Há bastante tempo que desejava ler algo sobre a guerra civil na Síria. Ao longo da última década vimos refugiados chegarem à Europa, alguns deles por meios de grande perigosidade — atravessando o Mediterrâneo em barcas de madeira —, daí a curiosidade natural de saber como se chega a este estado — o de colocar em perigo a vida dos próprios filhos. Passados 10 anos sobre a guerra, a escolha de obras é grande, desde trabalhos académicos de fundo que explicam o conflito desde a génese do próprio país, a romances históricos a puxar à lágrima, existe de tudo um pouco. A obra de Wendy Pearlman, “We Crossed a Bridge and It Trembled: Voices from Syria” (2017), surgiu-me em váriaslistas na rede, tendo folheado várias, senti que era por aqui que queria aproximar-me do conflito. Contudo, se estranhei a falta de traduções, está apenas editada em inglês e turco, mais ainda me incomodou quando acabei de ler, dado o relevo da experiência sentida em toda a sua leitura. Pearlman criou uma obra intemporal, que não fala apenas da Síria, mas do ser humano, da sua fragilidade e relação com o território, por meio da experiência direta de quem viveu naquele lugar, em cada um dos momentos relatados. Nesse sentido, é uma obra obrigatória para quem quer perceber melhor o que aconteceu na Síria, mas também para quem desejar entrar um pouco mais adentro nas complexidades da relação entre a vivência e violência humanas e a construção civilizacional.
A versão em audiolivro é ainda mais intensa, dado o bom trabalho de dramatização de vozes.
Um dos jogos que ficará deste ano será sem dúvida “Bury me, My Love” (2017) de Florent Maurin do estúdio francês The Pixel Hunt, que já nos tinha dado o interessantíssimo jogo de gestão de crises de comunicação. É apenas uma ficção interativa baseada em mensagens, com meia-dúzia de ilustrações, no entanto com tão pouco consegue fazer muito, consegue dar a sentir, em parte, o que sentem os refugiados sírios que partem para a Europa e os seus familiares que ficam a vê-los partir. O título é baseado num ditado popular árabe, usado por quem parte, para frisar “Nem penses em morrer antes de mim”. Como referência da jogabilidade temos "Lifeline" (2016), um dos jogos sensação do ano passado.
No campo da ideia e conceito, o autor realizou um extenso e interessantíssimo post-mortem que aconselho a ler depois de jogarem. Interessou-me particularmente a inspiração para o jogo que adveio por meio de um artigo no Le Monde “Le voyage d’une migrante syrienne à travers son fil WhatsApp" que usa uma abordagem na apresentação da informação muito próxima daquilo que viria a ser o jogo. Nesse sentido, Maurin refere mesmo que recorreu depois à jornalista para encontrar pessoas reais que tivessem passado pela situação, no sentido de desenvolver um guião o mais credível possível.
"Bury me, My Love" conta a história de Nour, durante a sua fuga da Síria para a Europa, colocando-nos no lugar de Majd, o seu namorado, que fica na Síria e vai comunicando com ela por SMS.
Relativamente ao desenho de mecânicas e experiência, apesar de ser ficção interativa, Maurin não se limitou a criar uma linha de diálogo com pontos de morte ou desistência, foi desenvolvida toda uma estrutura lógica de suporte ao jogo assente em quatro grandes variáveis: Moral, Relacionamento, Orçamento e Inventário. Desta forma, cada nova vez que jogamos, ou reiniciamos o jogo, podemos passar por eventos diferentes, mas mais importante é sentirmos o evoluir da nossa relação em função das nossas escolhas, o que contribui para nos aproximar do casal, tanto de Majd como de Nour. Sobre tudo isto, o jogo (se jogado no modo normal) condiciona a jogabilidade a tempo real, ou seja, vamos interagindo com Nour à medida que ela vai progredindo no terreno, o que pode levar horas ou dias.
No campo da narrativa, consegue conduzir-nos a estabelecer uma ligação com as personagens, enfatizada pelas nossas escolhas interativas que nos vão fazendo compreender melhor quem são aqueles personagens, e porque fazem aquilo que fazem. O mais relevante de tudo para mim, acabou por ser a proximidade que se desenvolve, obrigando-nos a "abrir os olhos" e a sentir aqueles refugiados como nós mesmos, porque apesar de virem de outro continente, pouco ou nada diferem de nós, partilhando culturas tão pouco diferentes das europeias. O jogo acaba assim por funcionar como um excelente medium na comunicação das diferenças mas acima de tudo das semelhanças, fazendo mais pela compreensão dos refugiados do que muito do jornalismo que vimos ao longo destes últimos anos.
