística), mas diz como é que a informação se comporta ao longo de todo um ciclo de comunicação, algo que surpreendentemente nunca tinha sido pensado, modelado, até 1948.
Assim, temos que o conhecimento criado na tese mais o modelo proposto no paper, tornariam Shannon no grande responsável por uma vaga que dura até hoje, e que apelidamos de Revolução da Informação. Ou seja, as 5 maiores empresas do planeta em 2019, dependem completamente deste pedaço de conhecimento, já que tudo o que fazem, assenta numa continua conversão entre o mundo real e o mundo digital, pela digitalização de filmes, músicas, livros e todo o tipo de cultura, serviços e conhecimento, mas também de indústrias inteiramente construídas em exclusivo nos reinos do digital, tal como os Motores de Busca, as Rede Sociais ou as Clouds.
O resto do livro são fait-divers, alguns menos bons — como o rebaixamento de Norbert Wiener, ou as ausentes relações de Shannon com Turing ou Einstein. Do todo, o que retiro como novidade deste livro, e que ainda desconhecia, é o modo como Shannon criava conhecimento. Shannon era um maker, um tinkerer, e como Leonardo da Vinci, observava, experimentava e transformava a realidade em busca de respostas. Passou toda a sua vida a realizar experimentos, desde as primeiras máquinas capazes de jogar xadrez a ratos eletrónicos que conseguiam encontrar queijos em labirintos, até às suas duas últimas paixões, a construção de uniciclos e a modelação matemática do malabarismo. Daí o título do livro, “A Mind at Play”:
“But Shannon also placed a high value on his tinkering. “The design of game playing machines may seem at first an entertaining pastime rather than a serious scientific study,” he allowed, but there was “a serious side and significant purpose to such work, and at least four or five universities and research laboratories have instituted projects along this line (..) His goals were as grand as the means, at least at the time, were simple. “My fondest dream is to someday build a machine that really thinks, learns, communicates with humans and manipulates its environment in a fairly sophisticated way,” Shannon admitted. But he was not bothered by the usual fears of a world run by machines or a human race taking a backseat to robots. If anything, Shannon believed the opposite: “In the long run [the machines] will be a boon to humanity, and the point is to make them so as rapidly as possible...”
Quando questionado sobre a importância de podermos vir a desenvolver robôs e IA, Shannon foi muito claro e direto naquilo em que acreditava:
“I believe that today, that we are going to invent something, it’s not going to be the biological process of evolution anymore, it’s going to be the inventive process whereby we invent machines which are smarter than we are and so we’re no longer useful, not only smarter but they last longer and have replaceable parts and they’re so much better. There are so many of these things about the human system, it’s just terrible. The only thing surgeons can do to help you basically is to cut something out of you. They don’t cut it out and put something better in, or a new part in (..) “We artificial intelligence people are insatiable,” he once wrote. Once machines were beating our grandmasters, writing our poetry, completing our mathematical proofs, and managing our money, we would, Shannon observed only half-jokingly, be primed for extinction. “These goals could mark the beginning of a phase-out of the stupid, entropy-increasing, and militant human race in favor of a more logical, energy conserving, and friendly species—the computer.”E é isto, estas últimas palavras de Shannon acompanham-me desde que vi o filme “Artificial Intelligence:AI” de Spielberg e Kubrick, em 2001, tendo sido responsáveis pelo primeiro post neste blog. Uma nota final. Mesmo uma mente brilhante como a de Shannon, veria ser-lhe diagnosticada princípios de Alzheimer em 1983, sendo internado em 1993 já incapaz de reconhecer a família, vivendo até 2001.
