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janeiro 18, 2019

Melancolia sim, misantropia não

Talvez se tivesse lido "O Náufrago" (1983), de Thomas Bernhard, com 20 anos o tivesse admirado diferentemente. Num tempo em que almejava tornar-me cineasta, sonhava realizar os meus filmes e acreditava que a culpa por isso não acontecer era de todos os outros que não compreendiam tal. O artista estava acima do mundo, via mais longe, via diferente porque era diferente, e fazia questão de ser diferente, era melhor do que todos. Mas o crescimento, o amadurecimento e a aprendizagem daquilo que constitui o mundo e o real leva-nos a compreender que diferentes somos todos. E por isso, se a escrita de Thomas Bernhard é muito boa, a história que tem para contar neste pequeno livro é demasiado imberbe, apesar dos seus 52 anos à data de escrita.


O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.

Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.

Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português),  que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.


This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
"Here is just one example of the total wrongness of something I tend to be automatically sure of: everything in my own immediate experience supports my deep belief that I am the absolute centre of the universe; the realest, most vivid and important person in existence. We rarely think about this sort of natural, basic self-centredness because it's so socially repulsive. But it's pretty much the same for all of us. It is our default setting, hard-wired into our boards at birth. Think about it: there is no experience you have had that you are not the absolute centre of.
(..)
it is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotised by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed. Think of the old cliché about "the mind being an excellent servant but a terrible master".
This, like many clichés, so lame and unexciting on the surface, actually expresses a great and terrible truth. It is not the least bit coincidental that adults who commit suicide with firearms almost always shoot themselves in: the head. They shoot the terrible master. And the truth is that most of these suicides are actually dead long before they pull the trigger.
(..)
By way of example, let's say it's an average adult day, and you get up in the morning, go to your challenging, white-collar, college-graduate job, and you work hard for eight or ten hours, and at the end of the day you're tired and somewhat stressed and all you want is to go home (..) remember there's no food at home (..) of course it's the time of day when all the other people with jobs also try to squeeze in some grocery shopping. And the store is hideously lit and infused with soul-killing muzak or corporate pop and it's pretty much the last place you want to be but you can't just get in and quickly out; you have to wander all over the huge, over-lit store's confusing aisles to find the stuff you want and you have to manoeuvre your junky cart (..) now it turns out there aren't enough check-out lanes open even though it's the end-of-the-day rush. So the checkout line is incredibly long, which is stupid and infuriating. But you can't take your frustration out on the frantic lady working the register, who is overworked at a job whose daily tedium and meaninglessness surpasses the imagination of any of us here at a prestigious college.
(..)
The point is that petty, frustrating crap like this is exactly where the work of choosing is gonna come in. Because the traffic jams and crowded aisles and long checkout lines give me time to think, and if I don't make a conscious decision about how to think and what to pay attention to, I'm gonna be pissed and miserable every time I have to shop. Because my natural default setting is the certainty that situations like this are really all about me. About MY hungriness and MY fatigue and MY desire to just get home, and it's going to seem for all the world like everybody else is just in my way. And who are all these people in my way? And look at how repulsive most of them are, and how stupid and cow-like and dead-eyed and nonhuman they seem in the checkout line, or at how annoying and rude it is that people are talking loudly on cell phones in the middle of the line. And look at how deeply and personally unfair this is.
(..)
But most days, if you're aware enough to give yourself a choice, you can choose to look differently at this fat, dead-eyed, over-made-up lady who just screamed at her kid in the checkout line. Maybe she's not usually like this. Maybe she's been up three straight nights holding the hand of a husband who is dying of bone cancer. Or maybe this very lady is the low-wage clerk at the motor vehicle department, who just yesterday helped your spouse resolve a horrific, infuriating, red-tape problem through some small act of bureaucratic kindness. Of course, none of this is likely, but it's also not impossible. (..) If you're automatically sure that you know what reality is, and you are operating on your default setting, then you, like me, probably won't consider possibilities that aren't annoying and miserable. (..) The only thing that's capital-T True is that you get to decide how you're gonna try to see it.
(..)
This, I submit, is the freedom of a real education, of learning how to be well-adjusted. You get to consciously decide what has meaning and what doesn't."

Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.

janeiro 12, 2019

Quem fala inglês na Europa e porquê

A partir de uma visualização do mapa europeu, com percentagens de população capaz de manter uma conversa em inglês, poderíamos rapidamente inferir que afinal o impacto do cinema e música, que a esmagadora maioria de portugueses consome em inglês e legendado, não surte grande efeito nas nossas capacidades linguísticas. Diferencia-nos muito pouco dos colegas de península que só vêem cinema na sua língua, e ouvem muito mais música própria. Depois começamos a olhar para o resto do mapa, e parece surgir um padrão, a Europa do Norte fala muito mais inglês que a Europa do Sul. Porquê?


