novembro 30, 2019

O ridículo da casta britânica

O caso raro da série de televisão que além de conseguir ser melhor que o filme é também melhor do que o livro. “Brideshead Revisited” (1945) tornou-se uma referência clássica e popular da literatura com a série homónima criada pela BBC em 1981, a mesma que nos deu a conhecer Jeremy Irons. A série recorre ao cenário apresentado no livro, mas injeta nele a vida e o mundo que faltava. Os cenários bucólicos e a música de sentimento intensamente nostálgico de Geoffrey Burgon criam um mundo idílico, que de certa forma Waugh parece querer apresentar no livro, mas sem sucesso. Pode-se dizer que o texto no inglês original é bastante mais poético do que a tradução portuguesa, e que a forma serviria esse ideal, mas se senti que Italo Svevo não era Proust, Waugh está ainda mais distante desse virtuosismo para nos poder oferecer esse mundo meramente pela forma.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Jeremy Irons e Anthony Andrews como Charles e Sebastian na série homónima da BBC, 1981

Quase todas as resenhas falam da questão religiosa como cerne evocativo da profundidade do romance, talvez porque a religião seja a única parte em que se sente o escritor a ser verdadeiramente jocoso. Ainda assim, é um tema que surge menos de meia-dúzia de vezes, e sempre com pouca ou nenhuma profundidade. Acredito que existe quem queira ali ver muito mais, mas parece-me estarmos no reino da mera ultra-interpretação. Aliás, quando terminei o livro as únicas palavras que me vieram à cabeça foi: superficialidade da profundidade.

Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.

Na imagem a "casa" em que vivia a família protagonista, tal como representada na série, com a música encantatória de Geoffrey Burgon

Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.

novembro 26, 2019

Mona Lisa como há 500 anos

Pascal Cotte criou em 1989 uma empresa especializada em análise fotográfica por meio de luz multiespectral e ao longo dos anos especializou-se na análise de pinturas tendo trabalhado especialmente a obra de Da Vinci. Foi o responsável pelas descobertas de desenhos de um outro modelo por debaixo da Mona Lisa ou da ausência do Arminho na primeira versão da "Dama com Arminho". Na sua descoberta mais recente, Cotte vai mais longe, recorrendo não apenas à luz, mas a todo um trabalho de reconstituição dos pigmentos existentes na época de Leonardo, para nos dar a ver o quadro que Leonardo viu antes de morrer. O resultado pode ser visto aqui, e o processo no excerto de vídeo abaixo.
À esquerda: o original presente no Louvre. Ao centro: o original com a luz retocada em Photoshop: À direita, a nova versão, que segundo Cotte se aproxima da criada por Da Vinci há 500 anos.
Esta proposta de Cotte faz sentido, não apenas pela justificação histórica que é suportada por um dos maiores especialistas em Da Vinci, Martin Kemp que diz no vídeo isto: "Suddenly she doesn’t look like a submarine goddess. She looks as if she’s in the fresh air, which is just terrific". Mas esta visão é também suportada pela recente descoberta no Museu do Prado de uma cópia de Mona Lisa feita no atelier de Da Vinci, e enquanto este era ainda vivo.
À esquerda, a cópia que existia no Prado até 2012. À direita, a mesma cópia restaurada em 2012, tendo sido retirada toda a tinta preta que cobria o fundo, que nos permite ver a aproximação à proposta de Cotte.

O vídeo do trabalho realizado por Cotte, para chegar à proposta final, é um excerto do documentário —"Decoding Da Vinci" (2019)— de uma hora da PBS que não está acessível na Europa ainda e que fica aqui abaixo.

novembro 24, 2019

Como se vive sem reconhecer rostos?

Um pequeno, mas intenso, filme de animação põe em evidência um conjunto imensamente relevante de temas que vão do bullying e discriminação à tomada de consciência de patologias neurológicas como a prosopagnosia (não reconhecimento de rostos), passando pela importância da comunicação de ciência, da comunicação audiovisual e animação, assim como dos efeitos da arte na auto-estima. Tudo isto está contido nos 5 minutos da animação "Carlotta's Face" (2018), criada por Valentin Riedl, um neurocientista alemão com interesse em cinema, com a ajuda do animador Frédéric Schuld.
O filme é curto e simples, socorre-se essencialmente do relato na primeira-pessoa de alguém que padece da doença, centrado nos problemas experienciados ao longo da vida, com particular destaque para os tempos da escola. Contudo, a ilustração é soberba, sendo capaz de ilustrar por meio de diferentes metáforas o que sente alguém incapaz de reconhecer rostos, mesmo o seu próprio.
Tendo em conta a particularidade da doença, fica imenso por dizer, muito sobre o que podemos especular, surgindo para mim a maior questão de todas: como sente alguém empatia sem conseguir reconhecer rostos?



