dezembro 31, 2021

Quando Deixamos de Entender ou o Terrível Verdor

"When We Cease to Understand the World" (2020) começa como um normal livro de divulgação de ciência — química, física e matemática —, mas imensamente estimulante, apresentando muitos factos excêntricos e pouco conhecidos. À medida que se avança vamos sentindo que o descritivo do mundo científico se vai deixando contaminar pelo narrativo da ficção criada pelo autor como modo de intensificação daquilo que parece querer dizer-nos. Depois, no epílogo, somos brindados com uma pequena história que de tão realista, ainda que mantendo a excentricidade, se lê como metáfora de tudo o que foi apresentado antes, deixando-nos com uma forte ideia filosófica sobre o sentido da espécie. Labatut agradece no final a vários autores, de entre os quais W. G. Sebald, mas não seria preciso, esta é uma obra totalmente sebaldiana, pelo modo como fusiona ficção com não-ficção.

Edição da New York Review Books de 2021

dezembro 27, 2021

Porque nos Sentimos Inquietos (2021)

Adorei a discussão em redor das perspectivas sobre o contentamento humano de quatro grandes — Montaigne, Pascal, Rousseau e Tocqueville — apresentada em "Why We Are Restless: On the Modern Quest for Contentment" (2021) por Benjamin Storey e Jenna Silbur Storey. Ainda que sejam apresentados como promotores originais das ideias apresentadas e não o sejam. Desde logo porque a proposta de Montaigne, o "contentamento imanente" estava já presente em Epicuro via Lucrécio. Assim como Pascal não oferece nada que as religiões não tenham oferecido antes. Depois Rousseau dá conta da ineficácia da proposta de Montaigne a nível individual, e Tocqueville da ineficácia a nível de uma nação (EUA). Mas tudo isto faz parte de um ciclo que se repete — experiência vs. transcendência — podendo nós continuar opondo Tocqueville a Espinosa ou Nietzsche, para no final perceber que estamos ainda junto à discussão original e dualista que opôs Platão a Aristóteles.

A narração do audiobook é bastante apropriada às ideias discutidas no livro.

dezembro 25, 2021

Milkman (2018)

"Milkman" é brilhante, mas não se oferece a todos do mesmo modo. Facilmente podemos encontrar quem deteste, como acontece com o crítico do NYT, ou quem adore e lhe ofereça o Booker 2018. Na generalidade fala-se de um livro de difícil leitura, mas ser um livro que exige uma leitura mais lenta e atenta não tem nada que ver com ser difícil. Mais, comparando com outros fluxos de consciência, Joyce ou Woolf, é imensamente acessível, muito mais na linha de um bem-humorado Tristram Shandy. Mas se a escrita impressiona, é o ponto-de-vista interior, como se estivéssemos literalmente dentro da cabeça de uma adolescente de 18 anos que enfrenta um mundo feito de conflitos numa Irlanda nos anos 1970, que acaba a marcar-nos.

O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021)

Foi o primeiro livro que li de Teolinda Gersão e fiquei imensamente agradado pela competência da sua escrita. Elaborada, descritiva mas imaginativa. Quanto a este livro em concreto, não é um livro, mas um conto que foi expandido por via de duas cartas que o precedem e ajudam a introduzir e caracterizar o universo do conto. Quanto ao conto, é belo, apesar da sua tendência excessivamente descritiva, os laivos de realismo mágico elevam o historicismo biográfico a novela e criam uma experiência que termina com intensidade psicológica.

dezembro 24, 2021

Imperium de Robert Harris

“Imperium” (2006) é uma obra de ficção histórica com capacidade para nos envolver nas tramas da época, entretendo-nos enquanto vamos aprendendo sobre a época, neste caso o século I a.C. na Roma Antiga. Robert Harris escolheu como personagem principal Marco Túlio Cícero, o grande orador, mas principalmente o senador romano que mais escritos nos deixou e que perduraram até aos nossos dias. São esses escritos que permitem aos historiadores ter um acesso privilegiado a uma época já com 2000 anos, assim como aos romancistas aceder a matéria direta para o seu trabalho de recriação. Harris nada arrisca na forma, limita-se a descrever a ação, situando no espaço-tempo e gerindo conflitos conhecidos da história, criando suspense que nos faz virar páginas, que nos levam a descobrir os porquês, usando alguns comportamentos sociais como adereços, mas deixando praticamente de fora os mundos interiores de cada personagem.

Efeitos positivos da Disney na percepção das crianças do género e corpo

Num estudo longitudinal (Coyne et al, 2021), feito ao longo de 5 anos, com crianças (meninas e meninos) em idade pré-escolar, verificou-se que as crianças que mais se envolviam com a cultura das princesas Disney (Cinderela, Bela Adormecida ou Branca de Neve) demonstravam, passados 5 anos: atitudes mais igualitárias sobre os papéis de género; menor adesão a normas hiper-masculinas; e melhor estima corporal. Ao contrário da mera interpretação estética, ou seja, feita analisando as obras a partir do olhar do investigador, e que se tornam populares por darem conta de desvios comportamentais anti-progressismo, estes estudos estão focados nas crianças, mas não apenas num dado momento, analisam os impactos efetivos no crescimento à passagem do tempo, nomeadamente na passagem de criança a pré-adolescente.