Uma primeira resposta que surge de imediato é o facto da Europa do Sul ser mais pobre, e ter menores níveis educativos. Com este indicador poderíamos atacar o nosso país mais uma vez, pelo seu problema crónico de falta Educação, dizendo que tudo se resolveria com maior investimento no ensino da língua inglesa. Isto é suportado pela correlação entre o GDP dos países europeus e o seu domínio do inglês, o mais baixo tem menor domínio do inglês. No entanto, se olharmos melhor para o mapa, nem a Europa do Sul nem o baixo GDP, encaixam no mesmo padrão. A Grécia apresenta uma percentagem tão alta como a Alemanha.

O criador do mapa original, Jakub Marian, resolveu então olhar para os dados e estratificar as diferenças de falantes de inglês em função dos idioma de origem — Românicas, Germânicas, Helénicas, Bálticas, Eslavas e Fino-úgricas. — e então um padrão novo emerge. O inglês é uma língua germânica, já o português, espanhol, francês, italiano e romenos são línguas românicas. As variáveis de GDP e de vizinhança, entre outras, terão o seu peso nesta distribuição, ainda assim é inevitável reconhecer o peso da herança cultural. Talvez por isso mesmo, devíamos pensar em não desprezar a nossa língua como desprezamos, menos ainda aqueles que produzem cultura todos os dias nas nossas línguas. Claro que podemos sempre optar por esquecer quem somos.



dezembro 20, 2018

Lebensborn, os videojogos como cultura

Foi a primeira vez que ouvi a palavra "Lebensborn" que significa "fonte de vida", mas é também o nome dado pelo regime Nazi a um programa que tinha como objetivo aumentar a natalidade de crianças de raça ariana, a partir de um conjunto de pessoas classificadas "racialmente puras e saudáveis", centrado na Alemanha e na Noruega. O programa procurava oferecer suporte a mulheres não casadas, inicialmente mulheres arianas que tinham tido filhos de membros das SS, encorajando-se nascimentos e partos anónimos de mulheres nas casas dos programas com reconhecimento do estado Nazi. O videojogo "My Child Lebensborn" (2018) inicia-se no pós-guerra, e relata o modo como a sociedade norueguesa reagiu a estas crianças. Não é um jogo fácil, é duro, bastante violento em termos emocionais e morais, e mostra como os genes continuaram a servir ideologias mesmo depois do fim da guerra.


Como jogo, é um artefacto muito simples que recorre a estruturas de gestão de recursos, do tipo tamagotchi, mas que nos coloca na pele de educador de uma criança de 8 anos, fazendo-nos atravessar a sua entrada na escola, cuidando por forma a definir a sua personalidade através de um conjunto de decisões complexas que vamos tendo de tomar sobre o que achamos ser melhor para a criança, sobre como deve ela reagir ao mundo que a afeta. Apesar de ser um pequeno jogo móvel, oferece várias horas de jogo, a ponto de conseguir criar um forte envolvimento com a criança, de a sentirmos cada vez mais próxima quanto mais vamos investindo no jogo. A criança de quem tomamos conta, nasceu de mãe norueguesa e pai alemão no tempo da Guerra. A mãe não o quer, o pai arranjou outra vida, os avós não o reconhecem, a sociedade abomina-o. Cabe a nós conduzir o seu crescimento até ao ponto mais saudável possível.

Os capítulos desbloqueados no final dão conta da Estrutura Narrativa.

Em termos de estrutura, temos um arco narrativo a permear todo o desenrolar de eventos e ações, com alguns altos e baixos que nem sempre vão sendo suficientemente apoiados pelo design de jogo. Ou seja, por vezes existe a necessidade de criar tensão, ou introspeção, e os designers optam por inibir as ações no jogo, mas não de uma forma direta (ex. retiram a criança de cena, ou da ação, sem explicação) e isso acaba afetando a jogabilidade, já que do ponto de vista da funcionalidade nos interrogamos se aquilo que está a acontecer faz sentido narrativo, ou é mero bug informático. Ainda assim, e a bem da experiência, tenho de dizer que foram múltiplas as vezes em que me comovi com os eventos relatados e as consequências.


No final, quando fui procurar saber mais sobre o "Lebensborn", e quando achei que já não poderia chocar-me mais, descobri que para além de fomentar a procriação desenfreada de filhos de mulheres arianas, chegaram a estabelecer-se redes de raptos pelo norte da Europa, que tiravam crianças com traços arianos às famílias. Para além disto, quando as crianças que nasciam de mulheres arianas nestes programas não apresentavam os traços esperados, eram enviados para campos de concentração, ou internados em hospícios dados como doentes mentais...

