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junho 12, 2023

"Infra 5" de Max Richter

O álbum "Infra" (2008) de Max Richter é talvez o álbum que mais vezes ouvi. Em particular a faixa "Infra 5" tem estado nos últimos anos quase sempre nos primeiros lugares das músicas mais ouvidas no meu Spotify. Existe algo por debaixo desta sonoridade que faz mover o meu interior. Assim que começa, desligo de tudo o resto. Fico ali, atento, a tentar seguir o tom, o ritmo, os instrumentos, tentando perceber para onde vai evoluir a cada momento, aonde me vai conduzir. Hoje, resolvi voltar a pesquisar sobre o álbum e encontrei um pequeno vídeo do compositor em que explica a motivação por detrás do álbum, e depois detalha a "narrativa" que suporta a "Infra 5". Deixo a transcrição:

"So Infra is a ballet [choreographed by Wayne McGregor] based around the events of 7/7 [subway bombings in London]. And I guess the other thing that feeds into that is the psychological landscape of the wasteland, T.S. Eliot's "The Waste Land", which sets up this idea of an unreal city, this kind of hallucinatory sort of vision of a city. The music of Infra is a series of reflections on those events."
"Infra 5 is probably the most, I guess, directly representative music on the record, in the sense that you have this music which basically gets faster and faster. So, the image of people running, that's what Infra 5 is about. And there are various kinds of other things buried in the music. Like, there's sort of melodic material, which is sort of basically sirens. The violins just play these kind of siren melodies. So it sort of embodies that people running, trying to get out. So, yeah, that's Infra." 
"Music is a sort of catalyzer for thought and reflection." 
-- Max Richter 

junho 10, 2022

O Que Mais Teme na Vida? 'Que eu não seja quem deveria ser'

São 5 minutos magníficos. A realizadora de documentários polaca, Bartlomiej Zmuda, questiona de forma direta e sincera um conjunto de cidadãos de Varsóvia sobre o maior medo das suas vidas, no pequeno filme "What Do You Fear the Most?" (2022). Vemos apenas os momentos honestos e sentidos das respostas de cada. A intensidade emocional das suas palavras cola-se ao registo vídeo. No final, as respostas tão profundamente humanas permitem-nos relacionar com quase todos os medos, e levar-nos não apenas a sentir o quão parecidos todos somos, mas também quão frágeis acabamos por ser no meio das nossas diferenças e capas de coragem que vamos montando ao longo das nossas vidas.

abril 24, 2022

O último abraço

"Mama's Last Hug" (2018) é uma defesa, apoiada por décadas de ciência empírica, da existência efectiva de emoções nos animais não-humanos. Contudo, como livro, não vai além de uma conversa ligeira sobre o assunto, serve mais quem apenas quiser introduzir-se ao tema. O título do livro surgiu a De Wall pela visita realizada pelo professor Jan van Hooff à chimpanzé Mama, quando esta estava às portas da morte, originando um reencontro intensamente emocional, um momento mágico e profundamente humano entre seres de duas espécies.


"Jan van Hooff visits chimpanzee Mama" (YouTube)

julho 31, 2021

Samuel Beckett e a neurodiversidade

Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].

"Molloy" foi publicado pela primeira vez em 1951, em francês, pelas Éditions de Minuit. Só em 1955 Beckett realizaria a tradução para inglês.

outubro 12, 2020

Intelligence Trap (2019)

O livro, The Intelligence Trap: Why smart people do stupid things and how to make wiser decisions, apresenta-se com um título e premissa muito instigantes, mais ainda em tempo de: grande polarização dos discursos na sociedade; perda de influência das figuras de especialistas e autoridades; assim como desintegração das metanarrativas que orientavam a sociedade para grandes objetivos. Contudo, não deixa simultaneamente de se apresentar como uma premissa popular, que se socorre de ideias genéricas e crenças assentes na mera anedota, com parca evidência científica. Se estranhamos, chegando mesmo a perturbar-nos, ver alguém que temos como inteligente ser levado ao engano por eventos ou situações simples, até patetas, daí não devemos desde logo intuir a regra, mas talvez antes manter a porta aberta à exceção. Mas vejamos o que nos diz Robson.

David Robson é um jornalista de ciência que tem trabalhado para alguns média de relevo, tais como BBC, New Scientist ou The Atlantic. Este seu livro, diz-nos, foi feito a partir de um conjunto de entrevistas realizadas com especialistas ao longo de 3 anos. A ideia de Robson era perceber porque pessoas inteligentes e educadas cometem grandes erros, tendo servido como mote: a história do Professor de Física que foi burlado num esquema de mulheres atraentes e correios de droga (história completa no NYT).

Para suportar a sua abordagem, começa com um dos ataques mais populares do último meio-século, o Coeficiente de Inteligência (IQ). Não sendo defensor desta métrica, não o sou porque não sou defensor de métricas, e não porque não creio na sua base teórica. Ou seja, algumas pessoas nascem com maiores privilégios cognitivos que outros. Isto não tem nada de anormal, menos ainda mágico. Para compreender porquê, basta uma comparação com algo mais imediato e mais popular ainda, a beleza humana. Por mais que instituamos a beleza como subjetiva, todos temos noção da enorme diferença que existe entre todos nós, e dos padrões com maior e menor poder de atração. Podíamos falar dos corpos com maior massa muscular, ou maior endurance física, etc. etc. Sendo diferentes, também o somos no que toca às capacidades de raciocínio. A grande questão é saber se os testes que fazemos aferem realmente melhores capacidades ou não. Mas isso, na verdade, como com todas as métricas, é pouco relevante, já que qualquer métrica é mero indicador e não uma variável que determina o futuro ou a pessoa.

Robson vai buscar vários casos para desmontar o poder do IQ, dando como referências pessoas que se perderam completamente na vida, que não chegaram a lado algum, apesar de apresentarem valores absurdamente altos de IQ. Contudo a minha questão é antes, como é que se pode pensar que um simples teste feito em criança ou adolescência pode determinar a vida de alguém, sabendo que as variáveis que nos condicionam vão muito para além da nossa capacidade de raciocínio? É no mínimo ingénuo.

No meio disto, Robson vai buscar os estereótipos dos cientistas incapazes de lidar com as necessidades sociais do dia-a-dia, para não apenas demonstrar como um simples teste de raciocínio é insuficiente para dar conta das necessidades da vida no mundo real, mas mais do que isso, para demonstrar que um alto IQ pode antes, pelo contrário, ser um problema na resolução de problemas. Sendo verdade, que o IQ não afere tantas outras necessidades da vida do quotidiano, nenhum teste, seja qual for, vai algum dia aferir tal, já que somos agentes de uma realidade em constante mutação. Esta ideia de que poderemos encontrar um indicador que nos pode dizer que esta ou aquela criança será um génio no futuro é digna de alquimistas, não cientistas.

Robson percebe as limitações do IQ, e por isso apresenta um conjunto de teorizações, relevantes e que tornam a leitura do livro per se mais interessante, ainda que nada apresente de novo. Dá conta, da já gasta teoria do EQ (Coeficiente Emocional) do Daniel Goleman; da teoria muito em voga do Grit (resilência) de Angela Duckworth (ver o efeito na avaliação académica por Paul Tough); e por fim acaba a fixar-se naquilo que tem sido o cerne dos livros populares sobre cognição, os vieses cognitivos de Tversky and Kahnemann. 

Daqui parte para a apresentação daquilo que vem sendo apresentado como bala mágica para todos os problemas cognitivos, ‘evidence-based wisdom’ (EBW), mas que do meu ponto de vista, vai pouco além daquilo que Kahnemann apresentou como teoria de processo duplo (rápido e lento, ao que Robson adiciona um conjunto de ideias repescadas da história da ciência, desde Sócrates até aos dias de hoje. A ponto de eu começar a suspeitar que o livro não é um ataque ao IQ, mas antes a sua defesa, no sentido em que tudo para Robson se resume à mente analítica, tudo o resto, nomeadamente a emoção, apesar de citar Damásio, é secundário. (Nota: enquanto lia o livro, vi a TED de Liv Boeree, “3 lessons on decision-making from a poker champion”, como especialista em poker, não em cognição, parece dizer o mesmo que Robson, como se continuássemos a andar em círculos no conhecimento sobre a cognição).

Diga-se que este desvio no texto, surge a partir de algo que vejo como uma contaminação do pensamento de Robson por parte das teorias sobre a emoção de Lisa Feldman-Barrett que defendem a emoção como algo meramente cultural, algo que podemos aprender a ignorar, porque não faz parte daquilo que somos. É interessante como Feldman-Barrett tem sido refutada por boa parte dos grandes cientistas da emoção, no entanto tem conseguido fazer toda a sua carreira com esta abordagem, cientificamente contra-corrente, mas imensamente popular.