Mais alguns links de interesse
O homem que transformou o papel em píxeis, VI
A Goliath among Giants, Bell Labs
Bell Labs Looks at Claude Shannon’s Legacy and the Future of Information Age, IEEE
1952 – “Theseus” Maze-Solving Mouse – Claude Shannon (fotografias)
Referência do livro:
Jimmy Soni, J., Goodman, R., (2017). "A Mind at Play: How Claude Shannon Invented the Information Age". NY: Simon & Schuster
junho 17, 2017
Para sempre Marie Curie
Montero perdeu o marido em 2009, depois de 21 anos juntos. Passados 3 anos chega-lhe às mãos um pequeno diário de Marie Curie que viria a ser a centelha deste livro que hoje podemos ler. O diário de Curie são pouco mais de oito cartas, uma vintena de páginas, escritas ao longo de um ano exato, de Abril 1906 a Abril 1907, ao marido Pierre Curie morto a 19 de Abril de 1906. Este mesmo diário pode ser lido na íntegra no final do livro, onde surge como anexo. Montero resolve então utilizar o diário de Curie para expressar as suas ideias sobre a emoção e a razão. Ao longo das pouco mais de 150 páginas Montero conta-nos quem foi Marie, de onde veio, como lutou e como sentiu a perda de Pierre. Para tal Montero vai socorrer-se de várias fontes além do diário, sendo duas principais: o livro da filha Eve Curie sobre a mãe, e a sua própria história de perda do marido, três anos antes.
A partir destes ingredientes Montero constrói um livro sobre a dor e a morte, mas simultaneamente sobre a força e a razão de se estar vivo. Uma parte do texto parece jornalismo de investigação à volta da vida de Marie, escrita como uma boa história, com direito a suspense e mistério. Outra parte é relato interior dos sentires de Montero que se abre, fazendo-nos sentir que aos 60 anos e com mais de duas dezenas de obras publicadas já não tem de provar nada a ninguém muito menos ter medo de se libertar e desvelar totalmente. O diário de Curie não foi escrito para ser publicado, mas Montero escreve para ser lida, por isso não se esperem jorros de sentimentos. Aliás Montero refere que nunca tinha gostado de ler os teceres sobre a morte de alguém querido, dando o exemplo de "Tears in Heaven" de Eric Clapton ou "Paula" de Isabel Allende, porque diz ela: “Para mim era como se estivessem, de alguma forma, a traficar com dores que deviam ter sido conservadas puras.”
Monteiro viria a reconhecer que o idealismo não nos leva longe, e que na verdade todos nós o fazemos, cada um à sua maneira, e é aqui que nos vai dizer algo que muito me emocionou a propósito da arte, evocando Pessoa:
“Na origem da criatividade está o sofrimento, o próprio e o alheio (..) ‘A arte é uma ferida feita de luz’, dizia Georges Braque. Não só quem escreve ou pinta ou compõe música mas também os que leem e veem quadros e ouvem um concerto. Precisamos todos de beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou-o muito bem: 'A literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.'”Esta passagem é tão bem conseguida porque dá conta de uma forma tão singela daquilo que este livro representa. Mas se não bastasse, ainda antes mesmo de entrar na discussão de Curie, e quando explicava porque escreveu este livro, Montero em mais um breve conjunto de linhas dá conta da arte da escrita, do que está por detrás do processo de escrever um romance, e posso dizer que é a descrição mais perfeita que já li:
"Para conseguir escrever um romance, para aguentar o tempo longuíssimo e aborrecido que esse trabalho implica, mês após mês, anos após ano, a história tem de manter bolhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emoção candente. E é pelo desejo de chegar a uma dessas cenas que, não sabemos porquê, nos deixam tiritar, que atravessamos talvez meses de soberano e insuportável aborrecimento ao teclado. De modo que a paisagem que avistamos ao começar uma obra de ficção é como um longo colar de escuridão iluminado de quando em quando por uma grande pérola iridescente. E avançamos com esforço pelo fio de sombras, de uma conta para a outra, atraídos como traças pelo brilho, até chegarmos à cena final que, para mim, é a última dessas ilhas de luz, uma explosão radiosa."Este é o processo da escrita de Montero, mas é também a analogia que serve a Montero para nos dar a conhecer Curie. Não quero entrar no detalhe porque julgo este livro obrigatório, porque é obrigatório conhecer a história desta enorme senhora, da sua força interior gigantesca, não apenas dotada de razão científica mas claramente imbuída de uma força emocional muito grande capaz de lhe conferir doses de auto-motivação quase infinitas.