dezembro 18, 2021

Viajar no tempo para salvar Sócrates

A premissa era super-interessante — viajar no tempo para evitar a morte de Sócrates — mas a execução acabou ficando abaixo das expectativas. Esperava mais discussão filosófica, apesar de ter lido que para alguns tem demais. Esperava uma explicação mais forte para alguém se lançar na senda de fazer Sócrates mudar de ideias. Esperava congruência narrativa, apesar dos necessários saltos temporais das viagens no tempo. Mas talvez o maior problema tenha acontecido com o facto de pela primeira vez ter sido incapaz de suspender a minha descrença quanto às viagens no tempo. Passei grande parte do livro a teorizar sobre a razão porque não é possível, muito influenciado pela teorização sobre o tempo de Carlo Rovelli.

dezembro 11, 2021

Ruído no processo de decisão

Daniel Kahneman tem 87 anos, e o seu leegado está construído, tendo-lhe sido reconhecido o mesmo com o Nobel pela criação de uma área inteira: a economia comportamental. Neste livro, Kahneman apresenta-se com outros dois autores, Olivier Sibony quase desconhecido, e Cass R. Sunstein, reconhecido pela sua hiperatividade, com mais de 30 livros publicados, só em 2021 já vai com 3, mas também conhecido pela sua crença numa sociedade governada por algoritmos. Os autores dedicam-se à apresentação de uma nova variável de viés, ou melhor, uma nova designação para uma especificidade de viés, o ruído. Para os autores o "ruído é a variabilidade indesejável de juízos". Ou seja, é a variabilidade que acontece numa mesma decisão quando tomada por pessoas diferentes. O clássico exemplo é o dos juízes que podem atribuir uma sentença de 11 meses a 11 anos, em função do juiz que decide, podendo este ser influenciada pela hora do dia, pela vitória de uma equipa de futebol, e uma miríade de outros fatores, no momento da sua decisão.

dezembro 08, 2021

"Bewilderment" (2021) de Richard Powers

Uma leitura comovente sobre um mundo humanamente íntimo e abundante em ciência. A história acontece num futuro próximo raiado pelos problemas da atualidade — aquecimento global, pandemia, polarização política e ativismo —, visto a partir dos olhos de uma criança de 9 anos, diagnosticada distintamente em função de cada médico — com autismo, OCD ou ADHD —, que perdeu recentemente a mãe e tem de enfrentar o mundo tendo como único amigo o pai que é astrobiólogo e se dedica à modelação de simulações de possíveis formas de vida em exoplanetas. Um dos melhores livros de 2021.

dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

novembro 28, 2021

Universo sem sentimento

Perder o marido, ficando viúva com dois filhos, é uma experiência trágica com claros efeitos pós-traumáticos, mas usando a abordagem que a autora tanto gosta, a estatística, não é uma experiência nada incomum, nem agora, nem em toda a história da nossa espécie. Por outro lado, ser-se uma cientista de topo, premiada com uma bolsa MacArthur, a chamada "Bolsa dos Génios" no domínio da busca de inteligência fora da Terra, ou surgindo na capa da New York Times Magazine, com o título: "A Mulher Que Pode Encontrar-nos Outra Terra", é algo muito pouco comum, reservado a um número muito restrito de pessoas. Neste sentido, juntar as duas coisas poderia ter funcionado, poderia ter sido um memoir distinto. O problema acontece quando de frente batem e chocam espetacularmente a emocionalidade e as relações humanas de uma família com a racionalidade e abstração do mundo das ciências exatas. Ou seja, Sara Seager é uma cientista brilhante e com certeza teria sido muito interessante ouvi-la falar do seu trabalho e das complexidades da sua ciência, mas ouvi-la expor enormes incongruências de ser esposa e mãe, não tendo sequer noção destas é doloroso. Se no final nos diz que descobriu, apenas quase aos 50, que  era autista, a verdade é que não usou o livro, em parte alguma, para apresentar qualquer visão crítica das peculiaridades do seu comportamento. O seu discurso auto-centrado manteve-se igual, Seager é exatamente a mesma pessoa no final e no início do livro, nada mudou, e nesse sentido pergunta-se qual o interesse de um livro que não tem nada para dizer. Deixo alguns excerto de suporte a esta minha crítica:

novembro 27, 2021

"Encruzilhadas" (2021)

"Encruzilhadas" de Jonathan Franzen surge seis anos após o seu último romance, e só por isso torna-se imediatamente digno da nossa atenção e interesse. Tenho muita dificuldade em seguir autores — literatura ou cinema — que lançam obras novas todos os anos, não por não conseguir acompanhar, mas porque não acredito que alguém tenha algo de novo, com substância, para dizer todos os anos. O real requer contemplação, indagação, questionamento e maturação. Escrever por escrever, produzir texto, pode servir para distrair os leitores, mas dificilmente oferece mais do que isso. Nesse campo concreto, "Encruzilhadas" não desilude, e mostra Franzen ao seu melhor nível.