Filme acedido via Short.
Mais informação no site do filme.

novembro 21, 2019

Travessia da Carnificina

John Williams é um fenómeno da literatura por ter as suas obras redescobertas com sucesso pela crítica e público 50 anos depois do seu lançamento e quase 25 anos após a sua morte (1994), é algo raro e só por si digno da nossa atenção. Dos quatro livros que nos deixou, o mais conhecido é “Stoner” (1965), um trabalho de enorme simplicidade narrativa mas enorme profundidade psicológica. Confesso que demorei a aproximar-me deste “Butcher's Crossing” (1960), já que depois de ter vivido uma experiência de êxtase com “Stoner”, via muito difícil o mesmo autor conseguir repetir o feito. Para agravar o meu receio, este livro era definido como livro de género, e logo como western. Surpreendeu e superou, mesmo sabendo que vinha da pena de Williams, conseguindo mais uma vez subjugar-me.
O género, o western, acaba na verdade por não o ser. Williams segue a mesma lógica que mais tarde Cormac McCarthy seguiria, apesar de situarem a ação no coração do western, não prestam vassalagem ao género, importa-lhes apenas o local e seus personagens para dar forma ao drama. No caso, mais uma vez temos um personagem particularmente pouco expansivo que procura, pela experiência do mundo e cultura western, encontrar-se, compreender-se. Neste sentido, “Butcher's Crossing” é uma espécie de “coming of age”. Para mim, o momento mais alto dá-se quando o protagonista se confronta com o desmanche de um bisonte, morto pelos homens que acompanha, para dele retirar carne e alimentar-se:
“In the moment before sleep came upon him, he made a tenuous connection between his turning away from Francine that night in Butcher’s Crossing, and his turning away from the gutted buffalo earlier in the day, here in the Rocky Mountains of Colorado. It came to him that he had turned away from the buffalo not because of a womanish nausea at blood and stench and spilling gut; it came to him that he had sickened and turned away because of his shock at seeing the buffalo, a few moments before proud and noble and full of the dignity of life, now stark and helpless, a length of inert meat, divested of itself, or his notion of its self, swinging grotesquely, mockingly, before him. It was not itself; or it was not that self that he had imagined it to be. That self was murdered; and in that murder he had felt the destruction of something within him, and he had not been able to face it. So he had turned away.” (p.168)
Se este momento é de tomada de consciência, antes deste dá-se o massacre dos bisontes, algo sobre o que já tinha alguns factos, mas nunca me tinha dado conta do tamanho da brutalidade. E só me dei conta pelo modo como Williams vai pondo os personagens a falar, surgindo os caçadores a falar na morte de 1000 bisontes, em nome dos dólares conseguidos pela sua pele, como algo banal. Na chacina apresentada, meros 4 homens eliminam nada menos do que 4600 bisontes. É aterrador, só conseguia pensar no vírus em que nos tornámos neste planeta. Não admira que em poucos anos, na segunda metade do século XIX, o bisonte tivesse passado de 20 a 30 milhões para 100 cabeças, e tivesse sido quase extinto. Só de imaginar uma pradaria carregada de corpos enormes de milhares e milhares de bisontes deitados por terra, inertes, mutilados e sem pele, dá vontade de gritar... e todo o impacto no ecossistema produzido.
O enfoque do livro não está todo aqui, este antes serve de preâmbulo ao que Williams quer mostrar, o humano, como elemento deste planeta totalmente incapaz de qualquer harmonia com a natureza, muito contra a tão apregoada relação com a natureza por Ralph Waldo Emerson e a pseudo-experiência naturalista de Henry David Thoreau. Porque toda a experiência de inverno passada, à força e com enorme sofrimento individual, nas montanhas não é ali colocada porque Williams quisesse castigar aqueles homens por aquelas mortes. Do mesmo modo o que acontece depois ao carregamento, por força da natureza do rio, não é castigo, mas também não é acaso. Williams está claramente obcecado pela relação humano-natureza, e pelo modo como o humano é uma variável perturbadora. Repare-se no que acontece quando chegam à cidade e tudo se alterou. Reparem como a natureza, as peles, todo o seu impacto brutal pela dizimação dos animais, é engolida como mero fétiche económico. O homem ignora e despreza totalmente a natureza, vive apenas em função de si, do seu próprio proveito.
Como se não bastasse, junta-se a esta crítica dura e certeira, a escrita elaborada de Williams, logo desde o primeiro capítulo podemos deslumbrar-nos com o modo como ele trabalha a descrição, tornando-a ação e história.  Veja-se no exemplo seguinte como a descrição ganha corpo, movimento e som, e como toda esta capacidade técnica vai evoluindo e servindo na criação de cenário que submerge totalmente o nosso imaginário.
"À medida que se aproximavam da vila, a estrada tornava-se plana e a carruagem avançava com maior rapidez, oscilando levemente de um lado para outro, de forma que o jovem pôde aliviar a pressão com que se agarrava ao montante de madeira e deixar-se descair mais descontraidamente para diante no banco rijo. O toque-toque das patas das mulas tornou-se mais regular e abafado; à volta da carruagem ergueu-se uma nuvem de fumo amarelo, que se encapelou à sua retaguarda."