Mas se a criação artística e a ciência não forem os vossos pratos favoritos, ainda assim considero este livro obrigatório para todas as mulheres, para todos os homens feministas, e para todos os que ainda não compreenderam a razão do feminismo. “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” é um grito lancinante sobre a posição da mulher, sobre as mudanças ocorridas na sociedade ao longo do século XX, e claro sobre a importância de Curie em todo esse processo. Não é mero romancear de papéis, de lutas entre sexos, é um olhar acutilante produzido a partir de uma mente habituada a desconstruir a sociedade em que vivemos através da carteira de jornalista, e por isso é um relato tão próximo e real e ao mesmo tempo, belo.
Para quem, como eu, sentiu uma ponta de tristeza pela resignação e enterrar de sonhos da Saga Napolitana de Elena Ferrante, posso dizer que não poderia ter lido melhor antídoto para essa tristeza. Marie Curie arrebata qualquer coração, que Força da Natureza. Obrigado Rosa Montero.
"Querido Pierre, a quem não voltarei a ver aqui, quero falar-te no silêncio deste laboratório, onde não imaginava ter de viver sem ti."
Marie Curie, 30 de abril de 1906
março 18, 2017
“The Undoing Project”, 12/2016
Daniel Kahneman tem hoje 83 anos, fugiu, com a sua família de Paris, ao Holocausto e chegou a Israel em 1946. Licenciou-se, com um major em Psicologia e um minor em Matemática, praticou psicologia e aprendeu a arte da investigação nas forças armadas israelitas. Nos anos 1960 iniciou o seu trabalho científico de fundo com um outro psicólogo matemático, Amos Tverski. Juntos, de Israel à Ivy League americana, transformariam a Psicologia e em consequência a Economia, levando ao desenvolvimento de uma área científica totalmente nova, a Economia Comportamental. Tverski morria de cancro em 1996 deixando Kahneman sozinho para receber o Prémio Nobel de Economia em 2002. Esta é a história que nos conta Michael Lewis, e que pelos ingredientes facilmente se poderá depreender que não faltam conflitos, medos e alegrias para criar interesse na leitura.
De forma muito resumida, Kahneman e Tverski são responsáveis por uma mudança de 180º na forma como passámos a encarar os seres humanos, de seres racionais a seres emocionais, nomeadamente em tudo o que tem que ver com o modo como se processa a tomada de decisões. Até ao surgimento do trabalho desta dupla, os modelos dos economistas criavam previsões partindo do princípio de que os seres humanos eram profundamente racionais, que agiam baseados em conceitos probabilísticos, capazes de quantificar os ganhos e as perdas, e tomar decisões lógicas nas suas vidas. Kahneman e Tverski demonstraram que os seres humanos são tudo menos isso, que a racionalidade não está nunca separada da emocionalidade, e que existe um conjunto de processos que toldam e enviesam o modo como vemos e compreendemos o mundo.
Lewis ao longo do livro vai usar toda a psicologia da dupla para nos dar conta da história de amizade que os levou a manterem-se juntos por mais de uma década, e depois novamente na hora da morte de um deles. Lewis podia ter-se focado sobre os processos de criação em duo, algo que sabemos bem ser imensamente complexo, contudo acabou por se concentrar mais sobre a amizade entre ambos, sobre o modo como se entendiam e aceitavam, sobre o como os opostos se atraem. Lewis cria uma quase história de amor, carregada de poética, beleza e sonho, capaz de produzir uma intensa carga inspiracional em quem lê. Não poderia recomendar mais.