Por outro lado, e mais uma vez, impressiona como alguém vai buscar uma teorização sobre os diferentes perfis de personalidade e cognitivos, no caso a “Triarchic Theory of Intelligence” de Robert Sternberg, que dá conta da existência de três perfis na abordagem à inteligência humana “analytical, creative and practical”, em linha com o modelo do design de Engagement — "abstracters, tinkerers,  and dramatists" —, para depois jogar pela janela fora. Serve de ilustração, mas na verdade depois disso, segue-se como se todos os tipos de abordagens humanas à realidade fossem idênticas, ou pudessem ser medidas da mesma forma.

O livro não deixa de ter o seu valor, e de dizer muitas coisas acertadas, desde logo chamar a atenção para a necessidade da humildade científica, algo vital, mas que por vezes se esquece, tal como compreender que ser-se doutorado em algo, não dá o privilégio nem a capacidade para emitir opiniões sobre algo fora da sua área científica. Mas na verdade, quando falamos de algo, são os especialistas na área que devemos ouvir, e neste caso, ler a resenha do livro feita por Valerie Thompson para a Science permite-nos ir além na compreensão do que sabemos hoje realmente sobre IQ e processos de decisão:

“Anecdotes abound of individuals with a high IQ who have made substantial blunders, and Robson presents many captivating examples. But in terms of where the field stands, scientists are currently grappling with the question of whether IQ and decision-making can even be disentangled—rather than whether they are in opposition.” Thompson in Science, August, 2019

Como nota final, é um livro de divulgação científica, de leitura rápida e fluída, que apesar de alguns problemas abre caminhos para muitas abordagens distintas e permite rapidamente ficar a conhecer o que está em jogo na área, a partir do que qualquer um pode então iniciar o aprofundamento das questões.

janeiro 17, 2020

O arrepio que vem do Brasil

Há uns meses estive para fazer aqui um post sobre o filme "Menino 23", um documentário brasileiro de 2016 que dá conta da existência de células nazis no Brasil nos anos 1930. Acabei não o fazendo, porque o nazismo é por demais vezes citado para tudo justificar e por acreditar que é algo que não devemos banalizar. Contudo, nesta data, em que o Secretário da Cultura do Brasil, o maior responsável pela Cultura daquele país, lança um comunicado em vídeo, na rede, no qual ele próprio não só plagia textos de Joseph Goebbels, mas imita parâmetros estéticos de forma e conteúdo da propaganda Nazi, não devemos calar.
Repare-se na encenação do local — bandeira com fitas de honra, cruz patriarcal, fotografia do presidente e o resto limpo e austero — e depois na assertividade da linguagem corporal, facial e verbal, como toda a performance emula um tom de certeza absoluta, de Autoridade e Verdade, e ao mesmo tempo de ameaça, pronto a usar da força. Este secretário está longe dos tiques afetados de Goebbels (deem-lhe tempo e eles surgirão) mas a abordagem é a mesma, uma postura de afirmação de verdade única e prontidão para a confrontação.

Falar aqui da evocação da religião ou de Deus é totalmente secundário, muito mais grave é o uso da cruz patriarcal (para se colocar no topo hierarquia) juntamente com o reclamar de "lealdade" e "autossacríficio" para subjugar o povo, evidenciando quem domina, quem deve ser seguido. A partir daqui dizer-se então:
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.Roberto Alvim, secretário da cultura do Brasil, 16 janeiro 2020
É arrepiante o que diz e quer dizer, mas é muito mais arrepiante saber quem o disse antes e em que condições e a que conduziram essas frases:
"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.Joseph Goebbels
Diz o secretário num tweet (porque não responde à imprensa), que "Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém". Bem, posso dizer que isto é o costumam responder os alunos quando são apanhados a plagiar. O problema é que não é só a forma do texto, são as ideias completas, como vemos no resto do texto:
"A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte.
(...)
São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira."
Mas se restarem ainda dúvidas, peço-vos que atentem no facto do comunicado, apesar de provir de um membro do governo, vir com banda sonora musical, o que já por si configura a comunicação como propaganda política e não como comunicação de estado. Mas verificando que a música que corre por debaixo é uma ópera ("Lohengrin") de Richard Wagner, torna-se impossível não ver aqui a total orquestração estética da experiência propagandística nazi.

É claro que a direita brasileira pode evocar o facto dos anteriores governos, nomeadamente Lula, terem andado de mão-dada com ditadores de esquerda como Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas um erro não se conserta com outro erro. Menos ainda, quando se usa o pior que a História da Humanidade já conheceu, os causadores da II Guerra Mundial, o acontecimento mais mortífero de sempre perpetrado pela nossa espécie (Sapolsky, 2017).
Imagem do documentário "Menino 23" que podem ver completo, ainda que sem grande qualidade, no Youtube.

Fontes da notícia: 
O Globo, 16 e 17 janeiro 2020 
BBC Brasil, 17 janeiro 2020

novembro 07, 2019

Processos cognitivos por detrás da Montagem

A montagem é o elemento definidor da arte cinematográfica, aquele que singulariza a sua estética, a sua capacidade de produzir mensagem de forma única. Neste sentido, tem sido uma área bastante estudada, diga-se que mais fora da academia do que nesta, exatamente pela dificuldade que temos tido em parametrizar algo que é profundamente artístico, ou seja, dependente de opções pessoais expressivas e não de métricas facilmente quantificáveis. Este trabalho da Karen Pearlman, uma académica com experiência profissional no cinema, pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna, adicionando novo conhecimento ao conjunto de convenções que respondem pelas necessidades fundamentais da edição, indo além da mera continuidade espaço-tempo.


O trabalho mais citado no campo da montagem continua a ser o livro de Walter Murch — "In the Blink of an Eye" (1995) — um montador reconhecido, especialmente pelo trabalho em “Apocalypse Now” (1979) com uma visão completamente assente no artesanato da arte, sem qualquer arcaboiço metodológico que pudesse suportar um maior aprofundamento do conhecimento da arte. Depois temos outros autores como Ken Dancyger ou Valerie Orpen, e até mesmo Bordwell, mas nenhum conseguiu ir tão longe como o trabalho que Pearlman nos apresenta e que pode ser conhecido de forma muito rápida através deste pequeno vídeo:  "Why Does an Edit Feel Right? (According to Science)" (2019).

Why Does an Edit Feel Right? (According to Science), 2019

Neste vídeo Pearlman socorre-se do trabalho de Vittorio Gallese — sobre os neurónios espelho [1] — e Tim J. Smith — estudos de eye-tracking em cinema [2] — para desmontar o que acontece durante o processo de visionamento de um filme e, assim, chegar aos modos como a montagem contribui para a construção de engajamento. Pearlman dá conta dos processos de simulação corpórea [3] realizados por nós, dizendo que o “film’s rhythm synchronizes the body, influencing the spectator’s physical and cognitive fluctuations to follow its own” [4], algo que vai muito para além da questão da continuidade. No exemplo apresentado de Blade Runner, com Harrison Ford e a coruja, temos um corte que só faz sentido por via do movimento corporal, pois é antitético no que toca a continuidade. A partir da desconstrução dessa sequência, Pearlman apresenta então o conjunto de hipóteses resultantes da expressividade da montagem:
#1 Movement Phrase
#2 Kinesthetic empathy
#3 Subtext
Para quem tiver ficado interessado no assunto e quiser aprofundar mais, sem ir diretamente ao seu livro “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing” (2016), recomendo a leitura do artigo de Pearlman de 2017, "Editing and Cognition Beyond Continuity" publicado na Projections.