novembro 22, 2021

Divertindo-nos até à Morte

"Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business" é um livro de 1985, considerado um clássico dos estudos dos média, tendo servido para elevar Neil Postman ao nível de McLuhan, ambos visionários e profetas dos média. Por esse lado, tendo a concordar, a abordagem é próxima, ainda que Postman seja mais organizado e regrado, ambos tendem para uma escrita que tem mais de épico e menos de académico. Mas se a capacidade de criar boas metáforas é importante, porque ajuda à compreensão do complexo por um maior número de pessoas, não é condição suficiente de análise e criação de conhecimento. Por isso, não admira que os legados maiores de ambos sejam os títulos dos seus livros.

novembro 20, 2021

Flores para Algernon

"Flowers for Algernon" é um clássico consagrado da FC, escrito por Daniel Keyes em 1966, a partir de um conto seu escrito em 1959. As questões centrais são excelentes: tanto no domínio da medicina — cirurgias de otimização das funções cognitivas — para as quais ainda não temos respostas; como no domínio dos seus efeitos no campo psicologia social — o impacto do QI na relação dos indivíduos com a sociedade. Mas se as questões científicas são trabalhadas a um nível elevado, a narrativa fica bastante aquém, diga-se que seguindo a tradição de muita FC dos anos 1950. Por exemplo, apesar de entrarem vários outros personagens, nomeadamente pais e irmã, todos parecem estar ali meramente como adereços no suporte ao protagonista, tornando tudo menos real e menos humano. De qualquer forma, é um livro pequeno, que se lê muito rapidamente e que nos provoca a reflexão.

novembro 14, 2021

Céu e Inferno, por Bart D. Ehrman

A leitura de “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (2020) fez-me perceber que o Céu e o Inferno não é fábula, ou histórias, é jogo, mecânicas básicas de recompensa e punição. Como tal, percebi que o fundamento da discussão do além-vida prende-se menos com uma significação e mais com uma quantificação. Ao longo dos séculos, a definição do além-vida foi pouco além da proposta de uma linearidade com dois polos, o alto e o baixo, em que quanto mais alto melhor. É irrelevante o significado, uma vez que o ponto atingido é para todo o sempre, tornando-se assim apenas importante a quantidade de sofrimento ou contentamento obtida.

novembro 13, 2021

Teatro filmado romeno

"O Segredo da Felicidade" (2018), de Vlad Zamfirescu, é teatro filmado no seu melhor, ao nível de "Carnage" de Polanski ou "Who's Afraid of Virginia Woolf?" de Mike Nichols, não tanto na cinematografia, mas no guião que é soberbo. Dois amigos e a esposa de um deles, com a esposa do outro fora do quadro por se encontrar em casa a dormir. Todos convocados para discutir uma hipótese de swing após a traição de um dos pares. Começa tudo de forma muito leve, quase irrelevante, e vai crescendo, cada vez prendendo mais a nossa atenção até às distintas revelações que deixam de impactar os envolvidos para abalar tudo aquilo que pensávamos já ter compreendido. No final, ficamos ali a olhar para aquele magnífico balcão-pátio de um grande prédio de luxo, a pensar nos tais segredos da felicidade.


novembro 12, 2021

200 anos de Dostoiévski

Ontem foi o dia do aniversário dos 200 anos de Fiódor Dostoiévski que nasceu a 11 novembro de 1821, e por isso queria ler algo dele que ainda não tivesse lido, mas algo curto. Acabei por encontrar o que queria no Goodreads através da Sara, que partilhou a leitura de um conto que desconhecia, este "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877). Li as primeiras páginas e senti-me atirado para “Memórias do Subterrâneo” (1864) sentindo uma imediata vontade de ler todas aquelas palavras, como se o autor ainda estive entre nós. E no entanto, todo o conto acaba discutindo isso mesmo, o estar no meio de nós, como e porquê, questionando quem determina até quando. 

Desenho de Joseph Charlemagne, ao qual adicionei o nome e datas.

novembro 07, 2021

As histórias podem ser tão ou mais importantes

"Uma Ofuscante Ausência de Luz" (2001) é um livro do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, baseado no testemunho de um sobrevivente da prisão de Tazmamart, uma prisão secreta marroquina construída no meio do deserto, exclusiva para presos políticos, dotada de condições particularmente extremas. Os presos eram mantidos em celas subterrâneas, com menos de um metro e meio de altura, 24/24, podendo passar anos completos sem nunca ver qualquer luz. O testemunho usado por Jelloun é de um prisioneiro que ali sobreviveu por 18 anos, de 1973 a 1991. A expectativa que uma história destas gera no leitor é enorme, mas o livro coloca-nos no devido lugar, não nos oferece emoção fácil, faz-nos caminhar os degraus devagar, até ao topo, deixando para o final a compreensão do sentir completo. O livro recebeu o Prémio Literário Internacional de Dublin em 2004. 

novembro 06, 2021

Um Estado Policial Perfeito: Uma Odisseia pela Sinistra Distopia Vigilante da China