Os números não têm qualquer relação com os milhões de judeus mortos, estamos a falar de cerca de 10 mil crianças neste programa, mais cerca de 10 mil raptadas, mas não são os números que me tocam, é a brutalidade, é a total ausência de humanismo que começa na ideologia Nazi e prossegue com a recusa do povo norueguês na aceitação destas crianças, completamente inocentes. É algo humanamente transcendente, e é algo tratado por um videojogo que dá assim mostras da sua total maturidade enquanto medium, enquanto produtor de cultura.

O jogo foi criado pela Sarepta Studios, e está disponível para iOS e Android.

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017

abril 02, 2017

“Dentes Brancos” (2000), o poder do símbolo

“Dentes Brancos” é uma obra poderosa, carregada de significados impossíveis de decifrar numa única passagem. É uma obra imensamente rica porque pede não mera reflexão mas diálogo em busca dos significados pretendidos e dos que cada um de nós leu, interpretou e sentiu. Mas não sendo eu grande fã de simbolismos, ou melhor das ultrainterpretações a que dão azo, tenho de dizer que aquilo que primeiro me seduziu em Zadie Smith foi a sua escrita, que Quinn muito bem definiu no New York Times como: “exuberante pirotecnia verbal”.


Pela sua qualidade estilística Zadie está na, minha, galeria de escritores ao lado de Jonathan Franzen e Philip Roth, embora para a maioria da imprensa esteja ao lado de Salman Rushdie. Impressionando, impacta verdadeiramente quando percebemos que “Dentes Brancos“, primeira obra, foi publicada em Janeiro de 2000, quando tinha 24 anos, e segue quando descobrimos que esta surge de um primeiro manuscrito datado de 1997, com 21 anos, que lhe valeu um contrato em redor das 250,000 libras. A idade impressiona, e houve quem qualificasse Zadie como uma daquelas crianças hiperativas que se revela cedo demais, correndo o risco de se perder no futuro, mas em 2017 sabemos que tal profecia não se concretizou, Zadie publicou desde então mais 4 romances, um dos quais, “Uma Questão de Beleza”, sobre o qual já aqui dei conta. Impressiona-me particularmente já que Zadie nasceu um ano depois de mim, o que me dá uma perspectiva muito próxima do que terá sido necessário para atingir este nível. Zadie é talento em bruto, mas não chega, o qualificativo de hiperatividade não é descabido, já que foi preciso investir muito do seu tempo em leitura, em introspeção e escrita. Produzir um texto desta magnitude com vinte e poucos anos não está ao alcance de muitos de nós, pode faltar talento mas falta acima de tudo o amor e a dedicação que Zadie depositou na literatura.

Zadie Smith

Em termos temáticos Zadie usa “Dentes Brancos” para ir ao fundo das complexidades familiares, raciais, colonizadoras e culturais da Inglaterra contemporânea. E se o livro terá impactado em 2000, o Brexit em 2017 veio tornar ainda mais relevante tudo o que nele se discute. Temos numa mesma narrativa, mais de 150 anos de história, três gerações e várias ex-colónias britânicas. A Jamaica, o Bangladesh e a Índia são chamados para a mesa inglesa, e o diálogo torna-se explosivo, multicolorido, dando a conhecer a essência da multiculturalidade. Zadie introduz temas como a 2ª Guerra Mundial, a eugenia, as religiões, a ciência, o livre-arbítrio, o suicídio, colocando toda uma constelação de personagens a questionar o propósito da vida. O propósito é aquilo que torna o resumo do livro tão difícil e os personagens tão diversos e realistas podem afastar-nos, mas Zadie usa uma forma inteligente de nos aproximar de tudo e todos, o "humor sério". Não sendo eu grande apreciador de comédia tenho de dizer que ri, gargalhadas espontâneas, imensas vezes ao longo da leitura, com o modo como tratando assuntos sérios e complexos, os personagens, cada um dotado das suas lógicas e crenças culturais, questionam o mundo.

Todas estas temáticas só são possíveis pelo contexto que envolve Zadie, as suas raízes. Filha de mãe negra, imigrada em 1969 da Jamaica para Inglaterra, e de pai branco britânico, em segundo casamento. Com dois meios-irmãos e dois irmãos mais novos, e uma adolescência marcada pelo divórcio dos pais, que a levou a mudar o seu nome original, de Sadie para Zadie. Este contexto parece ter servido de ebulição à criatividade que viria a demonstrar na universidade, no King's College em Cambridge, onde daria nas vistas com pequenos contos, e conseguiria então captar o interesse para um contrato de primeira obra.

Voltando ao início, o livro está carregado de símbolos. Não são necessários decifrar para se compreender a história, para se sentir prazer na leitura, mas instigam-nos a ir mais fundo, assim como separam o livro do mero historiar de aventuras familiares de raças diferentes. Elevam o sentido da leitura e explicam porque a literatura continua tão relevante enquanto arte, já que consegue não apenas fazer-nos passar bons momentos, mas ao mesmo tempo ensinar-nos, contribuindo para o edificar da nossa base civilizacional.