Referências
[1] “Embodying Movies: Embodied Simulation and Film Studies” Gallese, 2012
[2] “The Attentional Theory of Cinematic Continuity”, Tim J. Smith, 2012
[3] "Hipótese da Simulação Corpórea", VI, 2014
[4] “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing”,  Karen Pearlman, 2016

fevereiro 18, 2019

Elementos da Surpresa (2018)

"Elements of Surprise: Our Mental Limits and the Satisfactions of Plot", (2018) de Vera Tobin, é um livro académico sobre desenho de narrativa, que apesar de apresentar uma escrita por vezes leve e fluída, e um tema acessível, mais ainda pelos exemplos utilizados — "The Sixth Sense", "The Murder of Roger Ackroyd", "Great Expectations", "Emma", ou "Citizen Kane" —, não deixa de apresentar algumas componentes mais crípticas, com jargão próprio, que para quem não trabalha na área o pode tornar menos apetecível. Ainda assim, a sua essência é acessível a quem quer que sinta curiosidade pela temática e queira realizar algum esforço para entrar no discurso académico. Enquanto obra académica apresenta defensores e detratores [1,2], desde logo do campo da literatura que continuam a não ver com bons olhos a entrada da psicologia cognitiva no seu reino obscuro de pura especulação interpretativa. O que não deixa de ser ridículo, se olharmos para os estudos fílmicos onde a psicologia já entrou nos anos 1980, sendo talvez por isso mesmo que Tobin usa imensos exemplos cinematográficos lado a lado com exemplos literários, sem qualquer coibição e diga-se de forma imensamente refrescante para quem trabalha na área, cansado de divisões artificiais no campo da narrativa.


“Elementos de Surpresa” trabalha como o próprio título refere: a emoção de Surpresa. É algo novo, já que temos tido trabalhos sobre quase todas as outras emoções básicas —Medo, Alegria, Tristeza, Nojo e Raiva —, tendo a surpresa sido deixada de fora, não que surpreenda, dada a sua complexidade em termos de valência. Ou seja, a surpresa tanto pode ter peso negativo como positivo, por isso funciona mais como quadro emocional e menos como catalogador de situações. Isto para se trabalhar com histórias e narrativas não é propriamente o ideal, já que aquilo que é mais relevante é o modo como as emoções contribuem para a significação do conteúdo. Tobin, foca-se na forma por excelência, ou seja, como é que o design da narrativa, e a gestão de informação, operam a surpresa junto dos recetores. Ainda que não se possa dizer, que de uma forma geral, seja completamente novo, podemos juntar aqui obras que têm trabalhado o Suspense, que não são muitas e a Curiosidade, que em muitos momentos do livro me fizeram pensar que eram tópicos a que a autora deveria ter dado um pouco mais de atenção.

Mas a abordagem de Tobin acaba seguindo muito de perto os meus interesses de investigação e as abordagens que tenho tentado seguir, que é de utilizar todo o conhecimento produzido pelas Ciências Cognitivas, nomeadamente no campo do “behavioural economic” com autores como Kahneman, Tverski, Thaler, Ariely, Levitt, entre outros, e assim tentar desconstruir, desmontar, o design das narrativas, nomeadamente os padrões e modelos como nos agarram, envolvem, imergem e transportam para for a de nós mesmos. Por isso, não posso dizer que tenha sido surpreendido pelos resultados obtidos pela autora e que nos apresenta, contudo servem não só para reforçar a abordagem que alguns de nós temos vindo a defender, contribuindo para o avanço do nosso conhecimento sobre a psicologia e design da narrativa.

O principal conceito utilizado por Tobin é o “curse of knowledge” (maldição do conhecimento), um dos muitos vieses cognitivos, que ela define como: “the more information we have about something and the more experience we have with it, the harder it is to step outside that experience to appreciate the full implications of not having that privileged information”. No fundo, é o problema que surge sempre que temos que explicar a alguém alguma coisa, para o qual é necessário um determinado contexto, detendo nós o contexto e a outra pessoa não. Acontece todos os dias em sala de aula, mas acontece sobre as coisas mais simples, quando por exemplo queremos explicar algo que acontece num filme a alguém, mas a pessoa não percebe sem lhe explicarmos todo o enquadramento do filme primeiro. O que este viés nos diz é que normalmente não nos apercebemos dessa diferença de possessão de informação, ou se nos damos conta, não percebemos a diferença que ela comporta para a compreensão do que se está a dizer. Ou pondo-nos a nós no lugar da vítima, quando tentamos compreender porque um filósofo disse o que disse há 2, 3 ou 20 séculos, sem o devido contexto podemos simplesmente não compreender o que está em causa nas palavras escritas nesse outro tempo.

Tobin usa este modelo de criação de sentido, para tentar explicar o modo como a narrativa consegue gerar surpresa nos seus recetores, definindo a surpresa da seguinte forma: “one in which information revealed late in the narrative reveals a new, transformative interpretation of what has gone before.” Claro que Tobin está interessada em surpresa elaboradas, ou como ela diz “well made”, e não no simples ato de surpreender, que como ela também diz "pode facilmente ser feito, basta por exemplo, matar um personagem sem pré-aviso", como tanto gosta de fazer George RR Martin. No fundo ela está focada nos chamados “twists” narrativos, tais como o célebre final de “The Sixth Sense”, ao que acrescento aqui um, entretanto esquecido, “The Crying Game”.

"The Sixth Sense" (1999)

"The Crying Game" (1992)

O livro apesar de constituído de múltiplos capítulos, tem toda a sua essência concentrada no capítulo “Poetics of Surprise”, é aqui que nos apresenta os 5 modelos de produção de surpresa — Frame shift, Managed reveal, Finessing misinformation, Burying information, Emotional involvement — a que chegou com o estudo e levantamento que realizou, e é no fundo aquilo que importa reter deste livro e do excelente trabalho da autora. Vejamos então cada um destes, para cada um destes aponto uma dimensão da produção narrativa mais facilmente reconhecível entre parêntesis.


— Frame Shift  (gag)
Este modelo assenta nos conceitos cognitivos — de frame, schema e contexto — que determinam os modelos mentais que utilizamos para compreender a realidade. Estes servem para enquadrar uma informação nova que nos chega, que nos ajuda a rapidamente assimilar a mesma, mas cria um conjunto de expectativas sobre o que se deve suceder a essa nova informação, mas que entram em choque sempre que essas expectativas não acontecem. Assim, gera-se um enquadramento na cabeça do recetor, conduz-se o mesmo numa direção de sentido, e no final faz-se uma curva de 90º. Aqui parece-me que teria sido relevante também Tobin dar conta do facto de ser o modelo mais utilizado pelos humoristas, no fundo a base daquilo que chamamos “gag” (piada que nos engasga pela surpresa). Deixo um exemplo:
 “Um oficial iraquiano chama os oito sósias do Saddam e diz: Tenho boas e más notícias. A boa notícia é que Saddam está vivo. Todos os sósias comemoram. A má notícia é que ele perdeu um braço.”
— Managed Reveal (fechamento)
Neste modelo a surpresa dá-se por meio de uma revelação de informação cuidada, estruturada, em jeito de explicação do que aconteceu, oferecendo uma nova perspetiva sobre o que aconteceu, que cose todas as pontas soltas e faz com que tudo ganha um sentido novo e coerente. Isto funciona muito bem porque lidamos muito mal com dados incompletos, temos de por qualquer meio fechar tudo aquilo que se abre, e por isso estas revelações que nos surpreendem são ainda mais prazerosas porque nos aliviam do stress da incompreensão.
Para além do fechamento, que já vem da Gestalt, e que serve perfeitamente à narrativa, existe ainda um conjunto de estudos que têm demonstrado o quão ávidos de explicações somos, e como o mero ato explicativo por si é suficiente para nos seduzir. A autor dá um exemplo, estudado, que tem demonstrado resultados, e que acontece quando uma pessoa quer passar a frente numa fila, bastando para o efeito oferecer uma explicação mesmo que esta seja vazia: “May I use the Xerox machine, because I have to make copies?

— Finessing misinformation (ilusionismo)
Este modelo serve imensamente bem ao cinema porque as suas origens estão umbilicalmente ligadas ao mundo do ilusionismo desde o grande Méliès. Assim, este modelo assenta na ideia de construção de ações de dissimulação. Aproxima-se do “frame shift”, embora aqui não se objetiva a desviar o foco explicativo, mas antes o foco de atenção, esperando que o recetor não se dê conta do que está verdadeiramente acontecer, e assim possamos no final apresentar a informação como novidade ou algo desconhecido. Tobin usa o viés do “anchoring”, próximo do “priming”, em que certa informação apresentada primeiro, condiciona aquilo que tendemos a pensar no momento seguinte, induzidos pelo que vimos ou ouvimos antes.
O modo base deste modelo assenta no desenho dos personagens, que vão debitando linhas que nos levam atrás dos mesmos, que nos convencem de ser algo, mas que no final se revelam ser outra coisa completamente. Aqui podemos enquadrar o personagem de Bruce Willis em Sexto Sentido.