"The Perfect Police State: An Undercover Odyssey into China's Terrifying Surveillance Dystopia of the Future" (2021) foi um dos livros mais angustiantes que li nos últimos anos e não foi pelo relato de genocídio, que se pode ler noutras obras sobre povos perseguidos, desde os judeus aos curdos passando por regiões inteiras como os balcãs — Sérvia, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro, Bósnia, — ou o Cáucaso — Arménia, Geórgia, Abecássia, Ossétia do Sul, Chéchenia. O que incomoda particularmente no relato sobre os Uigurs, povo do noroeste da China que faz fronteira com a Turquia, é o facto de ser algo que está a acontecer no momento presente. Mas não só, é algo que está a ser perpetrado por um governo do qual não podemos, como aconteceu com outros, arvorar ideias de distância ou desconhecimento, pois somos seus grandes parceiros comerciais. Desde a eletricidade que nos entra em casa, até ao fabrico de uma larga maioria de produtos que utilizamos no dia-a-dia, dos gadgets eletrónicos aos brinquedos que oferecemos às nossas crianças pelo Natal, a relação da Europa com a China é íntima. No entanto, quando se fala do genocídio que a China e as suas empresas tecnológicas, tais como a Huawei, estão a realizar naquela região, a tendência política, mas também dos nossos povos, tem-se manifestado por uma estrondosa indiferença. Mas tal não acontece por falta de evidências, vários órgãos internacionais, da ONU ao Papa, têm feito menção do problema, existem mesmo demonstrações de que temos obrigação legal de intervir! Contudo, nós, todos os que vivemos boas vidas neste velho continente, à custa da mão-de-obra barata da China, viramos a cara para o lado. Diga-se que não muito diferentemente do que fizemos durante a total aniquilação da cultura nativa das Américas, a que juntámos depois a exploração de escravos, de África, para garantir os níveis de produção de riqueza necessários ao sustento dos nossos luxos. Mas os Uigurs não são um povo do passado, o genocídio brutal que afeta uma população com 11 milhões, dos quais mais de 1 milhão se encontram presos nos mais de 200 campos de concentração, não aconteceu há 500 anos, está a acontecer agora, com relatos que remontam pelo menos a 2017, e a ser feito por alguém com quem nos sentamos à mesa todos os dias. Para não olhar apenas ao lado negativo, fazendo aqui mero auto-flagelo, deixo a nota imensamente positiva da primeira viagem de uma delegação da União Europeia a Taiwan ocorrida esta semana e na qual foi dito, de forma bastante sonora, “Vocês não estão Sozinhos”. Sabendo que Taiwan está na lista como próximo alvo a abater pela China, depois do périplo iniciado em Hong-Kong, esperemos que este seja o início de uma mudança profunda da relação da Europa com a China

outubro 30, 2021

Nação de Dopamina (2021)

Anna Lembke é psiquiatra e diretora da Clínica de Medicina em Dependências da Universidade de Stanford. Uma especialista no vício em ópio, sobre o que escreveu um livro em 2016, "Drug Dealer, MD: How Doctors Were Duped, Patients Got Hooked, and Why It's So Hard to Stop". Neste seu novo livro, "Dopamine Nation: Finding Balance in the Age of Indulgence" (2021), fala-nos do vício em geral, mas dedica-se à discussão do que tem vindo a ser discutido como "vício comportamental", visto por vezes como menos relevante que o vício em substâncias, as chamadas drogas. A abordagem realizada começa pelo próprio título que dá conta de uma nova era que Anna Lembke designa por "idade da indulgência" e que tem conduzido a própria sociedade aceitar desvios comportamentais com vícios como "comida, notícias, jogos de azar, compras, jogos digitais, mensagens de texto, sexting, facebooking, instagramming, youtubing, tweeting" como algo natural. A sua abordagem não é meramente crítica, mas construtiva, procurando essencialmente contribuir para a tomada de consciência do problema, expondo-se a si mesma, e desse modo, ainda que paradoxalmente, tornando a própria leitura do livro quase compulsiva!

outubro 27, 2021

Pátria ou tapeçaria humana

"Pátria" de Fernando Aramburu é um trabalho impressionante, não tanto pelo seu tema, os efeitos da ETA na sociedade Basca, mas mais pela forma escultural oferecida ao texto que consegue transpor um mundo tremendamente fluído e veloz de oralidade e pensamento para o discurso escrito. Para este efeito contribuem duas grandes abordagens: a variação de voz, entre primeira e terceira-pessoa, que acontece a todo e qualquer momento, dando conta da relação entre os pensamentos interior e público dos personagens; e a variação temporal, presente e múltiplos passados, com o discurso a variar no tempo em função de cada personagem, podendo ser 30 ou 5 anos ou meses, obrigando o leitor a ir atrás, contextualizando, mas contribuindo para a ideia de uma tapeçaria humana que se forma a partir de tiras de vidas. Tendo em conta este labor de Aramburu, e tendo eu acedido à versão portuguesa e espanhola, tenho de dizer que em Português se perde muito do seu efeito. 

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

outubro 17, 2021

Abelardo e Heloísa

Pedro Abelardo foi um filósofo francês que ficou conhecido pela tragédia proporcionada a partir do seu romance com a erudita Heloísa de Argenteuil. O seu legado é maior, teve grande impacto na filosofia e teologia da época medieval e influenciou o ensino tendo tido influência no surgimento da própria Universidade enquanto instituição. Ousado e muito à frente do seu tempo, muito deve, segundo ele, ao castigo que lhe foi infligido. O tio de Heloísa, após descobrir o casamento em segredo de ambos, mandou castrá-lo. Como legado pessoal, ficaram as cartas que escreveram um ao outro, numa época posterior e que podemos ler nesta obra. O texto das mesmas é bastante direto, expondo de forma clara o impacto dos acontecimentos sobre a pessoa de cada um deles.

