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março 19, 2023

"Eu, Cláudio" (1934)

"Eu, Cláudio" é de 1934, por isso se tiverem interesse em começar a ler sobre Roma Antiga e os seus Imperadores, podem começar por aqui. Na verdade, muito do que aqui está encontra-se espalhado por uma míriade de objetos culturais que criaram o imaginário do século XX sobre aquela época — desde as quezílias familiares aos assassinatos de imperadores, passando pela total insanidade de Calígula. Tendo lido muitas outras obras antes, soube-me a pouco, e por isso recomendo ainda mais que comecem por aqui. Ainda que se sinta alguma superficialidade, vale a pena a leitura pela acessibilidade da visão geral daqueles tempos, mesmo que o tom esteja demasiado impregnado pelo século XX. Por outro lado, enquanto romance deixa a desejar, já que investe muito mais na descrição do que na narração ou dramatização. Se quiserem algo mais imersivo, aconselho antes “Augustus” (1972) de John Williams, e para algo mais psicológico, "Memórias de Adriano" (1951). Mas se quiserem mergulhar diretamente na mente de um imperador então  nada melhor do que ler "Meditações" (180) de Marcus Aurelius.

dezembro 24, 2021

Imperium de Robert Harris

“Imperium” (2006) é uma obra de ficção histórica com capacidade para nos envolver nas tramas da época, entretendo-nos enquanto vamos aprendendo sobre a época, neste caso o século I a.C. na Roma Antiga. Robert Harris escolheu como personagem principal Marco Túlio Cícero, o grande orador, mas principalmente o senador romano que mais escritos nos deixou e que perduraram até aos nossos dias. São esses escritos que permitem aos historiadores ter um acesso privilegiado a uma época já com 2000 anos, assim como aos romancistas aceder a matéria direta para o seu trabalho de recriação. Harris nada arrisca na forma, limita-se a descrever a ação, situando no espaço-tempo e gerindo conflitos conhecidos da história, criando suspense que nos faz virar páginas, que nos levam a descobrir os porquês, usando alguns comportamentos sociais como adereços, mas deixando praticamente de fora os mundos interiores de cada personagem.

junho 22, 2021

Da História de Roma Antiga

Nos últimos anos tenho lido várias obras que abordam o império romano — em particular "O Infinito num Junco" de Irene Vallejo, "Augustus" de John Williams e "Memórias de Adriano" de Marguerite Yourcenar, ou ainda os próprios clássicos romanos "A Eneida", Seneca ou Lucrécio — e por isso a curiosidade sobre a Roma Antiga foi aumentando. Inevitavelmente fiz a aproximação primeiro através da monumental obra de Edward Gibbon, “The History of the Decline and Fall of the Roman Empire”, publicada em 1776, contudo, pouco depois de a iniciar descobri a existência de uma outra obra sobre Roma, “SPQR: A History of Ancient Rome” bastante mais recente, de 2015, de Mary Beard, professora de cultura clássica respeitada e por vezes equiparada a Gibbon. Decidi então deixar Gibbon de lado e seguir com Mary Beard. As razões para o fazer foram várias, como dou conta a seguir, mas no final sinto que fiz bem, essencialmente porque me permitiu encerrar a curiosidade que tinha, e explicarei porquê. Entretanto, consegui terminar o visionamento da série "Rome" (2005) da HBO, da qual dou conta no final.

Existe uma edição portuguesa, traduzida pelos Carvalho & Guerra e editado pela Bertrand.

março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


abril 19, 2020

Augustus (63 a.C. — 14 d.C)

“Augustus” (1972) foi o meu terceiro livro sobre imperadores romanos — depois de “Meditações” (180) de Marcus Aurelius e “Memórias de Adriano” (1951) de Marguerite Yourcenar — assim como o terceiro livro de John Williams — depois de “Butcher's Crossing” (1960) “Stoner” (1965). Augustus não foi o melhor imperador, apesar de ter sido o primeiro após a República, nem representa, como livro, o maior feito de Williams, apesar de ter sido a sua última obra, na qual apresenta toda a envergadura do seu engenho. No entanto, Augustus foi um imperador absolutamente notável e Williams acabou prestando-lhe uma homenagem verdadeiramente memorável. Ler “Augustus” é uma viagem no tempo totalmente conseguida, porque criada a partir do interior de personagens que se dão a nós por meio de cartas em que se revelam e dão a conhecer o que era viver no centro do mundo no ano zero.