— Burying information (cavalo de Tróia)
Este padrão assenta na introdução de informação de forma encapotada, aproximando-se do ilusionismo, embora aqui não se procure fazer divergir a atenção, mas apenas só que o recetor não se aperceba dessa mesma informação. Tobin usa um conjunto de preceitos criados por colegas anteriormente, Emmott e Alexander [3] e que listo aqui também:

         Técnicas para esconder informação
"1. Mention the item as little as possible.2. Use linguistic structures which have been shown empirically to reduce prominence (e.g. embed a mention of the item within a subordinate clause).
3.  Under-specify the item, describing it in a way that is sufficiently imprecise that it draws little attention to it or detracts from features of the item that are relevant to the plot.
4.  Place the item next to an item that is more prominent, so that the focus is on the more prominent item. Hence, when fore- grounding is used it may have an automatic effect of down- playing nearby items, like a spotlight that makes items around the light less noticeable.
5.  Make the item apparently unimportant in the narrative world (even though it is actually significant).
6.  Make it difficult for the reader to make inferences by splitting up information needed to make the inferences.
7.  Place information in positions where a reader is distracted or not yet interested.
8.  Stress one specific aspect of the item so that another aspect (which will eventually be important for the solution) becomes less prominent.

— Emotional involvement (engajamento)
Aqui Tobin entra diretamente no domino que mais tenho trabalhado do engajamento humano com artefactos, e que tem múltiplos nomes, dependendendo da área científica por onde nos aproximamos. Desde o “narrative transportation”, à “presença” , passando pelo “flow” de Csikszentmihalyi (no meu livro "Emoções Interactivas" fiz uma tabela de conceitos similares com cerca de 15 conceitos [4]).  Assim Tobin, usa estes modos de inteira absorção por parte das obras como potenciais modos de geração de surpresa, pelo simples facto de que quando inteiramente absorvidos na experiência, muitos dos detalhes do que vai acontecendo nos passam ao lado, não nos damos conta, e por isso a obra vai manipulando o nosso pensar por via do nosso sentir.  Como ela diz “the more engaging and vivid the story events are, in fact, the less vigilant readers are about policing source information.”


Ficam assim as cinco principais estratégias para desenvolver surpresa numa narrativa, seja em que meio for. São estratégias pensadas por meio da psicologia cognitiva, mas que descrevem aquilo que o guionista faz, na maior parte do tempo sem saber que o está a fazer. Técnicas passadas pela experiência, que se socorrem de vieses cognitivos que todos, enquanto leitores, espectadores, e jogadores sofremos. O facto de terem sido aprimorados, ao longo de séculos de produção de narrativa, faz com que se tenham tornado tão naturais, no sentido em que não nos conseguimos aperceber da persuasão e manipulação de que somos alvo. A força destes vieses, e por isso destas técnicas, é tão grande que mesmo sabendo da sua existência, como acontece no final da leitura deste texto ou do livro da Tobin, continuamos a deixar-nos surpreender à medida que as vamos encontrando, como acontece com a maior partes dos vieses cognitivos.


REFERÊNCIAS
[1] Robert Appelbaum (2018) Joseph North, Literary Criticism (..) Vera Tobin, Elements of Surprise (..), Studia Neophilologica, DOI: 10.1080/00393274.2018.1550624
[2] Thomas Manuel, 2018, Do Writers Care for What Psychology Has to Say About the Curse of Knowledge?, in The Wire
[3] Emmott, C., Alexander, M., (2014). Foregrounding, burying, and plot construction. In The Cambridge Handbook of Stylistics, edited by Peter Stockwell and Sara Whiteley, 329–343. Cambridge: Cambridge University Press.
[4] Nelson Zagalo, (2009), Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, CECS/UM, Gracio Editor, Coimbra, Portugal, p.400, ISBN: 978-989-96375-1-1. Ver páginas 203-205.

dezembro 07, 2018

A construção inata das emoções

Lisa Feldman-Barrett tem provocado imensas ondas no campo das ciências da emoção com a sua nova proposta sobre o modo como surgem as emoções. Se no mundo da ciência as suas abordagens vão sendo aceites mas bastante questionadas, dada a natureza de regulação da ciência que favorece a dúvida, no campo mais mediático, da chamada folk science, as suas abordagens têm sido recebido como revolucionárias e de extrema importância. É verdade que Barrett tem um currículo académico que lhe granjeia facilmente autoridade, e por isso a aceitação daquilo que diz como sendo cientificamente demonstrada e logo verdade. Do meu lado, darei aqui conta do ceticismo para com a sua teorização.

Se quiserem um atalho para o livro, leiam o artigo da autora "The theory of constructed emotion: an active inference account of interoception and categorization" (2017) publicado no Social Cognitive and Affective Neuroscience, resume todo o livro.

Barrett apresentou uma TED, escreveu dezenas de artigos e no ano passado lançou o livro “How Emotions Are Made: The Secret Life of the Brain” (2017), tudo para defender aquilo que ela define como uma teoria revolucionária das emoções, a que chamou de "theory of constructed emotion". Nessa teoria diz-nos que a teoria clássica da emoção está completamente errada: que as emoções não são universais, variam entre seres-humanos, e mais, não são inatas. Para Barrett, as emoções são meras construções mentais, simulações que fazemos a partir de experiências passadas. Para sentir uma emoção precisamos de julgar momento a momento para determinar a emoção que sentimos. Estas conclusões de Barrett advém do facto de ter passado as últimas décadas a tentar encontrar a "impressão digital" das emoções e não a ter encontrado. Ou seja, nos estudos que fez com fotografias de faces humanas encontrou demasiada variabilidade nas respostas; nos estudos que fez com a variação corporal e nos estudos que fez com os circuitos neuronais, igual. Barrett diz assim que até hoje não foi possível encontrar no corpo humano o lugar em que a emoção se define, e desse modo ela não existe de forma inata, sendo mera construção mental.

Esta abordagem de Barrett, do meu ponto de vista, enquanto investigador da emoção e cognição, levanta-me imensas dúvidas, algumas a partir de outros autores, outras como reação direta ao que é questionado pela autora, e que passo a elencar:

1 – Expressão Facial e Paul Ekman 
Ekman é um dos mais reputados investigadores de emoção, em especial, da emoção facial. E é também um dos mais atacados por Barrett, porque segundo ela, nas suas replicações experimentais, nunca conseguiu encontrar os mesmos resultados que Ekman. Por sua vez Ekman, respondeu-lhe em 2014, de forma muito direta, com a imensidade de estudos que suportam o seu trabalho e as suas propostas, vale a pena ler. Barrett aceita que a leitura de expressões faciais possa ser demasiado subjectiva, e por isso realizou testes com sensores de variação muscular da cara, a partir dos quais concluiu que continua a existir demasiada variabilidade.

Ora estes estudos levantam-me vários problemas, primeiro porque a avaliação de emoção apenas por meio de uma fotografia é algo que só muito treino pode garantir, pela simples razão de que lhe falta a variabilidade temporal da cara. Uma emoção facial não tem a duração de um momento congelado no tempo, mas no mínimo, a variação da posição neutra até à posição da emoção, e depois o voltar ao neutral novamente. Ora, nós seres humanos estamos apenas dotados de capacidade para ler essa variação, e não instantes captados com máquinas fotográficas. É o mesmo que tentar ver o que acontece numa imagem de um filme quando o filme está em movimento, não conseguimos, temos de usar a tecnologia para parar o movimento. Por isso Ekman defende a necessidade de treinar as pessoas para lerem emoções.

8 pontos de Barrett vs. 152 marcadores usados por Tom Hanks para o filme "Polar Express" (2014)

Mas pior do que isto são os testes com sensores feitos por Barrett. Como vemos na fotografia, está a usar 8 sensores para captar a variação muscular. Mesmo aceitando que são sensores capazes de uma mais alargada sensibilidade, se compararmos com os sistemas de motion capture que temos criado para realizar animação facial com alguma qualidade, as quais recorrem a mais de 150 pontos, soa no mínimo ingénuo a experiência de Barrett. Mas agrava-se, porque se pensarmos que mesmo com esses 150 pontos, continuamos a não conseguir captar toda a essência do movimento da cara, e a ter problemas na representação facial em 3d, o qual é reconhecido como uncanny valley, então ficamos a pensar que falta muito trabalho a Barrett para chegar à identificação das expressões faciais por meios ditos objetivos.

2 – Marcadores somáticos de Damásio
Um segundo aspeto que me parece um pouco tonto na teoria de Barrett, até por ela a apresentar como se fosse algo completamente revolucionário, é que Damásio já tinha defendido que as emoções emergiam a partir de marcadores somáticos, que não são mais do que inferências do passado, preservadas no nosso corpo. Aliás, Barrett é bastante desleal aqui, porque o único lugar em que reconheceu semelhanças com a sua teoria foi numa página wiki de trabalho para o livro, já nos seus artigos e no livro, não existe qualquer menção aos marcadores somáticos. Na wiki, Barrett diz que descarta a teoria de Damásio, porque apesar de semelhante, Damásio defende as emoções como sendo inatas. Ora Damásio, como Ekman, Darwin e tantos outros, só defendem seis emoções como inatas — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva, Nojo e Surpresa—, todas as outras Damásio defende como emoções sociais, ou seja construídas culturalmente.