Catalisadores de mudança comportamental

"The Catalyst: How to Change Anyone's Mind" (2020) é o segundo livro de Jonah Berger que leio, longe de ser tão bom como o primeiro — “Contagious: Why Things Catch On” (análise VI) — não deixa de ser imensamente interessante. O livro é pequeno e apresenta um modelo de intervenção persuasiva, por meio do acrónimo REDUCE que resume 5 princípios — "Reactance - Endowment - Distance - Uncertainty - Corroborating Evidence "— que são discutidos, um por capítulo, e suportados com exemplos relevantes, ainda que por vezes acabem roçando o anedótico.

outubro 16, 2021

A vida de Thomas Mann (2021)

"The Magician", publicado no passado dia 7 de setembro, não foi o livro que esperava ler sobre Thomas Mann. A meio senti mesmo uma enorme desilusão, senti falta do que tinha imaginado que este livro seria. Tinha criado expectativas muito concretas. Mas Colm Tóibín surpreendeu-me. A partir desse meio, por via de toda a construção até ali, comecei a sentir cada vez mais Mann e o seu mundo. Continuo a sentir falta daquilo que eram as minhas expectativas, mas tenho de conceder que Tóibín criou uma obra admirável. Mann foi uma pessoa que viveu intensamente, mas interiormente, a ponto de nem a si mesmo (nos seus diários) se revelar. Alguém que passou pela vida, procurando sempre não perturbar nada nem ninguém, porque muito determinado em seguir o seu próprio caminho. Esta forma de estar levanta muitas objeções morais, mais ainda quando passou pela vida, mesmo nos momentos mais terríveis da guerra, com grande conforto. Mas o retrato oferecido por Tóibín é feito sem julgamentos nem endeusamentos, e talvez por isso mesmo, capaz de nos aproximar do que terá sido conviver com Mann.

outubro 09, 2021

O Mapa do Conhecimento

Adorei a viagem proporcionada pelo livro "The Map of Knowledge" de Violet Moller. A obra pode não ser perfeita, podem existir problemas e erros, mas tendo em conta o que se pretendia, uma visão geral sobre a travessia do conhecimento durante a Idade Média, e não uma discussão sobre a veracidade histórica ou importância dos conceitos e teorias, a obra é muito conseguida. A sua leitura oferece-nos um enquadramento do registo e movimento do conhecimento ao longo de mais de 1000 anos, ajudando a compreender melhor certos lugares, os seus rituais e os seus personagens. Para além disso, no final, emerge algo ainda mais importante, o modo particular como se cria ciência, as suas necessidades e condições para o florescimento.

outubro 05, 2021

"Mil Cérebros" (2021), sem Emoção

"A Thousand Brains: A New Theory of Intelligence" (2021), tinha tudo para ser um grande livro, acaba por ser mera montra de ideias, e algumas delas com sérias deficiências. Apesar disso, a teorização proposta por Jeff Hawkins é interessantíssima, só requer que se leia com uma boa bagagem sobre o cérebro, consciência e emoção por forma a garantir suficientes competências ao pensamento crítico necessário à leitura. Aliás, essa mesma bagagem acaba por se revelar em falta em Hawkins o que responde por alguns dos problemas da sua discussão. Hawkins é uma pessoa peculiar, foi capaz de fundar a Palm em 1992 e criar o antecessor do smartphone, mas ao mesmo tempo nunca conseguiu integrar-se na academia, justificando que esta nunca foi capaz de compreender a sua visão. Mais recentemente fundou a sua própria empresa de neurociências e IA, a Numenta.

outubro 02, 2021

A Emoção que justifica a Leitura

"The Emotional Craft of Fiction” (2016) de Donald Maas é um livro curto, mas que procura ser incisivo, conseguindo-o na medida do que é possível quando falamos de arte, no caso literatura. Ou seja, Maas olha para o trabalho do escritor, para as suas ferramentas, e para o modo como as obras chegam aos leitores, em termos emocionais, e procura traçar um conjunto de ideias, princípios, que ajudem quem se interessa pela criação de emoção estética. Diria que o central do livro é desvelado no primeiro terço, ficando o restante demasiado colado a exemplos que se vão tornando de algum modo repetitivos. Dito isto, é um livro pelo qual vale a pena passar os olhos.

setembro 26, 2021

Incas e Europeus: para que servem as histórias alternativas?

"Civilizations" é um excelente sucessor de "A Sétima Função da Linguagem" (2015) (análise VI), deixando para trás as teorias da comunicação para se focar na história da descoberta do Novo Mundo, só que agora o Novo Mundo já não é a América, mas a Europa. "Civilizations" usa um artifício inicial para garantir imunidade adquirida às populações das Américas aquando da chegada dos espanhóis, a partir do que se desenvolve todo um volte-face. Assim, em vez de termos Pizarro a dominar Atahualpa, como muito bem nos conta Jared Diamond, em "Guns, Germs, and Steel" (1997) (análise VI), temos Atahualpa a dominar Carlos V, o grande Imperador Romano-Germânico. 