E assim, mesmo não sendo particularmente fã da ultrainterpretação simbólica, não quero deixar de destacar aqui o sentido do título da obra. Como disse, existe muito mais nas páginas do livro, tal como o RatoFuturo, o KEVIN, ou o Dr. Doença, que poderiam por si dar origem a páginas e páginas de reflexões, e que terão já dado múltiplas teses de mestrado. Mas porquê “Dentes Brancos”? Tenho de confessar que as ideias que passo a explorar não são originariamente minhas, surgiram de várias leituras (ligações: ab, cd, e), que me permitiram por via da confrontação de ideias, chegar uma interpretação que satisfez a minha leitura e o meu mundo.

Os “Dentes Brancos” surgem ao longo do livro várias vezes, mas sem conotações concretas, do impacto visual dos seus estragos (uma personagem não tem todos os dentes da frente), contrastando-se com o excessivo cuidado na sua limpeza (um dos personagens lava os dentes 5 a 6 vezes por dia). Como se os dentes tivessem uma relevância de classe, capaz de marcar a diferença de cultura e até de raça. Contudo, o mais significativo não surge nas páginas, temos de chegar lá por analogia, pela construção discursiva que nos une. Sendo um texto defensor do multiculturalismo, o que costumamos dizer é que a cor da pele na conta porque debaixo da mesma, corre o mesmo sangue vermelho. Ora dentro das nossas bocas estão também os mesmos dentes brancos, iguais para todos mas ao mesmo tempo diferentes, tão diferentes que são usados para identificar os restos mortais de corpos muito deteriorados. Ou seja, na igualdade podemos encontrar a diferença, e juntas contribuem para definir aquilo que somos. Não somos apenas iguais nem apenas diferentes, somos singulares, e por isso é fundamental preservar e acarinhar as raízes, as mesmas que garantem o branco dos nossos dentes.

abril 01, 2017

Guerrilheiros do Sofá

Nos últimos anos habituamo-nos a classificar as pessoas que se dedicam a comentar online como meros militantes de sofá, os que "falam falam, mas não os vemos fazer nada". Contudo dois eventos obrigaram-nos a repensar tudo isto, o Brexit e Trump, ou um outro menos mainstream mas igualmente problemático deste ponto de vista, o Gamergate. De repente, as pessoas que estavam sentadas por detrás dos ecrãs a emitir comentários dia e noite passaram a contar. Aquilo que dizem, por meio da liberdade de expressão que nós, sociedade, lhes concedemos, produz efeitos a partir do momento em que convence outras pessoas a pensar como elas.




O documentarista Kyrre Lien passou três anos atrás de 21 pessoas, espalhadas pelo mundo, que investem horas e horas online a comentar tudo de forma militante e chamou ao projeto: The Internet Warriors. O The Guardian selecionou 10 dos entrevistados e realizou uma montagem que agora nos dá a ver. Um dos entrevistados produziu mais de 170 mil tweets, e a maioria usa a ferramenta como "instrumento de trabalho", mas facilmente podemos extrapolar o que aqui está em questão para outras plataformas sociais, nomeadamente as caixas de comentário dos jornais. Nos depoimentos recolhidos temos pessoas que reclamam nas mais variadas frentes: Governo, Políticos, União Europeia, Muçulmanos, Israel, Obama ou Lady Gaga. Lien queria saber se estas pessoas se comportariam da mesma forma quando filmadas, quando retiradas debaixo da capa do anonimato. O resultado é poderoso e mostra bem como estas não estão simplesmente a brincar ou a passar o tempo, são seres humanos que acreditam honestamente em tudo o que dizem online.

Para mim, a questão central não é reconhecer ou proibir estes indivíduos de se exprimirem, mas compreender os mecanismos que os conduzem a pensar como pensam, e compreender porque são eles capazes de convencer outros indivíduos a pensar como eles. Para tal temos de ir à essência do que está aqui em causa, as duas emoções base que unem todos os entrevistados: o ódio e a raiva. Todos se sentem mal, todos acreditam que algo lhes está a ser vedado ou retirado. Sentem-se vítimas, oprimidos por algo ou alguém, seja o governo, um grupo ou uma religião. E por isso reagem com raiva que acaba por se transformar em ódio à medida que vão percebendo que as suas exigências não são cumpridas.

"The Internet Warriors" (2017) de Kyrre Lien

O ser humano é feito de raiva e de desejos, cabe-nos a nós enquanto sociedade criar condições para o civilizar de cada um, e isto passa por contribuir para que cada um de nós consiga ter as ferramentas necessárias para começar por se compreender a si mesmo.

janeiro 30, 2015

A ideologia de Miyazaki

Trago o pequeno ensaio-audiovisual "Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014), criado por Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran, estudantes de cinema da UC Santa Cruz, que discute a ideologia subjacente aos filmes de Miyazaki, nomeadamente o modo como ele consegue gerar interesse tanto no oriente como no ocidente. Um dos aspectos mais interessantes aqui debatido, é a forma como o género sai retratado nas suas obras, ocupando imensos papeis principais, e alguns de grande força. A justificação de Miyazaki para tal não podia ser mais simples e directa, deve-se ao facto de no estúdio, aparentemente, trabalharem mais mulheres que homens.