Na verdade a teorização de Damásio é muito mais relevante porque defende os marcadores somáticos presentes no corpo e não apenas na mente como defende Barrett. Para Barrett a emoção é apenas uma resposta mental, enquanto para Damásio é todo um quadro somático do nosso corpo que nos permite sentir o impacto fisiológico da emoção (não esquecer as mais recentes descobertas em torno dos neurónios presentes na medula espinal, no coração, e no intestino.). E aqui agrava-se ainda mais a abordagem de Barrett apresentando-se como defensora do mais básico dualismo mente/corpo, aquele que Damásio procurou desmontar, e desde então tem sido aceite por boa parte da ciência.

Mas Barrett vai mais longe, no livro e na TED, atira à cara das pessoas que estas “não estão à mercê das emoções”, uma vez que essas são meramente criadas pelo cérebro. Que “nós não somos vítimas de circuitos de emoção primitivos e animalescos” porque é o nosso “cérebro que constrói as experiências emocionais, mesmo aquelas fora de controlo”. Ou seja, não só atira as questões inatas como todo o corpo fora. Onde é que na equação de Barrett entram as situações pós-traumáticas e as hormonas da testosterona, da ocitocina, da adrenalina ou da dopamina!?

3 – Emoção e Cognição
No terceiro ponto vejo um problema enorme, que é a total confusão entre cognição e emoção. Barrett usa princípios da Gestalt para definir o modo como se processa a identificação de etiquetas emocionais. Os princípios da Gestalt são operados por lógica, pela busca de padrões que o nosso cérebro opera, mas que se diferenciam imenso das sensações ou emoções que atuam sobre o nosso corpo como um todo. Aliás, Barrett usa e abusa de todas as teorias no campo visual, narrativo, da aprendizagem, assim como da psicologia — tal como a "appraisal theory" — mas nunca cita todo o trabalho feito nessas áreas. No fundo, arranjou uma interpretação sua para algo que diz que não tem explicação na neurociência, e fala dela sem ligar nenhuma a todos os restantes ramos do conhecimento que se têm dedicado a perceber como construímos conhecimento, como compreendemos o real, e como isso se diferencia dos modos como sentimos esse real.

4 – Expressões faciais em invisuais
Apesar de ter deixado este ponto para quarto, é talvez o mais impactante em toda esta teorização de Barrett, porque é uma evidência clara da insustentabilidade da teoria proposta. Ou seja, se as emoções e expressões faciais são respostas mentais construídas, apreendidas no tempo, por via dos pais e cuidadores, então como é que se explica que invisuais de nascença, possam expressar emoções com a cara do mesmo modo que pessoas com sentido de visão? Como é que estas pessoas aprenderam a gerar aquelas emoções? Como é que o seu cérebro sabe o que deve fazer com a cara?

Nestas imagens vemos como as expressões faciais são iguais. Mas algo que é muito interessante no estudo que apresenta estas imagens é que se verificou que os invisuais só apresentam a mesma expressão facial quando estão a sentir a emoção, e não quando lhes pedem para fazer a cara de uma determinada emoção, o que torna ainda mais evidente o facto da emoção ser um processo inato e automático, e não aprendido e consciente.

5 – Emoção como palavra!
Para Barrett só sentimos as emoções para as quais temos palavras. Se não soubermos definir o que sentimos, então não sentimos essa emoção. Aliás, neste mesmo sentido diz-nos que os
animais não sentem medo, que sentem apenas uma espécie de afeto! Ou seja, é preciso ter um sistema mental completo e dotado de expressão e comunicação para sentir! Seguindo esta ideia, uma criança a quem nunca tivesse sido ensinado o que é a tristeza, ou a alegria, ou o medo, poderia viver toda a sua vida sem sentir emoção. Então pergunto porque não temos a nossa espécie cheia de Spocks? Ou pior, porque raio continuam os animais a insistir em sentir emoções?!!!




Seguindo a teoria de Barrett, como podem estes cão sentir algo se ninguém lhes ensinou as palavras que definem as emoções que sentem?!


São tantos os problemas desta teoria, a ponto de ser a própria a aceitar que a sua teoria é apenas uma teoria — "the roles I’ve described for your various brain networks are not objective facts. They are concepts invented by scientists to describe the physical activity within a brain" — e que tem imensos problemas, apresentando vários buracos. No entanto, esta aceitação entra em choque com a sua vontade de estar constantemente a atacar as teorias que aceitam o lado biológico das emoções, e pior, apresentar a sua teoria como verdade absoluta e inquestionável.

julho 10, 2018

A homeostase como base do todo, do Big Bang à IA

Sou grande admirador de António Damásio, aliás muito daquilo que é a minha paixão pela investigação científica devo-a a ele, em particular ao seu primeiro livro “O Erro de Descartes” de 1995. Depois disso fui seguindo a sua investigação e entrevistas e lendo todos os seus livros, mas à medida que os anos se foram passando os seus livros foram perdendo chama, muito por se repetirem, por tentar de formas distintas dizer aquilo que já tinha dito antes ainda que sem qualquer preocupação de olhar para o lado e procurar incorporar o que outros académicos iam também dizendo e fazendo. Por isso no ano passado quando saiu “Estranha Ordem das Coisas” não corri a comprar, tinha pensado mesmo passar, até que li as palavras de Leonard Mlodinow, “Quase um quarto de século após o erro de Descartes, Antonio Damasio consegue novamente.” Senti-me obrigado a ler o livro, tinha de saber o que tinha Damásio encontrado de novo para nos dizer. Em poucas palavras: confesso a desilusão, ainda que continue sendo um grande comunicador.

"A Estranha Ordem das Coisas" (2017) António Damásio

“A Estranha Ordem das Coisas” pode dividir-se em três partes fundamentais: a primeira em que surge aquilo que considero ser a inovação, deste livro de Damásio, o modo de olhar para o conceito da homeostasia; a segunda em que somos trucidados pela enésima vez a propósito da diferença entre emoção, sentimento e consciência; e a terceira na qual Damásio procura sair do seu território, abraçando a história e a tecnologia para fazer uma leitura da sociedade atual e futura, acabando por descarrilar totalmente. Esta última parte não surpreende, desde o início que Damásio é acusado de ignorar a psicologia e a sociologia. Para ele tudo começou por ser explicável apenas com base na neurologia e na filosofia, com o tempo abriu-se à biologia e às artes, contudo não chega, nem dá conta do conhecimento já existente sobre o humano. Neste livro tudo isto é ainda mais gritante já que ele deixa de se focar nas estruturas de suporte ao humano, para se focar naquilo que motiva o humano e na sua produção de cultura.

Começando pelo melhor, a primeira parte do livro, Damásio discute e aprofunda as implicações do processo de homeostase na criação e manutenção de vida. A leitura recua milhões de anos, vai ao nível celular, e Damásio, por meio da biologia e muito habilmente, dá conta do modo como terá surgido vida neste planeta, e como o processo evoluiu por longos milhões de anos até chegar ao homo sapiens. Para Damásio a homeoestasia é uma necessidade da célula que busca não a mera estabilidade, mas o estado mais conveniente em cada momento para continuar a viver. Damásio diz mesmo que o equilíbrio completo não existe, já que de um ponto de vista termodinâmico só a morte o poderia garantir. Ou seja, a célula determina sempre o seu estado em função da otimização dos recursos de energia disponíveis e da garantia de manutenção futura da própria vida, isto porque a célula não vive numa ilha isolada, mas está em permanente interação com a realidade que a rodeia. Neste sentido a homeostasia funciona como um ‘drive’ interno, ou seja, a motivação para a vida, que se propaga depois a todos os restantes mecanismos biológicos.
"Homeostasis refers to the fundamental set of operations at the core of life, from the earliest and long-vanished point of its beginning in early biochemistry to the present. Homeostasis is the powerful, unthought, unspoken imperative, whose discharge implies, for every living organism, small or large, nothing less than enduring and prevailing. The part of the homeostatic imperative that concerns 'enduring' is transparent: it produces survival and is taken for granted without any specific reference or reverence whenever the evolution of any organism or species is considered. The part of homeostasis that concerns 'prevailing' is more subtle and rarely acknowledged. It ensures that life is regulated within a range that is not just compatible with survival but also conducive to flourishing, to a projection of life into the future of an organism or a species." (p. 25)
Esta abordagem é-me particularmente útil porque há um anos no meu trabalho sobre emoções nas artes interativas me apercebi que não seria possível dotar um ser humano de emoções nulas (0,0), que o facto de se estar vivo obriga a uma emocionalidade contínua. Assim como é impossível não comunicar, é impossível não sentir emoção. Na altura propus o gráfico abaixo, no qual defendia que a nossa emocionalidade tende para a tranquilidade, o que não seria neutra, mas antes “natural”, ou seja, tal como a homeostasia um modo de garantir a manutenção ótima da experiência humana. Ora esta abordagem aqui proposta por Damásio vem responder e dar força a esta visão. Por outro lado, e isso é mais interessante no livro, explica o modo como a vida é regulada, e a razão porque nunca paramos de evoluir, porque estamos em constante mutação e progressão, ainda que de um modo lento, imperceptível ao nosso olhar quotidiano. Diria que o livro vale só por esta primeira parte, e muito.