Representação do Deus Sol Inca

setembro 19, 2021

Cortázar, o hipertexto e Joyce

Rayuela” (1963) (em Portugal “O Jogo do Mundo”) é reconhecido como uma das maiores obras da literatura da América latina. É reconhecido pelo pioneirismo do uso da não-linearidade hipertextual (ligações que permitem saltar páginas e capítulos). O seu autor, Julio Cortázar, foi imortalizado graças a este livro. Contudo, a minha experiência ficou bastante aquém, diga-se que muito provavelmente por defeito de profissão — trabalho, há mais de 20 anos, o design de narrativas hipertextuais. Esperava mais. Esperava ver uma obra que por ser criada por uma mente literária, rasgasse todos os preceitos da literatura e principalmente da linearidade narrativa. Acaba por não o fazer, em nenhuma das frentes. Com um registo demasiado colado a Joyce, oferece muito pouco à literatura. A forma sustenta o nosso interesse pela novidade estrutural, mas desvendado o padrão seguido tudo começa a cair.

A Torre de Montaigne

Enquanto leio "Civilizations" (2019) de Laurent Binet dou por mim atirado para um castelo que possui uma torre, na qual se encontra uma biblioteca com traves munidas de inscrições em latim e grego. Acreditando ser a biblioteca de Montaigne (1533 — 1592) fui procurar informação na rede e acabei recolhendo um conjunto de imagens que aqui deixo. Pode ser que um dia, quando volte a passar por Bordéus, ainda consiga fazer um desvio e vá visitar tão iluminada torre.

setembro 16, 2021

Problemas da Empatia e de Bloom

 Em 2016 Paul Bloom lançou um livro chamado “Against Empathy”, e com ele criou uma enorme confusão em redor do conceito de empatia. Na altura passei os olhos pelo livro, mas como não passava de um artigo aumentado com múltiplas histórias de suporte, não lhe dei muito valor, apesar de concordar com os traços gerais da proposta aí apresentada. Não dei grande importância porque, julgava eu, o alerta de Bloom era mais dirigido aos media do que propriamente aos cientistas. Entretanto revisitei o livro, e percebi que na tentativa de dar força ao que quer dizer, Bloom acaba por cometer alguns, muitos, excessos, e foi por isso que resolvi escrever este texto. 

setembro 14, 2021

O Caminho de Aristóteles

Neste livro, Edith Hall realiza todo um trabalho de síntese das principais obras de Aristóteles — “Ética a Nicómaco”, “Política”, “Poética”, “Retórica”, “História dos Animais”, entre outros. O seu objetivo passa por chegar às principais propostas de Aristóteles quanto ao que devemos fazer enquanto seres vivos. Aristóteles acreditava que o objetivo último do ser humano era a eudaimonía, chegar ao “bom espírito” que se pode traduzir por “bem-estar” e “contentamento”. Para Aristóteles, a eudaimonía atinge-se encontrando um propósito para a realização do nosso potencial, e trabalhando o nosso comportamento para chegarmos à melhor versão de nós mesmos.

setembro 12, 2021

Jornalismo de ciência não é ciência

Tinha imensa vontade de ler “The Extended Mind: The Power of Thinking Outside the Brain” (2021) uma vez que o assunto me interessa muito, contudo depois de ler o prólogo, seguido de uma introdução que se limitava a repetir o prólogo adicionando-lhe pequenas histórias, senti uma enorme desilusão, percebendo que não era para mim. Annie Murphy Paul pode ser uma boa jornalista de ciência, mas para escrever um livro sobre ciência tem de se oferecer mais do que jornalismo. Paul demonstra grande ligeireza na abordagem de assuntos complexos, mas pior do que isso, pretende por meio das meras leituras que realizou, apresentar toda uma nova teorização sobre o funcionamento da cognição. 

setembro 11, 2021

Na esplanada do Existencialismo

Numa palavra, brilhante. É com uma enorme admiração por Bakewell que chego ao final da leitura de "At the Existentialist Café: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), plenamente satisfeito com o conhecimento e experiência proporcionados. Sarah Bakewell fala a partir de um enorme lastro de conhecimento sobre a corrente do existencialismo, assim como das histórias de vida dos seus autores mais reconhecidos: Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Brentano, Merleau-Ponty, Camus, Sartre e Beauvoir. Bakewell usa as histórias dos filósofos para construir uma narrativa ligeiramente romanceada — usando como personagens centrais: Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Beauvoir —, apresentando todo o conhecimento fora do reino da abstração e focado nas histórias, relações, ações e decisões ao longo do século XX. Desta forma, a leitura permite-nos não só compreender os objetivos, alcance e limitações da corrente, como o contexto das suas origens e desenvolvimento. Ao chegar ao final, sentimos conhecer de perto não só aquelas pessoas e o seu tempo, mas acima de tudo as razões que suportaram as suas ideias.

setembro 02, 2021

"Un amor". (2020). Sara Mesa

Me sentí con Sara Mesa igual que con Ottessa Moshfegh, completamente secuestrado por las palabras y frases que formaban mundos particulares, llenos de peculiaridades, simultáneamente racionales y sentimentales. Los mundos son muy distintos, lo que realmente los une es la particularidad del mundo, de la acción de sus personajes, y cómo esa acción nos "muestra" los sentimientos. Es un arte difícil, que ambas dominan a la perfección.