O trabalho de Miyazaki é uma referência no mundo da animação, do cinema, e da cultura. O modo como ele consegue imprimir uma marca autoral nas suas obras, faz com que se demarque totalmente do universo Disney-Pixar, que por seu lado se fixa mais em valores universais. Ou seja, Miyazaki não se coíbe de expressar o que sente, ou como reflecte sobre o mundo em que vive, apresentando as suas ideias, distintas e que nos obrigam a reflectir. Já a Disney-Pixar preocupa-se mais em reforçar aquilo que nós como sociedade já conhecemos e aceitamos. Poderíamos dizer que aquilo que separa estas formas de fazer cinema está na capacidade, ou risco, de gerar confrontação intelectual.

Em termos experienciais posso dizer que quando acabo de ver um filme Pixar/Disney sinto gratificação, a viagem foi agradável, muitas vezes pelo deslumbre com a excelência nos campos técnico e estético. Mas não fico a pensar no que vi, foi bom, mas terminado parto para a próxima ideia. Quando termino um filme de Miyazaki demoro a sair do filme, o meu pensamento parece que fica ali enredado, é como se aquelas formas particulares de modelar o mundo me tentassem modelar as minhas próprias ideias, criando um debate entre aquilo que eu era, e aquilo que passo a ser.

"Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014) de Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran

julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


Outros textos relacionados,
A Ciência por detrás da Arte, in Virtual Illusion
Empatia, colaboração e cooperação, in Virtual Illusion

Pensar é muito incómodo. Cientistas tentam saber porquê, in iOnline
Just think: The challenges of the disengaged mind, in Science

novembro 18, 2013

Racionalizar o formato das séries TV

Ontem comecei a ver Breaking Bad (2008-2013). Vi os três primeiros episódios. Gostei, o conceito é muito bom, o ator principal é excelente, a narrativa mantém-nos sempre interessados. Mas no final decidi não continuar a ver a série. A razão não se prende com esta série, em particular, mas antes com o formato das séries de TV. No fundo, é a razão única pela qual não vejo séries de televisão, a sua duração e o confronto com o tempo que nos falta. Vi algumas temporadas de X-Files, 24, de Six Feet Under, de Sopranos, e vi apenas alguns episódios das mais recentes Dexter, RomeLost, The Walking Dead, ou Game of Thrones. Não vi muita coisa que na atualidade muitos dos meus colegas seguem e admiram, e por isso procurei perceber melhor porque não o faço.


Vejamos, Breaking Bad tem 5 temporadas, 62 episódios, o que pede um investimento da nossa parte equivalente a 60 horas. O que é possível fazer com 60 horas em termos de consumo de media?

  • Ler 3 livros (~20h)
  • Jogar 4 videojogos (~15h) 
  • Ver 30 filmes (~2h)
  • Ler 45 livros BD (~1h30m)
  • Jogar 60 videojogos indie (~1h)
  • Ver 200 curtas (~15m)

Não me parece que seja um problema de quem cria as séries, mas um problema do próprio meio de Televisão. A série está desenhada para ser consumida ao longo de meses/anos. Ou seja, a série precisa de entreter o espectador, precisa de o manter interessado, e quanto mais tempo o conseguir fazer melhor. Como os episódios são semanais, e as temporadas anuais, a redundância é obrigatória e extensa.

Em termos imediatos, a série exige apenas 1 hora, o problema acontece quando juntamos tudo num pacote de DVDs. Ou quando olhamos para trás e nos damos conta que estivemos 60 horas sentados no sofá a sintonizados nos detalhes de um personagem e das suas atividades diárias. Será isto mau? Não sei responder. Posso apenas responder por mim, o que sinto e como sinto.

Cada vez que acaba um episódio de uma série boa, sinto que o guionista o faz de modo a manipular as minhas emoções e a conduzir as minhas expectativas, para que eu não deixe de ver o próximo episódio. Quando olho para os episódios que faltam, sinto uma ansiedade enorme, ainda tenho mais 5, 10 ou 15 horas pela frente, só naquela temporada. Se quiser chegar ao final, tenho de multiplicar isso pelas várias temporadas.

Mas o pior acontece quando a ansiedade toma conta de mim, e faz passar pela minha mente as inúmeras outras coisas que poderia estar a ver, ler ou jogar. Por muito boa que a série seja, começa a perder-me, a arrastar-se. Ao fim de alguns episódios, parece que estou encalhado naquele universo narrativo, e não terei forma de lhe escapar durante muito tempo ainda.