Começo por aquilo que mais me impressionou, a luta política e os bastidores do final da República e assassinato de Júlio César até ao nascimento da Roma Imperial, por meio da ascendência de Caio Octávio ao lugar de Augustus. Williams lança-nos no interior de um turbilhão de intrigas que chegam a parecer-se com telenovelas, mas que acabam por demonstrar a essência da verdadeira política. No final está sempre a questão do poder, mas o modo como se obtém e mais ainda como se mantém diz respeito à mais pura arte de controlo e manipulação social. Apesar da autocracia, o poder de um Imperador de nada valia se o povo, a massa do povo, não estivesse a seu lado. Para o efeito, a política torna-se sanguinária, não em termos de violência gráfica, mas em termos de calculismo e estratégia. Algo que o xadrez exemplifica muito bem, apesar de lhe faltar tudo o resto, já que não chegam as mecânicas de estratégia, requer-se também excelentes competências de leitura dos oponentes, a antecipação é fundamental, e ainda o carisma e grande empatia sem o que não se consegue o poder.


Confesso que senti, pela primeira vez, admiração pela arte da política, tal como pela ciência dos que a estudam, parece-me fascinante tentar compreender aquilo que envolve cada decisão em cada momento, porque tudo depende sempre dos olhos de muitos humanos e da capacidade de prever para onde estarão a olhar em cada momento. Por várias vezes recordei o ridículo do atual presidente dos EUA e pensei na quantidade de jogos que deverão passar-se por debaixo daquela cúpula, desde os que se pudessem lhe espetariam uma adaga até aos que o mantém ali como fantoche para acionar os seus desejos. É um mundo louco, ao mesmo tempo totalmente despegado da realidade dura das classes médias que garantem a riqueza das nações, mas recorrendo aos mais elementares comportamentos humanos que todas as classes reconhecem, desde a culpa à vergonha, passando pelo desejo, o medo e a falta deste. Por isso não admira a qualificação que Williams faz de Roma em termos da sua relação com a filosofia e a religião, pelas palavras de Estrabão de Amasia:
“That is the Rome that I live in now — a city of nearly a million people, I have been told. It is unlike anything I have ever seen. They come here from all over the world — black men from the burning sands of Africa, pale blonds from the frozen north, and every shade between. And such a polyglot of tongues! Yet everyone speaks a little Latin or a little Greek, so that no one need feel a stranger.”
(...)
“I begin to understand this Roman disdain for philosophy. Their world is an immediate one—of cause and consequence, of rumor and fact, of advantage and deprivation. Even I, who have devoted my life to the pursuit of knowledge and truth, can have some sympathy for the state of the world which has occasioned this disdain. They look at learning as if it were a means to an end; at truth as if it were only a thing to be used. Even their gods serve the state, rather than the other way around.”

No meio de todo este calculismo e grande frieza humana emerge um outro tema, muito relevante, a posição da mulher, nomeadamente da mulher em situação de poder. O casamento era, na Antiga Roma, central na manutenção dos equilíbrios de poder, pela força das grandes famílias que tinham de se rever nos seus líderes. Temos filhos e filhas a casar-se e a divorciar-se para simplesmente oferecer herdeiros, ou apenas a possibilidade desses herdeiros. Algo profundamente animalesco, no sentido de que as pessoas parecem existir apenas em função da sua potencial procriação. Ainda que espelho da condição humana, tudo o que fazemos ou somos é em função da nossa sobrevivência natural, contudo aqui é algo assumido em total consciência, como dever e missão do Ser. Impressiona, faz-nos ver o humano a uma luz distinta.