No es un libro fácil, ni un libro que siga las políticas de comportamiento de moda. Es un libro que habla de la fragilidad interior del individuo ante la sociedad. Habla de la condición de la mujer sola. Trata de las fuerzas que nos presionan y las contrafuerzas con las que nos mantenemos a flote.

Leído en formato audiolibro, narrado por Marta Martín, durante las mañanas de finales de agosto 2021 mientras caminaba por la Playa de los Enebrales.

agosto 23, 2021

China: a real face do Comunismo

Costuma-se atacar o comunismo por via dos seus maiores terrores, Estaline e Mao, mas como "heróis" de um passado reconhecidamente desastroso rapidamente se descartam como exemplos distorcidos da ideologia. Já quando se fala de Castro ou Chaves, a sua visão não se cumpriu por culpa dos embargos. Quando se questionam os líderes comunistas nacionais sobre a Coreia do Norte, a resposta surge em jeito de questionamento do conceito de democracia, e quando se fala do Holodomor, na Ucrânia, esse não passou de uma invenção nazi, nunca existiu. No entanto, e apesar de todos estas falhas na matriz, o grande elefante branco continua aí, bem no meio da sala, com direito às maiores honras economicistas das últimas décadas, a China. 

agosto 22, 2021

Lotaria: da tradição à dopamina

“A Lotaria” é o conto mais conhecido de Shirley Jackson. Publicado em 1948, na The New Yorker, gerou uma tal onda de reações no público, de estupefação e especulação sobre o sentido da história, mas também muitas, na forma de telefonemas e cartas, com ameaças à revista e à autora, tendo a história sido mesmo banida nalguns locais. A história é bastante curta, tem apenas 3 mil palavras, por isso leiam-na antes* de continuar a leitura que contém spoilers.

agosto 20, 2021

Apreciar a arte narrativa como "nadar num lago à chuva"

A Swim in a Pond in the Rain: in which four Russians give a master class on writing, reading, and life (2021) de George Saunders é um livro sobre a arte de contar histórias, em particular sobre arte do conto, em particular do conto russo. Não é um livro sobre "como escrever histórias", é um livro que discute a arte e ofício de quem escreve e os resultados do que se escreve. Saunders não apresenta um guião, nem uma estrutura para a desconstrução dos contos, antes apresenta os mesmos completos sobre os quais realiza, depois connosco, uma leitura próxima (close reading) de certas partes que podem focar-se: na forma, no estilo, no conteúdo, na relação com a vida dos autores, ou ainda em aspetos da tradução do russo. Ler e ouvir Saunders (o audiobook é narrado pelo próprio) falar sobre escrita e contos russos é um pouco como olhar para os olhos de uma criança quando se lhe coloca um prato cheio de doces na frente. A paixão transborda, oferecendo particular deleite a todos os comentários que vai fazendo a cada um dos contos ao longo da viagem proposta que nos oferece 7 contos (3 de Chekhov (In the Cart; The Darling; Gooseberries), 2 de Tolstói (Master and Man; Alyosha the Pot), um de Gogol (The Nose), e um de Turgenev (The Singers)).

agosto 18, 2021

Experiência literária potenciada pela música

Durante mais de 25 anos ouvi o álbum “The Songs of Distant Earth” (1994), de Mike Oldfield, sempre pensando que parecia uma banda-sonora, contudo sem nunca saber que o mesmo era homónimo de um livro de Arthur C. Clarke de 1986. Foi Rob Dickins, da Warner, que sugeriu em 1993 a Mike Oldfield que fizesse um álbum conceptual baseado no livro de Clarke. Oldfield não se sentiu particularmente atraído pela história, mas gostou da atmosfera e do título. Pelo seu lado, Clarke adorava a sua banda-sonora de “The Killing Fields” (1984). Do meu lado, tenho de concordar com Oldfield, a história é muito incipiente, mas ler o livro ouvindo o álbum cria uma experiência que por vezes roça a transcendência, capaz de nos fazer viajar além do nosso sistema solar...

agosto 16, 2021

A dúvida científica como certeza individual

Depois do responsável de um partido ter vindo dizer que não se tinha vacinado porque não tinha informação, de que com a vacina ou sem ela os sintomas de COVID seriam os mesmos. Depois, de uma manifestação anti-vacinas, em Odivelas, com dezenas de pessoas gritando contra o diretor da campanha de vacinação palavras como "assassino". Descubro hoje que o principal site internacional de suporte de dados contra as vacinas, com milhões de visitas, é obra de uma pessoa apenas, uma californiana que diz ter uma filha que sofreu efeitos secundários após a toma de uma qualquer vacina em 2019.