Talvez tudo isto não passe um problema de excesso de racionalização. Talvez. Mas também é verdade que sinto que o retorno de uma temporada completa é pouco maior que aquilo que um ou dois episódios conseguem oferecer. Da soma de todos aqueles episódios e horas acaba por resultar demasiada redundância e uma muito baixa diversidade narrativa em termos temáticos e estéticos.


Actualização 19.11.2013

O debate que se seguiu a este texto no facebook foi interessante e ajudou-me a ver perspectivas diferentes sobre este assunto. Nomeadamente a aceitar melhor o formato, e o que cada um consegue retirar dele se souber gerir a relação da melhor forma. Ou seja, se estiver mais concentrado sobre o episódio que vê semanalmente, do que em ver toda uma temporada, ou uma série completa. Apesar disso deixo mais algumas reflexões que realizei depois disso.

Concluo de toda esta análise, que não gosto de "ganchos narrativos", já não gostava em criança, quando comecei a ler Marvels. Ficar ali colado na expectativa, um mês para saber como continuava a história. Tinha um lado que me agarrava, mas por outro percebia, já nessa altura, que estava a ser manipulado, e não achava grande graça, obrigarem-me a comprar todas as séries Marvel, para poder seguir o fio da narrativa. Aliás para quem jogou The Last of Us (2013) pode encontrar esta mesma crítica dita por Ellie, quando acaba de ler um comic e encontra o célebre "To Be Continued", a sua reação expressa tudo aquilo que sinto! Por isso mesmo aqui há uns anos quando voltei aos comics, acabei desistindo da Marvel. Hoje só leio séries curtas, e quando elas se começam a estender, termino, raramente vou além da 2ª ou 3ª série.

E assim não é por acaso que também não gosto de sequelas no cinema ou nos videojogos. É um claro aproveitamento do espectador, na esmagadora maioria das vezes. Os executivos de Hollywood descobriram a pólvora desse poder do seriado e do gancho, com as sequelas, e por isso muita inovação tem sido evitada pelo cinema ao longo dos últimos 10 anos de modo a controlar os riscos financeiros.

novembro 05, 2013

Indústrias criativas num mar de iliteracia, é possível?

A Diretoria-Geral para a Educação e Cultura em conjunto com a Diretoria-Geral para a Comunicação da Comissão Europeia desenvolveram um estudo empírico sobre o "Acesso à Cultura e Participação" na Europa. O relatório completo pode ser descarregado online, assim como um sumário, e ainda um resumo visual relativo a Portugal. Os resultados não podiam ser mais desastrosos, mas ao mesmo tempo reveladores daquilo que muitos de nós andamos a dizer há imenso tempo: sem educação, não há país desenvolvido.

Gráfico 1: O nível de envolvimento em actividades culturais (Resumo PT visual) [Clique para ampliar]

Olhando para este gráfico de forma invertida, podemos compreender melhor como vai a nossa cultura. Das atividades culturais listadas, a percentagem de portugueses que não participaram em nada ao longo dos últimos 12 meses é a seguinte:
  • Ballet, Dança ou Ópera: 92%
  • Teatro: 87% 
  • Bibliotecas públicas: 85%
  • Museus ou galerias: 83%
  • Concertos de música: 81%
  • Monumentos históricos: 73%
  • Cinema: 71% 
  • Ler um livro: 60%
É verdade que estes números são para Portugal a confirmação de um desígnio político. Desde há três anos que o país se encontra sem Ministério da Cultura, caso único da UE. Por isso estes números, assim como chegam assim cairão no esquecimento, porque não há quem os analise. Não fosse a vergonha da página 12 deste relatório, na qual se pode ver de forma bem destacada no gráfico, com caixinhas a negro, que Portugal supera todos no número de indicadores negativos.

Gráfico 2: Comparação entre países. A cinza os melhores indicadores, linha sem preenchimento, os piores. (p.12 do Relatório completo) [Clique para ampliar]

O que podemos ver neste gráfico são dois países com o mesmo número de habitantes, Portugal e Suécia, mas com participação cultural diametralmente opostas. A base fundadora desta distinção está na Educação, como o venho aqui dizendo, e contra tudo aquilo que o FMI preconiza como o futuro da nossa educação.

Não temos matérias primas, as únicas vezes que as tivemos, foi quando explorámos os outros (India, África, América do Sul). Por isso só nos resta a massa cinzenta. Mas para isso é preciso educá-la. É difícil, mas longe de impossível, veja-se o exemplo da Suécia, ou da Coreia do Sul, e perceba-se como tudo é diferente quando se tem elevados níveis de educação. E se dúvidas ainda existirem quanto à raiz deste problema ser a educação ou outro, fica um outro gráfico que é cristalino.