A Marvel e a ABC News juntaram-se para criar a banda desenhada online “Madaya Mom” (2016), a partir de uma mãe real e do seu diário, escrito por meio de SMS partilhados com Rym Momtaz, produtora da ABC, que por sua vez contactou o artista croata, Dalibor Talajic, para juntos criarem a novela gráfica. O trabalho final é absolutamente brutal, autêntico e doloroso, toda a empatia aqui criada deixa-nos sem margem para continuar a olhar para o lado, e se alguém ainda tinha dúvidas de que é preciso parar o que está a acontecer na Síria, fica aqui mais uma chamada de atenção profundamente humana.
Arte e jornalismo para chegar ao sentir das pessoas
“Madaya Mom” é a demonstração do poder da banda desenhada para comunicar, para ser literatura, para elevar a expressividade e tocar as pessoas no seu íntimo mais retraído. É autêntico horror psicológico o que aqui vemos, mas não é de fantasia, é sofrimento de uma família com 5 crianças reais, que passou do dia para a noite, de condições de vida do século XXI para condições de vida pré-históricas, sem acesso a comida, saúde, electricidade, nem aquecimento. Dá vontade de chorar e gritar no virar de cada página...
Não quero dizer mais nada, o trabalho é absolutamente sublime, e atinge todos os objetivos dos autores, que podem perceber melhor vendo o vídeo do making of. Para os professores que queiram usar este belíssimo trabalho nas suas aulas, a ABC disponibiliza ainda todo um Guia para o Professor. Esta não é a primeira banda desenhada sobre o conflito na Síria, já antes aqui tinha trazido “Syria's Climate Conflict" (2014).
Atualização: 17.10.2016 19:43
Vi esta notícia no Arts.Mic, entretanto depois de ter publicado percebi que o Público também tinha feito matéria hoje com o tema, e por acaso fiquei bastante bem. Ficam as referências.
Trago um trabalho em banda desenhada, "Syria's Climate Conflict" (2014) que procura dar conta da origem dos conflitos na Síria a partir de uma perspectiva completamente distinta. Os conflitos na Síria têm alguns anos, e à primeira vista parecem ter emergido como efeito de contágio da Primavera Árabe, levantamentos populares iniciados na Tunísia e Egipto em 2011 que se alastraram a vários países do Norte de África e Médio Oriente. Outro elemento que surge como potencial motor do conflito, são as redes terroristas e os efeitos do ataque dos EUA ao Iraque e Afeganistão em 2001, que em vez de selar o problema terá contribuído ainda mais para tornar toda aquela região ainda mais instável.
O trabalho realizado pela jornalista Audrey Quinn e pela ilustradora Jackie Roche (do belíssimo "Underemployed") aponta num sentido completamente distinto, indo à causa inicial do despoletar dos problemas na Síria. É verdade que estamos tão cientes das versões explicativas acima enunciadas, que esta que aqui se apresenta à primeira vista mais parece uma desculpa, ou uma tentativa de limpar a imagem de alguma coisa. Talvez porque seja mais fácil ter rostos para culpar, porque procuramos explicações que possamos controlar. Mas aquilo que nos é aqui relatado não só faz muito sentido, como explica muitos dos problemas de toda aquela região.
Os problemas do Médio Oriente e Norte de África não são originados apenas pelas mudanças climáticas, embora também, mas fazem parte da própria região, tornando-a difícil de habitar, mais ainda de criar qualidade de vida que suporte o exponencial aumento populacional do último século. A geografia foi e continua a ser fundamental no suporte da vida humana à face do planeta, não aceitar isso faz parte da nossa incapacidade para nos resignarmos, por outro lado, compreender isso poderia servir para alterarmos todo um estado de coisas, não apenas dos regimes políticos e das populações, mas também da forma como aqueles que vivem em geografias privilegiadas, como é o caso da Europa. Para compreender o impacto da geografia sobre a resiliência da espécie humana, aconselho vivamente a leitura de "Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies" (1997) de Jared Diamond.