agosto 11, 2021

A anomalia anti-existencial

"A Anomalia" foi premiado com o maior prémio francês de literatura, o Goncourt em 2020, que lhe deu notoriedade, mas sendo um prémio elitista raramente os seus premiados puderam apresentar-se ao público como tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares, como foi anunciado já em maio deste ano. Por outro lado, as reações nas redes não seguem esta aparente unanimidade, já que os comentários se dividem entre a paixão e o desprezo. Uns seguem o elitismo do prémio, reverenciando a inteligência do romance, outros desacreditam o prémio, catalogando-o de verdadeira anomalia. Do meu lado, li-o como comédia social que fala de temas sérios mas que não se quer levado demasiado a sério. Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que um dos personagens do livro é um escritor que também escreveu um livro chamado "A Anomalia", e enquanto tradutor já traduziu “À Espera de Godot" para klingon.


agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

agosto 05, 2021

"Framers" (2021): decisão e quadros mentais

Cheguei a este livro — "Framers: Human Advantage in an Age of Technology and Turmoil" (2021) de Kenneth Cukier, Viktor Mayer-Schönberger e Francis de Véricourt — pelo meu interesse nos processos de tomada de decisão, as escolhas que temos de fazer todos os dias, sempre que damos espaço à nossa agência no mundo, ou num qualquer artefacto interativo. A decisão é um processo altamente complexo, desde logo porque contribui para nos definir enquanto seres possuidores de livre-arbítrio. Assim sendo, e partindo do quadro humano que nos oferece tantas decisões quanto o número de seres humanos, percebe-se a dificuldade ou mesmo impossibilidade da tentativa de parametrizar processos de decisão humana. Para esse efeito bastaria ler Kahneman e Tversky:

julho 31, 2021

Samuel Beckett e a neurodiversidade

Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].

"Molloy" foi publicado pela primeira vez em 1951, em francês, pelas Éditions de Minuit. Só em 1955 Beckett realizaria a tradução para inglês.

julho 30, 2021

“The Frontiers of Knowledge" (2021) de A.C. Grayling

Publiquei ontem a resenha do livro “The Frontiers of Knowledge" (2021) de AC Grayling no n. 10 do Journal of Digital Media & Interaction, a revista científica do DigiMedia. Na resenha dou conta das abordagens seguidas por Grayling, contudo aqui quero aproveitar para dar conta do quanto me tocou pessoalmente, nomeadamente a escolha que Grayling fez na seleção das 3 áreas de fronteira: a física, a história e a psicologia. O facto de ter selecionado 3 áreas centrais que acompanho, colocou-me em total sintonia com o autor, fazendo com o que o livro se tivesse tornado para mim numa das leituras mais instigantes da última década. Se tiverem ficado com curiosidade leiam a resenha!

“The Frontiers of Knowledge. What We Know about Science, History and the Mind” (2021) de AC Grayling


julho 25, 2021

O Fim da Grande Ilusão

“O Fim do Homem Soviético: Um Tempo de Desencanto” (2013) é uma tentativa de Svetlana Alexievich de nos ajudar a compreender o que aconteceu com o fim da União Soviética. Escrito a partir da captação de centenas de relatos orais, técnica de escrita em que se especializou, a autora procura a partir do interior de pessoas reais construir um mapa de recordações que possam iluminar os efeitos humanos da decadência soviética. Não é um trabalho propriamente académico, já que o enfoque se dá na emoção, no sentir de cada entrevistado, e Alexievich nunca tenta abstrair, generalizar ou sintetizar as leituras. O foco é o particular, o individual, o subjetivo, o humanamente concreto. Naturalmente que isso nos obriga a uma leitura mais atenta, não podemos ler aqui tudo como verdade, ainda que tudo seja baseado no que dizem pessoas reais — a realidade é constituída pela multiplicidade de dimensões construídas pelo olhar de cada ser humano. Mas também percebemos que muito do que é dito não nos é totalmente estranho, e empaticamente conseguimos aferir parte da sua veracidade. 

Milan Kundera: A Arte do Romance

Milan Kundera diz a determinada altura, neste "The Art of the Novel" (1986), que em julho de 1985 tomou a decisão de não mais conferir entrevistas. Parece um preciosismo, uma excentricidade artística proveniente de um ego excessivamente inflamado. Mas ao ler esta obra percebemos duas coisas: Kundera é alguém muito cioso da forma das suas obras, com a música como berço soube usar todo o seu formalismo para criar uma literatura com formas por vezes quase matemáticas; por outro lado, olhando aos reparos que vai fazendo sobre a imprensa e traduções feitas do seu trabalho nos anos 1970, percebe-se que o cuidado era pouco, nomeadamente com um autor provindo de um país escondido atrás de uma "cortina de ferro". 

Versão audiobook apresentada numa belíssima narração de Graeme Malcolm

julho 24, 2021

2666: uma longa viagem

No final das 1000 páginas podemos fechar o livro e decidir ficar com as impressões criadas ao longo das semanas de leitura, sem realizar qualquer esforço de as organizar, de lhes dar um sentido. Essa vontade pode ser maior quando de frente a livros que são escritos com a intenção de se furtar a essas tentativas de catalogação ou organização de significados, como é o caso de “2666”. Ainda assim, enquanto leitores dotados de competências, por vezes obsessivas, na identificação de padrões e atribuição de significados, torna-se difícil não encetar esse esforço. As linhas que se seguem são assim o resultado da minha experiência de leitura, condensada e verbalizada num conjunto de ideias e parágrafos.