Gráfico 3: Barreiras no acesso à Cultura (Resumo PT visual[Clique para ampliar]

Neste gráfico 3, o que se torna cabalmente evidente é que o problema da participação cultural portuguesa não é financeiro, antes fosse. O problema é tão só o desinteresse. Em todos os pontos, sem excepção, a Falta de Interesse dos portugueses é maior que a Falta de Tempo, a Falta de Dinheiro, ou a Falta de Diversidade. As diferenças entre a média europeia e a portuguesa, neste itens assumem os níveis mais gritantes na Leitura.

Gráfico 4: Envolvimento em atividades artísticas (Resumo PT visual[Clique para ampliar]

Para fechar deixo um último gráfico (4), sobre os efeitos que tudo isto depois tem sobre a vertente Económica, já que hoje tudo se resume a isso. Neste gráfico, podemos ver como os nossos níveis de participação ativa, em modo criativo, são praticamente inexistentes, ou seja irrelevantes para o país. Tirando a Dança, que provavelmente se refere a práticas de mera diversão nocturna, em todo os outros pontos, estamos 50%, ou mesmo 75%, abaixo da média Europeia. A ter em atenção que falamos da média, e não dos países que mais se têm desenvolvido por via das Indústrias Criativas.

Por isso pensar em desenvolver clusters de indústrias culturais, criativas, de informação, do conhecimento, etc., em Portugal, é para mim apenas comparável ao desejo do Dubai de criar ilhas artificiais em forma de "mundo". O que os políticos se deveriam questionar é como é que se pode fomentar o interesse da sociedade portuguesa? Porque já deviam ter percebido que fazendo edifícios para a cultura, ou estradas para o interior, não é o caminho, que o mais importante encontra-se no interior das pessoas, não no exterior.


Notas: 
O estudo da CE foi realizado através de entrevistas a cerca de 27.563 pessoas no espaço europeu, das quais 1015 em Portugal. A minha leitura deste estudo deve, em parte, a algumas ideias previamente apresentadas no blogue de Luís Soares.

Sobre este assunto aqui:
A Educação em Portugal e na Europa, Virtual Illusion, Novembro 10, 2011
Mitos dos Custos da Educação em Portugal, Virtual Illusion, Novembro 21, 2011
Educação: O Estado Somos Todos Nós, Virtual Illusion, Janeiro 09, 2013

junho 24, 2013

Do humanismo ao mercantilismo. Arte, desporto e universidades.

"Mona Lisa Curse" (2008) é um documentário que trata um assunto bastante sensível em termos financeiros, e por isso mesmo foi jogado para debaixo do tapete. O assunto aqui tratado assola-me há já alguns anos, tendo encontrado aqui uma voz que diz frontalmente muito daquilo que eu penso sobre muita da arte contemporânea, e sobre os mercados da arte. O mais preocupante, é que aquilo que aqui é discutido em termos de mercados, não se veio a aplicar apenas à arte, mas antes se propagou a quase todo o tipo de atividade com valor humano intrínseco.


"Mona Lisa Curse" foi criado por Robert Hughes, crítico de arte durante mais de 30 anos da revista Time, e considerado pela The New Yorker o mais famoso crítico de arte de sempre. Neste filme Hughes dá conta do modo como a arte se transformou num negócio, num investimento de mercado, durante a segunda metade do século XX. Hughes marca o início desta cruzada com a vinda da Mona Lisa para Nova Iorque, em 1963, onde foi exibida no MET durante um mês, tendo tido honras de celebridade de cinema. As pessoas vieram aos milhares para a ver, e nada mais seria igual no mundo da arte. Os museus abriram-se à população, e a arte tornou-se num objecto de cobiça.
"The Kennedys managed to turn the Mona Lisa into a kind of 15th-century television set — instead of 1.5 million people looking at one image flashed on 1.5 million screens, you had them all looking at it on one screen, which was the picture itself, and that was the only difference. They didn’t come to look at the Mona Lisa, they came in order to have seen it. And there is a crucial distinction, since one is reality and experience, and the other one is simply phantom.” Robert Hughes
Em termos financeiros, Hughes diz que o mercado da arte é o maior mercado desregulado do mundo, apenas ultrapassado pelo mercado da droga. Ao longo dos últimos 30 anos, fomos assistindo à evolução, altamente especulativa, do valor da arte. Desde o quadro de Warhol, "Men in Her Life", que não passa de uma reprodução de várias fotografias de Elizabeth Taylor, vendido em 2010, por Jose Mugrabi, por 63 milhões de dólares até à insanidade da compra de "The Card Players" de Cézanne pela Família Real do Qatar, por 250 milhões de dólares em 2011. As razões destes valores, nada têm que ver com as obras em si, nem com os seus autores, a única coisa relevante aqui é a garantia do investimento. Ou seja, são valores que o mercado acredita serem possíveis recuperar no futuro, mas estamos no puro reino da especulação, a criar um bolha que mais tarde, ou mais cedo, acabará por rebentar.