Se depois disto tiverem curiosidade em saber mais sobre John Williams, aconselho a leitura da recente entrevista com sua esposa pela Paris Review, "Mrs. Stoner Speaks: An Interview with Nancy Gardner Williams".

novembro 12, 2019

O Diabo, Pôncio e o Gato

Adoro clássicos russos, são um dos marcos do estado corrente civilizacional, responsáveis não apenas pelo avanço da arte mas também por vários avanços societais pelo modo como os seus autores foram expondo e criticando a sociedade e seus avanços. Bulgakov não pertence à primeira geração, séc. XIX — Tolstói, Dostoiévski, Pushkin, Turgueniev, Tchékov, Gogol — mas antes a uma segunda, séc. XX — junto com Nabokov ou Soljenítsin — marcada pela ditadura soviética. Se Nabokov optou por virar as costas à Rússia, outros como Bulgakov e Soljenítsin nunca desistiram de tentar fazer-se ouvir dentro do seu próprio país. Bulgakov não foi perseguido, nem preso como Soljenítsin, teve a sorte de cair na graça do ditador que lhe permitiu sobreviver com um mero emprego de assistente num teatro da capital, contudo raramente viu aprovadas as suas obras pela censura do estado, e passou os últimos anos de vida sem nada publicar, relegando esse trabalho à sua mulher, que viria a acontecer apenas duas décadas depois da sua morte. “A Margarita e o Mestre” (1967) é uma espécie de viagem ao mundo de um criador impedido de criar, é uma espécie de portal para uma realidade alternativa criada pela mente de alguém a quem foi dito que tinha de se manter calado. O livro ganha assim, desde logo, uma aura tremenda, impossível de classificar, porque não é mero livro, mas antes documento, um legado expressivo que nos explica como vive um ser sensível e criativo num mundo em que não é livre de externalizar as suas ideias.

O trio louco, protagonistas do “A Margarita e o Mestre”

A história é simples, apesar do enredo duplo — o Diabo chega a Moscovo e desencadeia uma série de eventos loucos, enquanto noutro tempo, Pôncio Pilatos enfrenta o encontro e a crucificação de Jesus. Os personagens oferecem-se imediatamente às mais mirabolantes interpretações dada a sua força simbólica. Contudo, do que me foi dado a ler, e da minha experiência de leitura, a importância da obra assenta mais no contraste entre o deslumbrante mundo criativo do romance e o desmoralizante mundo cinzento da realidade soviética da época. O mundo criativo é trabalhado por meio da sátira, que é um género que pouco me cativa. Ainda assim posso dizer que a primeira parte é deliciosa, dado que o non sense surge como a resposta mais aceitável à insanidade do regime político de Estaline. Os problemas para mim surgem na segunda-parte, porque esperava que o non sense fosse dando lugar a cada vez mais sentido, mas tal nunca chega a acontecer. O livro é non sense do início ao final. Bulgakov dá rédea livre à criatividade, divaga e deambula sem fim. Pode-se ler, ou interpretar, aqui e ali, partes conectadas com a sua realidade, com o tratamento dado pelos colegas de profissão, pelo estado, pela sociedade russa, mas dificilmente se pode dizer que Bulgakov estava interessado na crítica contundente ou na produção de ataques contra os opressores da liberdade. Talvez Bulgakov tenha optado por limar excessivamente o seu trabalho, realizando auto-censura, mas não creio, dado o imenso non sense que prospera ao longo de toda a obra.