Gráfico retirado do meu livro de 2009, Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, p. 300.

Entrando na segunda parte, Damásio pega na sua abordagem tripartida da experiência humana — emoção, sentimento e consciência —, e tendo já dedicado livros completos a cada uma destas camadas, vai mais uma vez discutir aquilo que as separa, as suas funções, motivações e riquezas. Diga-se que senti neste livro uma maior tendência para discutir o facto dos sentimentos serem dotados de consciência. Não que isto não tivesse sido já dito, mas foi um pouco como se Damásio tivesse a necessidade de afirmar o estado evolutivo e grandioso dos sentimentos, como se eles fossem não apenas neurologia mas também cultura. Ora, e concordando com esta leitura de Damásio, não é de todo possível aceitar que o faça apenas com base na sua estrutura biológica, relegando todo o trabalho secular da psicologia.

Ou seja, Damásio assume o seu trabalho científico de análise e busca do modo como geramos emoções, sentimentos e consciência, assente em sistemas de imagiologia entre outras ferramentas, o que me parece bem. Contudo para compreender e interpretar aquilo que vai descobrindo serve-se apenas da sua intuição e da arte, aliás como ele diz "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare". Ora aqui temos um problema grave, que é o de assumir a sua subjetividade como passível de leitura do humano. Ou seja, Damásio apesar de não seguir nada das teorizações da psicanálise, acaba, no entanto, seguindo o seu método, analisando-se a si mesmo para compreender e interpretar os dados que vai recolhendo na sua investigação. Ora se temos uma ciência chamada Psicologia é exatamente para refutar essa abordagem subjetiva e psicanalítica. Aquilo que os maiores psicólogos têm feito não é dar nomes espetaculares às estruturas mentais, mas tem antes sido desenvolver métodos complexos para estudar e compreender como funciona a consciência, os sentimentos, os desejos, as motivações, no fundo todo o aparelho cognitivo. Damásio ignora deliberadamente trabalho fundamental de colegas como Nico Frijda ou Lisa Feldman Barrett, autoridades no campo da emoção e cognição, ou o trabalho seminal de Deci e Ryan no campo da motivação, ou de Daniel Kahneman e Amos Tversky no campo do comportamento. Ao ignorar tudo isto, não só ignora colegas, como se afunda em teorizações pouco credíveis.

Mas eu vou ainda mais longe, Damásio não só ignora a psicologia como ignora a primatologia, a ciência que vem estudando o comportamento nos primatas, para não falar da própria etologia, isto no sentido em que o autor obsessivamente coloca o humano numa dimensão paralela, diferente e única, às restantes cadeias animais. Se pensarmos no trabalho de Jane Godall ou Konrad Lorenz, ou se pensarmos nos avanços mais recentes proporcionados por Frans de Waal em redor dos processos de empatia. Ou se pensarmos apenas nos modos como os bonobos se aproximam de nós, ou das capacidades imensamente avançadas apresentadas por espécies não-mamíferas como as aves (especialmente os corvos), teremos de conceder que a nossa especificidade é bem menor, e que só continua a ser amplificada por causa do nosso viés subjetivo, o que como já vimos em Damásio é bastante acentuado.

Mas não é apenas no exterior de nós mesmos, é também no interior. Damásio fala continuamente no corpo, mas à semelhança do que faz com o Humano, vive obcecado com o cérebro. É nele que concentra praticamente toda a sua investigação, deixando de fora áreas que têm evoluído, como por exemplo os estudos sobre o sistema nervoso do intestino. Há anos que nos fala do corpo, da visceralidade da emoção, do sentir nas vísceras, mas descobrir que os nossos intestinos possuem uma enorme camada de neurónios, que é onde 90% da serotonina (neurotransmissor da boa-disposição) está alojada, que são autónomos na gestão das suas necessidades, tanto face ao cérebro como aos sistemas de homeostasia do nosso corpo, devia fazer-nos refletir mais. Damásio fala bastante do modo como nos tornamos espécies dotadas de sistema nervoso, como ele é responsável pelo sentir e pelo ser, como só o sistema nervoso pode mapear o real e construir os sentimentos internos, e no entanto fala tão pouco da medula espinal, e nada diz sobre os intestinos que albergam 5 vezes mais neurónios que a medula.

Obviamente que Damásio não pode falar de tudo, a consciência é complexa e toca em tudo. Por outro lado, escrever livros, uns atrás dos outros, quase repetindo os argumentos que desenvolveu há 25 anos não ajuda muito. Era expectável que alguém tão interessado na emocionalidade e cognição humanas fosse alargando as dimensões da sua análise, albergando trabalho que vai sendo feito com recurso a conhecimento construído durante décadas ou séculos. Recusar-se a fazê-lo, optar em sua vez por citar constantemente filósofos com dois ou mais séculos, pode até dar um ar clássico e intelectual às observações, mas serve apenas uma comunidade leiga. Por isso não admira as críticas que os seus livros vão sofrendo no meio académico.

Por fim, na terceira parte do livro, entramos numa etapa nova de Damásio, embora mais uma vez muito colada ao seu trabalho anterior, ao que tinha juntado a biologia do primeiro capítulo e as artes, para assim discutir o humano e a máquina, motivado pelas assunções apresentadas por Harari em “Homo Deus” (2017). Antes de discutir em detalhe, começar por dizer que Damásio comete um erro gritante nas suas tentativas de interpretar e especular sobre tecnologia, quando não separa a evolução e progresso do humano da evolução e progresso da máquina. Ou seja, aquilo que as máquinas poderão vir a ser não depende daquilo que o humano poderá vir a ser. Sei bem que Damásio está muito ligado a Descartes, e por isso não poderia deixar de combater o mesmo, nomeadamente o seu “Demónio Génio”, aquele criador de ilusões que enganava os nossos sentidos, que viria depois a evoluir para uma outra teorização, a do cérebro numa jarra imaginando a realidade, e que chegou aos nossos dias como a possibilidade de fazer upload da nossa mente para um sistema informático. Tal como Damásio, considero esta hipótese não remota mas impossível porque estapafúrdia, e apoio completamente Damásio neste seu sentimento de afronta face às teorizações que se vão fazendo neste campo, nomeadamente no campo do transhumanismo, ou das hipóteses de se fazerem transplantes da cabeça para outros corpos. A razão porque isto não faz sentido foi já discutida acima. Não somos apenas um cérebro, porque o nosso cérebro não detém uma base de dados daquilo que somos, ele depende do resto do corpo para compreender a realidade, está ligado a todo o mapa nervoso que percorre o corpo, no qual se sustentam as imagens da realidade, e que uma vez quebradas deixarão cair a consciência de si.

O problema de Damásio é pegar nesta abordagem e assumi-la como única, e pior assumi-la para atacar algo que vem sendo cada vez mais aceite por todos os que trabalham no domínio da cognição, pois Harari não é de todo o seu primeiro proponente, e falo do facto de Harari propor analisar o humano como conjunto de algoritmos, como um algoritmo complexo no meio da equação do cosmos. Damásio defende que não, demonstrando claramente não perceber o que é um algoritmo. Para o efeito escuda-se na complexidade biológica do ser humano, nas intermináveis interações biológicas, desde o plano atómico, ao celular, e a todos as camadas que se lhe vão sobrepondo até que a vida emerge. Ou seja, para Damásio a vida não é um algoritmo, porque é algo mais complexo do que um algoritmo.