The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991) de Damien Hirst. Avaliado em 12 milhões de dólares. Uma obra tão única, que em 2006 devido a deterioração do animal,  a obra teve de ser refeita, com um novo tubarão!!!

O problema agrava-se quando falamos de arte contemporânea, e de artistas como Jeff Koons, Damien Hirst, ou no caso português de Joana Vasconcelos. Como diz Hughes, os preços das suas obras são totalmente manipulados pela promoção e publicidade, e nada têm que ver com a qualidade das mesmas.
“The market is manipulated by collectors who decide to bid up the work of an artist [they’ve already invested in]. So when artist X comes up on the auction block, the collectors all bid it up, so that they can then multiply the value of their existing holdings in artist X by the value of the inflated sale.” [Telegraph]
Enquanto via este documentário, não conseguia parar de pensar, no que pensariam os colecionadores depois de verem aquilo que Robert Hughes diz de forma tão frontal. Mas a reposta à minha questão não tardou, descobri que este documentário passou uma única vez em Inglaterra, no Channel 4, a 5 de Dezembro 2009, às 18h. Não foi vendido para mais nenhum canal de televisão. Ou seja, não só não passou mais vez nenhuma na televisão britânica, como não passou em nenhuma televisão de qualquer outro país do mundo. Mais, não existe à venda em nenhum formato, nunca foi editado por qualquer instituição ou empresa. A única cópia que circula online, é a gravação dessa única vez que passou na televisão, e é difícil de encontrar online, porque está constantemente a ser retirada dos sites por infração de direitos, ao contrário da maior parte dos documentários sobre arte da BBC. Isto é obviamente fruto do poder de influência dos senhores que são ridicularizados no filme. O documentário não é apenas uma afronta à sua intelectualidade, é antes de mais um verdadeiro perigo para a valorização da sua "mercadoria".

Um discurso como o proferido por Robert Hughes, um dos críticos de arte mais importantes do século XX, pode deitar abaixo muito do valor especulativo que muitos artistas têm granjeado. Como diz Hughes, o trabalho de Andy Warhol era vazio, a sua importância foi fabricada, tal qual uma campanha de promoção nos media. Algo que Dali também seguiu quando foi para os EUA. Estamos a falar da valorização da imagem, do estatuto de excentricidade que confere distinção e celebridade, para assim conseguir inflacionar a sua importância, e no final o seu valor. No final do documentário Hughes conversa com o colecionador, Alberto Mugrabi, filho de um dos detentores da maior colecção de artefactos de Andy Warhol, e pergunta-lhe o que ele pensa de Warhol. Aqui fica o diálogo,
Mugrabi: "I think Warhol is probably one of the most visionary artists of our time." 
Hughes: "I thought he was one of the stupidest people I have ever met in my life." 
Mugrabi: "Why is that?"
Hughes: "Because he had nothing to say." 
Posso até admitir que Hughes reage com demasiada violência, talvez com algum ressabiamento. Ou até que simplesmente não foi capaz de evoluir com os tempos, se manteve preso aos seus parâmetros do passado. Nomeadamente no caso dos museus, não posso de todo defender instituições fechadas. Acredito que estas devem estar abertas à população, e tudo devem fazer para conseguir atrair as pessoas até si, para que possam todas usufruir de obras que pertencem à humanidade. Agora Hughes tem razão quando ataca o caminho trilhado no sentido da massificação dos museus, no modo como se tornaram em máquinas de fazer dinheiro. Um museu deveria servir de guardião de obras únicas, não deveria dedicar-se a celebrizar as obras, a transformar a arte numa mercadoria de promoção do nome do museu.

O maior problema, é que não foi apenas a Arte que se transformou nisto, tudo no ocidente se transformou nisto. Desde a FIFA e o Comité dos Jogos Olímpicos no mundo do desporto, às grandes Universidades americanas, que agora exportam os seus modelos para todas as europeias, tanto na Educação como na Ciência. Há 20 anos seria impensável uma universidade fazer um spot publicitário, hoje tornou-se banal. Em Portugal podemos até ouvir, na rádio, universidades a anunciar duas licenciaturas pelo preço de uma. Ou seja, não interessa o que se aprende, interessa apenas o canudo, o valor da mercadoria que se compra.

O mercantilismo simplesmente canibalizou o humanismo. Em nome de uma alegada auto-sustentabilidade financeira, vale tudo. Os sistemas de produção de conhecimento e cultura - Educação, Ciência, Arte, Deporto, etc - precisam de se autojustificar constantemente, porque a sociedade simplesmente deixou de os considerar valores intrínsecos da humanidade. Tudo depende agora de alguém com dinheiro, que lhe ache graça, e decida investir. E assim, a arte, a ciência, a cultura, o desporto, passam a ter o valor que os mercados lhe atribuem, nada mais do que isso.


Caso o vídeo acima deixe de estar disponível, use este link para fazer download (400 mb).