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maio 16, 2021

A doce canção que embala as crenças sociais

Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?

julho 16, 2018

A diferença, sempre a diferença

Foi há mais de uma semana que terminei esta primeira obra de Morrison — “The Bluest Eye” (1970)— mas ainda não tinha encontrado o mote para escrever sobre a mesma. Hoje, ao reler algumas passagens, confrontei-as com o espetáculo “Nanette” (2018) de Hannah Gadsby, sobre o que aqui tinha ontem dado conta, e senti um arrepio. O livro é de 1970, mas está tudo ali, não que não hajam obras anteriores, mas com esta força literária, capaz de colocar o dedo na ferida da discriminação, não existem muitas. As razões não são apontadas por Morrison, mas por Gadsby, porque quanto mais vamos interiorizando e compreendendo a sociedade que criámos, mais nos vamos dando conta dos papéis dominantes do homem, do hetero, e do branco. As maiorias dotadas de força, física ou política, nunca se coibiram de a usar, e esse é o mal que nos assola, o da incapacidade empática.


O cerne da história de Morrison assenta numa menina negra, de um bairro americano pobre, que tinha um desejo: ter olhos azuis. Morrison diz-nos no prefácio que este desejo lhe foi relatado por uma amiga de infância, e que foi algo que a perseguiu durante anos. Assim aquilo que é colocado a jogo não é mais do que a vergonha do ser. A vergonha da cor dos olhos, da cor da pele, de Pecola que se junta à vergonha da homossexualidade de Hannah Gadsby. Porque quando crianças, cresceram ambas envolvidas num ambiente de ódio e raiva contra aquilo que eram, e como diz Gadsby isso deixa marcas, podemos reconstruir-nos mas não podemos apagar-nos. Como é possível tanta violência, nem falando de adultos, contra crianças, apenas porque são diferentes?

De Morrison conhecia “Beloved” (1987) que entrou diretamente para as minhas melhores dez leituras de sempre. Não posso dizer que “The Bluest Eye” vá para além, é uma primeira obra e o tema repete-se, a pobreza e a sexualidade das mulheres negras, mas e porque haveria de mudar? Quantos escritores temos a falar da realidade destas mulheres negras? Para não falar da realidade das mulheres. O tempo vai passando, fala-se muito, surgem movimentos feministas, mas continuamos a viver num mundo completamente feito de produção cultural masculina, branca e hetero. Precisamos de muitas mais Morrison e mais Gadsby, porque precisamos de compreender que o mundo não é feito de uma massa única, somos todos tão diferentes sendo tão iguais. De que adianta proclamar o humanismo se ele parece condicionado à partida por um modelo único de humano?

Sobre a escrita de Morrison, tenho pena de não vos poder oferecer uma análise mais sentida. Li “Beloved” em português e aí pude experienciar a beleza da sua poética, dos seus ritmos e fluxos sintáticos que envolvem o significado daquilo que se vai dizendo. “The Bluest Eye”, incompreensivelmente não está traduzido para português, como não estão outras obras desta autora, que ganhou um Nobel em 1993. E eu questiono-me, como é possível que uma autora ganhadora de um Nobel não tenha toda a sua obra, ou pelo menos as suas grandes obras traduzidas para português? Só isto devia ser suficiente para acender os nossos alertas para tudo o que disse nos parágrafos anteriores.

No entanto, como diz Gadsby, também não quero terminar numa nota negativa, nem fazer de tudo no mundo uma inevitabilidade da nossa irracionalidade. Não creio em mandamentos que nos vendem alguns arautos de que tudo é mesmo assim, pegando por exemplo em Jordan Peterson que para nos convencer do status quo usa a armadilha da vida como um caminho de sofrimento, tão cara às religiões seculares. Prefiro evocar Fred Rogers, e o seu discurso em defesa do seu programa educativo na televisão pública americana, em que disse:
"Isto é o que eu faço. Eu ofereço uma expressão de atenção todos os dias a cada criança, para a ajudar a perceber que ela é única. Eu termino o programa dizendo: 'Tu fizeste deste dia um dia especial, apenas por seres quem és. Não há ninguém em todo o mundo como tu e eu gosto de ti tal como és.' E eu sinto que se nós, na televisão pública, pudermos deixar claro que os sentimentos são mencionáveis e geríveis, que teremos contribuído para uma melhor saúde mental.” Testemunho de Fred Rogers perante o Senado dos EUA, 1 de maio 1969 [vídeo].