Tenho notado um cada vez maior uso do logro narrativo, que se qualifica por um tipo de entretenimento altamente manipulativo, criado pelos contadores de histórias contemporâneas, talvez com maior incidência no domínio da ficção científica e do thriller. Cria-se todo um mundo-história altamente credível, no qual se apresenta uma premissa extremamente instigante que serve para manter os recetores completamente engajados, mas no final nada há para entregar. Ou seja, passam-se as páginas, passam-se os episódios, e a trama vai rodando sobre si, criando a ideia de que a saída está ao virar da esquina, mas o ciclo está fechado porque os criadores não sabem como sair dele.
O mais recente exemplo aconteceu-me com "Autoridade", o segundo livro da série "Aniquilação" de Vandermeer. No primeiro tomo não são dadas respostas, mas a trama evolui, ficamos a saber muito mais sobre o quê e o quem. No segundo livro, começamos muito bem, rente à análise que está a ser feita às pessoas que voltaram da última expedição, mas assim como começa, assim continua e assim acaba, sem dali sairmos. Vandermeer escreve como se tudo fosse muito importante, como se cada personagem, cada espaço, cada detalhe fosse oferecer explicações, respostas, avanços, mas nada, nada serve nada. Sentimos Vandermeer a escrever linhas atrás de linhas, abrindo ruas e avenidas, para mostrar coisas que não são relevantes para o que se pretende efetivamente descobrir, conseguindo assim encher páginas e páginas sem nunca ter de chegar a vias de facto. No final, dá um salto com o personagem, literalmente, e com isso abre o desejo para a leitura do terceiro livro, mas convenhamos que só com muita ingenuidade acreditaríamos que ele teria verdadeiramente algo para oferecer depois de nos ter enrolado um livro inteiro e oferecido uma mão cheia de nada.
Tinha sentido exatamente isto na segunda temporada do brilhante “The Leftovers”, assim como no sucessor do impressionante "Dark Matter" de Blake Crouch, “Recursion” (2019), que seguem o exemplo mais emblemático deste logro, o inesquecível “Lost”. Aliás, este é um assunto que já aqui tinha discutido a propósito do livro “The Lost Symbol” (2010) de Dan Brown, mas na altura peguei no mesmo por outra perspetiva, a do “objeto último” ou “inatingível”, e que define bem o mecanismo através do qual os criadores produzem o logro.
Em suma, todos estes criadores têm de apresentar trabalho. Precisam de produzir para ganhar a vida, e por isso debitar linhas, páginas, horas de televisão e de jogo é essencial. Não interessa sobre o quê, desde que os leitores e espetadores se mantenham fiéis e continuem a pagar. Só isso interessa. No fundo, estamos a falar de conteúdo literário e audiovisual enlatado, produzido em linhas de montagem, para cumprir a função de mero apaziguamento psicológico dos recetores, ou melhor, de adormecimento das suas funções cognitivas, fazendo-os esquecer mais um pedaço de tempo em que estiveram vivos. Nunca como agora tivemos tantas séries, tantas partes — 2, 3.. 6, 7 —e temporadas sem fim, e por isso nunca como agora tivemos tanta produção criada apenas porque é preciso criar, é preciso manter a máquina a funcionar. Esquece-se aqui a essência do processo criativo: liberdade para transcender não para entorpecer.