Isto é tão vazio a ponto de levar Damásio a contradizer-se no seu próprio livro, da primeira parte para a terceira parte. Ou seja, Damásio esforçou-se por encontrar e conceber  o conceito da unidade mínima que nos dá a vida, o processo de homeostase, e no entanto no fim do livro refuta-o. Porque vejamos, o que é a homeostase se não um algoritmo por excelência, um "conjunto de operações" ou regras, bem definidas e delineadas por Damásio, para dar conta do modo como a vida não se limita ao equilíbrio, mas procura ir além, para o que precisa de regras, de um algoritmo. Ou seja, é o próprio Damásio que abre o livro apresentando o algoritmo mais aprimorado daquilo que significa vida, e no final, por incompreensão da ciência exterior ao seu trabalho, contradiz-se.

Mas fosse o problema apenas este, e nada mais diria, o problema é que não é apenas a definição da vida como algoritmo, apesar de ser por aí que decide atacar Harari. Na verdade Damásio fica imensamente aquém das capacidades especulativas de Harari, o que me levou a refletir sobre o porquê, e acabei por concluir que tem que ver com o mundo científico de que ambos partem. Damásio parte do conhecimento da biologia, da máquina orgânica, enquanto Harari parte da História, da maquinaria social. Damásio procura perceber como é que poderemos algum dia criar inteligência artificial, enquanto Harari olha para a curva de progresso da invenção humana para chegar às suas conclusões. Ou seja, Damásio está focado no mero progresso da biologia, e por isso considera tal impossível, já Harari está focado no progresso das máquinas, do quanto evoluíram no sentido de nos imitar. Trago aqui à colação, um texto que escrevi aquando da minha leitura de "Musicophilia" (2007) de Sacks:
“No fundo, somos tecnologia construída a partir de tecidos orgânicos, que evoluíram ao longo de milénios de anos permitindo que a complexidade de armazenamento de informação na nossa cabeça se complexificasse a um tal ponto levando a que esta própria complexidade fizesse emergir em cada um de nós, personalidades com traços próprios. Mas no fundo não passamos de máquinas biológicas com data de validade inscrita à nascença. Aliás nesse sentido, se algum dia viermos a perceber o que faz despoletar a emergência do ser no nosso cérebro, poderemos simular isso em computadores, e a partir daí seremos obrigados a respeitá-los tanto, como respeitamos hoje qualquer outro ser humano. Talvez Kubrick e Spielberg (AI, 2001), tivessem razão, e daqui a 10 mil anos já não existiremos por cá enquanto máquinas biológicas, mas antes como resquícios esquecidos em pequenos robôs.” Zagalo in VI, 2011
Aquilo que Harari apresenta em “Homo Deus”, é isto mesmo, a visão de um pós-humano. Não vamos evoluir para o ponto de sermos carregados para o ciberespaço, mas vamos criar algoritmos capazes de pensar como nós pensamos, porque não somos sequer a única espécie capaz de pensar neste planeta. Porque e apesar de concordar que a componente emocional e de sentimento é extremamente relevante, a verdade é que é o próprio conceito, revolucionário de Damásio, da homeostase que nos vai fazer chegar lá. Porque a máquina não precisa de ter o mesmo leque de emoções que nós detemos. A máquina desenvolverá outras, porque a máquina desenvolverá as suas necessidades a partir da sua homeostase, e esta fará emergir a sua sede de sobrevivência, e dessa as suas emoções, ou não. E este não é o que mais nos entusiasma, porque a máquina, com todo o seu poder de processamento a sua memória infinita, e acima de tudo interligação a todo o conhecimento existente, registado e em tempo real (aquilo que hoje chamamos de big data e machine learning) poderá desenvolver todo um novo sistema de processamento da realidade, para além da nossa compreensão.

Damásio pode dizer que não interessa nada a capacidade racional das máquinas, porque elas não sentem, mas eu digo, no momento em que as máquinas começarem a criar, a desenvolver as suas próprias obras, sem estarem dependentes das obras humanas, ações significantes sobre a realidade, não mais as poderemos descartar como meras ferramentas. Não interessará nada saber se sentem a beleza ou o poder daquilo que criarem, interessará antes reconhecer que aquelas criações não são nossas e são fruto de uma entidade autónoma, e que essa entidade não é descartável, tal como hoje não são descartáveis os animais. Claro que durante muito tempo tenderemos a descartar estes feitos, tal como ainda hoje fazemos com os animais, porque se protegemos os cães e os gatos, não protegemos da mesma maneira as formigas ou as abelhas, para não falar das vacas e porcos, ainda que sobre estes últimos recaiam uma necessidade fisiológica da nossa parte. Mas o que dizer dos nossos jardins zoológicos, continuo sem esquecer a última vez que fui ao de Lisboa, há cerca de 10 anos, e espreitei para dentro da zona fechada em que eram mantidos os gorilas, e vi os seus olhos olharem para mim, o estremecimento que senti nunca mais me abandonou. Mas e todas as outras espécies que não detém fisionomias similares, que nós não compreendemos o que pensam ou sentem?

Porque seguir Damásio é seguir a ideia de que a vida só vale quando se sente, e se sente com a força da consciência, da intelectualidade, mas a vida não é só cultura humana, nem é só sentimento, a vida que surgiu num big bang há milhões de anos, era, aqui sim Damásio, homeostase, não era sentimento. É nessa homeostase que acredito, na capacidade criadora, de manter vivo hoje e avançar para o amanhã, e nesse plano estamos ao nível dos animais, assim como um dia as máquinas estarão para além de nós.

junho 13, 2018

Análise do vídeo "US-NK Singapore Summit"

Como é que surge um trailer de cinema de Hollywood sobre os dois líderes — Kim e Trump —, no meio de uma cimeira política? O que é que diz esse trailer, sobre os seus criadores e destinatários? E no final, qual o seu significado? A ideia de usar o formato de trailer cinematográfico para sintetizar ideas é excelente por várias razões: primeiro, porque usa todo o poder do contar de histórias (storytelling) para passar uma mensagem (aliás atente-se no título do trailer — "A Story of Opportunity"), nomeadamente imagens universais que facilitam a comunicação entre povos de culturas e línguas distintas. Segundo, porque consegue em poucos minutos sintetizar o objeto do que se pretende e tornar claro com que se conta. E por fim, talvez o atributo mais poderoso, porque vai ao âmago da emoção e sentimento, tornando-se poderosamente persuasivo, preparando o terreno para o que se deve seguir, no caso negociações políticas.



Sobre quem o cria, independente do seu conteúdo, demonstra desde logo uma clara boa-vontade e abertura negocial, para o que der e vier. Sobre quem recebe, e partindo do princípio que o trailer foi construindo tendo em mente o público-alvo, ou seja Kim, dá conta de alguém que vive num mundo de fantasia, que tendo um povo a morrer à fome, vive no seu reduto principesco, rodeado de ilusões prazeirosas, como o cinema de um país distante que comunica cultura sem qualquer relação com o povo ou país que governa. Visto assim, a estratégia parece perfeita. Podemos dizer que Trump habilmente soube construir a armadilha para apanhar o seu adversário. Mas será mesmo assim? Precisamos de desconstruir o filme, na sua forma e texto, ligando o mesmo ao contexto dos dois intervenientes, para chegar ao seu significado.

Assim temos 4 minutos de filme, realizados seguindo uma estética marcada pelo tom do cinema de ação de Hollywood do final dos anos 1980, início de 1990. Temos desde a imagem alaranjada, quase a roçar o vídeo gasto, à música épica, a que se adiciona o hábito que existia de contar a história de modo didático no próprio trailer, e depois tudo muito bem reforçado com o uso de uma sequência em que Silvester Stallone, ícone desse cinema, visita Trump já presidente. Ou seja, na forma, e tendo em conta o ideário do recetor, temos todo o sentimento propício a puxar pela nostalgia do recetor, e desse modo a fragilizá-lo emocionalmente, tornando-o mais aberto, mais suscetível à influência externa. Podemos quase dizer que o trailer funciona como um domador de ímpetos emocionais, por via do adocicar da realidade através do alimentar de fantasias do interlocutor.


Olhando depois ao texto, temos um conjunto de construções históricas da humanidade — Pirâmides do Egipto, Coliseu de Roma, Taj Mahal, Muralha da China —, criadas ao longo de milénios, misturadas com imagens dos dois e únicos líderes — Kim e Trump —, com uma perspectiva para um futuro imobiliário grandioso e por analogia também ele histórico e desse modo inesquecível. Ou seja, a fantasia da plástica é elevada pelo texto, já que coloca os intervenientes no patamar mais alto da relevância de todo o planeta, equiparando-os aos feitos de milhões de seres-humanos anteriores, não se limitando à metáfora mas afirmando-o, pela voz do narrador: "Seven billion people inhabit planet Earth. Of those alive today, only a small number will leave a lasting impact." ao que se segue "History is always evolving, and there comes a time when only a few are called upon to make a difference."