Se tudo isto era suficiente, a data do nascimento da Roma Imperial foi marcante não só por Augustus, mas também por uma enorme galeria de personagens da nossa História que atravessaram os destinos de Roma. Começando por Júlio César, o grande estratega militar, que se enamorou de Cleópatra, tendo o seu sucessor, Marco António, depois casado com ela e tido uma filha que acabaria por ser criada, após a morte de ambos, pela família de Augustus. Cícero o grande orador que morreria por ousar criticar Marco António. Horácio, Mecenas, Nicolau de Damasco, Ovídio, Seneca e Virgílio escrevendo a “Eneida” a pedido de Augustos. Enquanto tudo isto acontecia em Roma, e todos estes personagens imortalizavam a História, muito mais se passava no Egito, na Gália, na Bretanha, Espanha, em Atenas e claro em Jerusalém ainda que Williams tenha optado por se manter quase empre em Roma, talvez seguindo o próprio Augustus, como fica expresso nesta passagem:
“Unlike my uncle Julius Caesar, who found some odd renewal in such extended travels, I never felt at home in those distant lands, and always longed for the Italian countryside, and even Rome.”
No final do livro é muito importante voltar à página de abertura na qual John Wiliams diz:
“I have changed the order of several events. I have invented where the record is incomplete or uncertain; and I have given identities to a few characters whom history has failed to mention… With a few exceptions, the documents that constitute this novel are of my own invention – I have paraphrased several sentences from the letters of Cicero, I have stolen brief passage from the acts of Augustus, and I have lifted a fragment from a lost book of Livy’s history preserved by Seneca the Elder.”
Um dos erros ou alterações introduzidas por Williams que eu detectei após pesquisa, foi a menção à proscrição dos filósofos em 100 a.C., o que na verdade só aconteceria 200 anos depois, em 100 d.C pelas mãos do Imperador Domiciano, e que acabaria por levar Epictetus até à Grécia.

Para terminar, deixo excertos da última parte do livro, o derradeiro ano de vida de Augustus, em que este olha para trás, refletindo sobre o que foi, aproximando-se imensamente de Marcus Aurelius.

“One does not deceive oneself about the consequences of one's acts; one deceives oneself about the ease with which one can live with those consequences.”
“When I was young, I would have said that loneliness and secrecy were forced upon me. I would have been in error. As most men do, I chose my life then; I chose to enclose myself in the half-formed dream of a destiny no one could share, and thus abandoned the possibility of that kind of human friendship which is so ordinary that it is never spoken of, and thus is seldom cherished.”
“The young man, who does not know the future, sees life as a kind of epic adventure, an Odyssey through strange seas and unknown islands, where he will test and prove his powers, and thereby discover his immortality. The man of middle years, who has lived the future that he once dreamed, sees life as a tragedy; for he has learned that his power, however great, will not prevail against those forces of accident and nature to which he gives the names of gods, and has learned that he is mortal. But the man of age, if he plays his assigned role properly, must see life as a comedy. For his triumphs and his failures merge, and one is no more the occasion for pride or shame than the other; and he is neither the hero who proves himself against those forces, nor the protagonist who is destroyed by them. Like any poor, pitiable shell of an actor, he comes to see that he has played so many parts that there no longer is himself.”
“It was my destiny to change the world, I said earlier. Perhaps I should have said that the world was my poem, that I undertook the task of ordering its parts into a whole, subordinating this faction to that, and adorning it with those graces appropriate to its worth. And yet if it is a poem that I have fashioned, it is one that will not for very long outlive its time. When Vergil died, he earnestly beseeched me to destroy his great poem; it was not complete, he said, and imperfect. Like a general who sees a legion destroyed and does not know that two others have triumphed, he thought himself to be a failure; and yet his poem upon the founding of Rome will no doubt outlast Rome itself, and certainly it will outlast the poor thing that I have put together. I did not destroy the poem; I do not believe that Vergil thought I would. Time will destroy Rome.”

Textos do original, mas lido na versão portuguesa pela D. Quixote. Nota quantitativa no GoodReads.