Um bom resumo visual do livro feito pelo TED.Ed

Se aqui e ali se lê que o Diabo seria Estaline, tal não tem qualquer sustentabilidade, e em parte esse foi um dos meus erros na experiência de leitura, o tentar ler ou forçar a identificação de significados. Por isso no final senti um certo amargar da experiência, porque não consegui chegar a uma chave descodificadora do universo apresentado. E não adianta ler muito mais à volta da obra na sua senda, porque essa chave não existe. “A Margarita e o Mestre” mais do que uma sátira, é um universo de fantasia e acima de tudo o resultado de um processo de externalização da força de uma imaginação oprimida.

novembro 09, 2019

Tatuagem e auto-estima

A tatuagem é hoje algo bastante comum, não só pelo aumento do número de artistas e criadores que tornaram o acesso à prática mais fácil, mas também porque a própria sociedade passou a aceitar melhor a tatuagem. Aquilo que antes era um estereótipo de decadência hoje é uma marca de individualidade e status social. Contudo os trabalhos de tatuagem que agora aqui partilho — de cobertura de cicatrizes — vão muito além da afirmação do indivíduo, elas podem ser vistas como verdadeiros transformadores identitários.
Alguém que sofreu na pele, ou nasceu, com uma alteração que transfigura a sua imagem, por muito que trabalhe a auto-estima, aprenda a desvalorizar a aparência, tem sempre, ao longo da vida, de passar por momentos nos quais é posta a prova. Para alguns com mais, para outros com menos intensidade, praticamente todos acabam sofrendo na "pele" a depreciação do seu corpo, o que produz forte impacto na auto-estima.
Esta "nova" abordagem à tatuagem, como forma de transformação visual de cicatrizes, é no fundo  uma forma de ressignificação efetiva das formas deterioradas da pele. Não se trata de mero embelezar, ou tornar "artístico" um "defeito", mas é antes um processo de alteração da essência simbólica de algo que antes era simplesmente negativo, pelo simples facto de mostrar uma deterioração, em algo positivo pelo que oferece de novo à interpretação. Existem casos em que praticamente se esconde, mas noutros as cicatrizes ganham novas leituras, podendo quase dizer-se que oferecem a essas pessoas segundas oportunidades.






novembro 07, 2019

Processos cognitivos por detrás da Montagem

A montagem é o elemento definidor da arte cinematográfica, aquele que singulariza a sua estética, a sua capacidade de produzir mensagem de forma única. Neste sentido, tem sido uma área bastante estudada, diga-se que mais fora da academia do que nesta, exatamente pela dificuldade que temos tido em parametrizar algo que é profundamente artístico, ou seja, dependente de opções pessoais expressivas e não de métricas facilmente quantificáveis. Este trabalho da Karen Pearlman, uma académica com experiência profissional no cinema, pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna, adicionando novo conhecimento ao conjunto de convenções que respondem pelas necessidades fundamentais da edição, indo além da mera continuidade espaço-tempo.


O trabalho mais citado no campo da montagem continua a ser o livro de Walter Murch — "In the Blink of an Eye" (1995) — um montador reconhecido, especialmente pelo trabalho em “Apocalypse Now” (1979) com uma visão completamente assente no artesanato da arte, sem qualquer arcaboiço metodológico que pudesse suportar um maior aprofundamento do conhecimento da arte. Depois temos outros autores como Ken Dancyger ou Valerie Orpen, e até mesmo Bordwell, mas nenhum conseguiu ir tão longe como o trabalho que Pearlman nos apresenta e que pode ser conhecido de forma muito rápida através deste pequeno vídeo:  "Why Does an Edit Feel Right? (According to Science)" (2019).

Why Does an Edit Feel Right? (According to Science), 2019

Neste vídeo Pearlman socorre-se do trabalho de Vittorio Gallese — sobre os neurónios espelho [1] — e Tim J. Smith — estudos de eye-tracking em cinema [2] — para desmontar o que acontece durante o processo de visionamento de um filme e, assim, chegar aos modos como a montagem contribui para a construção de engajamento. Pearlman dá conta dos processos de simulação corpórea [3] realizados por nós, dizendo que o “film’s rhythm synchronizes the body, influencing the spectator’s physical and cognitive fluctuations to follow its own” [4], algo que vai muito para além da questão da continuidade. No exemplo apresentado de Blade Runner, com Harrison Ford e a coruja, temos um corte que só faz sentido por via do movimento corporal, pois é antitético no que toca a continuidade. A partir da desconstrução dessa sequência, Pearlman apresenta então o conjunto de hipóteses resultantes da expressividade da montagem:
#1 Movement Phrase
#2 Kinesthetic empathy
#3 Subtext
Para quem tiver ficado interessado no assunto e quiser aprofundar mais, sem ir diretamente ao seu livro “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing” (2016), recomendo a leitura do artigo de Pearlman de 2017, "Editing and Cognition Beyond Continuity" publicado na Projections.


Referências
[1] “Embodying Movies: Embodied Simulation and Film Studies” Gallese, 2012
[2] “The Attentional Theory of Cinematic Continuity”, Tim J. Smith, 2012
[3] "Hipótese da Simulação Corpórea", VI, 2014
[4] “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing”,  Karen Pearlman, 2016