"US-NK Singapore Summit" (2018), vídeo criado pela comitiva americana para a Cimeira entre EUA e Coreia do Norte, decorrida a 12.6.2018

O texto segue contando a história da oportunidade que um dos homens dá ao outro, mas para dramatizar, apenas uma oportunidade é dada, ao mesmo tempo que se confronta a pobreza do país atual com o brilho do futuro, caso o segundo homem aceite juntar-se ao primeiro, e assim poderem tornar-se ambos, donos do mundo. Ou seja, segue-se aqui um pouco a narrativa dos irmãos (muito comum no cinema de ação dos anos 1980/90), no caso, os de sangue separados a nascença que se reencontram, e um deles terá de  deixar para trás a família adotiva para seguir caminho com o outro, se quiser continuar a ser seu amigo. Mas diga-se que aqui a concessão é bem maior, já que não existe propriamente nenhuma exigência de alteração de rumo na vida da pessoa, apenas se pede o abandono de uma das suas atividades (produção de armamento nuclear), podendo ele manter todas as regalias que tinha, e ganhar ainda com isso.


Numa entrevista dada imediatamente a seguir ao final da Cimeira, Trump explicava como tinha abordado Kim, tendo-lhe dito: "You know, instead of doing that, you could have the best hotels in the world right there. Think of it from a real-estate perspective.”

Espremido, Trump diz a Kim neste trailer: larga as armas e eu te ajudarei a erguer um império como nunca antes sonhaste, contribuirei para manteres o teu povo agrilhoado, ganharemos os dois muito dinheiro por meio da especulação e prosperidade imobiliária das tuas estâncias de turismo, e o teu povo te respeitará como a nenhum outro líder, marcando o teu lugar imortal, não apenas na história do teu país, mas na de todo o planeta, ao meu lado e para todo o sempre. Não admira que os jornalistas presentes na cimeira tivessem pensado que o vídeo tinha sido produzido pela propaganda da Coreia do Norte.

dezembro 11, 2017

"Ilíada" de Homero

Durante muito tempo me questionei porque sempre que se citava Homero, ou se citavam os clássicos da literatura grega, era da “Odisseia” que primeiro se falava, quando em termos cronológicos, tanto da sua conceção como da história contada, é a “Ilíada” o primeiro dos dois livros. Não compreendia, até porque na tradição contemporânea, o mais importante das histórias está normalmente associado ao primeiro livro, ou primeiro filme, não passando os restantes de sequelas, sucedâneos, que não raras vezes falham em atingir o nível dos primeiros volumes das séries. Assim, e tendo eu lido primeiro a “Odisseia”, no ano passado, agora terminada a leitura da “Ilíada”, compreendi o porquê, e é sobre isso que me irei deter nas próximas linhas.

"O Triunfo de Aquiles" por Franz Matsch, num fresco do século XX, em que se vê Aquiles puxado pelos seus "cavalos de casco não fendido", arrastando, pelos pés, o corpo de Heitor.

A “Odisseia”, como o próprio título indica, trata uma viagem, no caso, a do regresso de Ulisses a casa, depois dos 10 anos que duraram a Guerra de Tróia. Já a “Ilíada” foca-se nessa guerra, mas se dá conta das razões que a ela conduziram, acaba por depois se centrar quase exclusivamente num punhado de eventos, realizando avanços e recuos ao longo de toda a sua descrição, sem nunca chegar a concluir o que inicia. Assim, temos como razão para o início da guerra, um tanto tonta como Heródoto já terá dito: Paris, filho do rei de Tróia, rapta a mulher, Helena, do rei de Esparta (Antiga Grécia), Menelau, e fogem ambos para Tróia, fazendo com que os gregos se levantem em sua perseguição, e iniciem uma guerra de 10 anos para destruir Troia e reaver Helena.

A edição em capa dura da Cotovia é deliciosa, mas o melhor continua sendo a tradução, como já havia dito a propósito da "Odisseia", realizada por Frederico Lourenço.

Os avanços e recuos nesta guerra acabam por ocupar a maior parte do livro, com as peripécias dos diferentes personagens. Do lado de Tróia: Paris, o seu irmão Heitor, e pai Priamo, ou o militar Eneias, que surgirá mais tarde como personagem principal da “Eneida” de Virgilo. Do lado dos gregos, temos Menelau, Agamenon, Ajax, Pátroclo e Ulisses que será o principal personagem da “Odisseia”. O miolo da narrativa arrasta-se bastante, não fossem as intervenções dos Deuses (Zeus, Ares, Afrodite, Atena, Apolo, Hera, Poseidon, etc.) em defesa de cada fação! Sim os Deuses defendem lados e atacam-se uns aos outros, tornando-os numa das mais interessantes atrações deste livro.

O núcleo da narrativa, acabará por surgir apenas na última parte do texto, com Aquiles a assumir por completo o protagonismo, a ponto de no final se tornar inevitável ler a “Ilíada” como o livro de Aquiles, ou como é reconhecido por alguns, "A Ira de Aquiles". Isto é no mínimo surpreendente, já que apesar de Aquiles surgir desde o início, ele é praticamente secundário durante todo o livro, contudo o modo como depois Homero o trabalha nesse último terço, acaba por elevar a sua personagem a um ponto de destaque não dado a mais nenhum dos restantes elementos. Aliás, em parte, o problema desta "Ilíada" está exatamente no quão pouco trabalhados vão surgindo cada um dos personagens, completamente lineares, ao contrário do que acaba por acontecer com Aquiles, o problema é isto acontecer apenas na reta final. Repare-se como em a "Odisseia", o trabalho de desenvolvimento de personagem recai sobre Ulisses mas esse é trabalhado o início ao final do poema.
“E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu —
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.”
Canto XXII 
Se é crível o despoletador da chama de Aquiles (a morte do seu amigo Pátroclo)? Julgo que é tão crível como uma cidade inteira deixar-se levar para uma guerra destrutiva por causa de um capricho, moralmente indefensável, de um filho de um rei. No fundo a "Ilíada" mostra, como desde a primeira hora, a narrativa teve de lidar como problemas de dissonância cognitiva, no caso: com tantos e tantos personagens mortos de formas violentíssimas, descritas para nos fazer sentir o terror da guerra, quer depois a narrativa que se chorem alguns desses personagens em particular, como se umas vidas tivessem mais valor que outras. Isto apenas se explica porque como muitos foram dizendo, estes poemas épicos não procuram retratar a realidade, antes dão conta de histórias populares, folclore, com um sentido de puro entretenimento, recorrendo à fantasia e mitologia.

Neste sentido, interessa menos a credibilidade do que se conta, e mais a ênfase do heróico dos personagens, que para o ser requer emocionalidade, e nesse campo Aquiles acaba sendo um dos poucos a ser capaz de nos emocionar. Faltam episódios marcantes, mais ainda quando comparado com a “Odisseia”, nem mesmo o Cavalo de Tróia aqui surge, ou o tendão de Aquiles, ainda que no último terço surjam todo um conjunto de eventos fortes enquadrados pela Ira de Aquiles — a morte de Pátrocolo; o resgate do seu corpo; a luta entre Heitor e Aquiles; a morte de Heitor; e o pedido de Priamo para levar o corpo do seu filho Heitor de volta.

"Priamo implorando a Aquiles" (1815) de Bertel Thorvaldsen 

Dito tudo isto, julgo que fica clara a relação das duas obras, e nomeadamente porque “Odisseia” vai surgindo quase sempre como a referência desta época. Não fosse a “Íliada” o primeiro poema épico sobrevivente (depois do curto poema “Gilgamesh”),  e provavelmente acabaria esquecido na nossa história. Tudo o que tem para oferecer é imensamente melhor conseguido na “Odisseia”. Ainda assim, não posso deixar de recomendar a sua leitura. É um processo lento, mas em que o crescendo se vai instalando, para no último terço, vivido com Aquiles, recompensar todo o nosso investimento. Como já tinha dito a propósito da “Odisseia”, Homero parece um autêntico realizador de cinema de Hollywood, capaz de nos arrastar pelo pescoço, com a emoção pendurada desde o canto do olho até à ponta do coração. Pura visceralidade, não fosse este é um Poema Épico.


A ler:
"Odisseia" de Homero, in Virtual Illusion