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abril 02, 2017

“Dentes Brancos” (2000), o poder do símbolo

“Dentes Brancos” é uma obra poderosa, carregada de significados impossíveis de decifrar numa única passagem. É uma obra imensamente rica porque pede não mera reflexão mas diálogo em busca dos significados pretendidos e dos que cada um de nós leu, interpretou e sentiu. Mas não sendo eu grande fã de simbolismos, ou melhor das ultrainterpretações a que dão azo, tenho de dizer que aquilo que primeiro me seduziu em Zadie Smith foi a sua escrita, que Quinn muito bem definiu no New York Times como: “exuberante pirotecnia verbal”.


Pela sua qualidade estilística Zadie está na, minha, galeria de escritores ao lado de Jonathan Franzen e Philip Roth, embora para a maioria da imprensa esteja ao lado de Salman Rushdie. Impressionando, impacta verdadeiramente quando percebemos que “Dentes Brancos“, primeira obra, foi publicada em Janeiro de 2000, quando tinha 24 anos, e segue quando descobrimos que esta surge de um primeiro manuscrito datado de 1997, com 21 anos, que lhe valeu um contrato em redor das 250,000 libras. A idade impressiona, e houve quem qualificasse Zadie como uma daquelas crianças hiperativas que se revela cedo demais, correndo o risco de se perder no futuro, mas em 2017 sabemos que tal profecia não se concretizou, Zadie publicou desde então mais 4 romances, um dos quais, “Uma Questão de Beleza”, sobre o qual já aqui dei conta. Impressiona-me particularmente já que Zadie nasceu um ano depois de mim, o que me dá uma perspectiva muito próxima do que terá sido necessário para atingir este nível. Zadie é talento em bruto, mas não chega, o qualificativo de hiperatividade não é descabido, já que foi preciso investir muito do seu tempo em leitura, em introspeção e escrita. Produzir um texto desta magnitude com vinte e poucos anos não está ao alcance de muitos de nós, pode faltar talento mas falta acima de tudo o amor e a dedicação que Zadie depositou na literatura.

Zadie Smith

Em termos temáticos Zadie usa “Dentes Brancos” para ir ao fundo das complexidades familiares, raciais, colonizadoras e culturais da Inglaterra contemporânea. E se o livro terá impactado em 2000, o Brexit em 2017 veio tornar ainda mais relevante tudo o que nele se discute. Temos numa mesma narrativa, mais de 150 anos de história, três gerações e várias ex-colónias britânicas. A Jamaica, o Bangladesh e a Índia são chamados para a mesa inglesa, e o diálogo torna-se explosivo, multicolorido, dando a conhecer a essência da multiculturalidade. Zadie introduz temas como a 2ª Guerra Mundial, a eugenia, as religiões, a ciência, o livre-arbítrio, o suicídio, colocando toda uma constelação de personagens a questionar o propósito da vida. O propósito é aquilo que torna o resumo do livro tão difícil e os personagens tão diversos e realistas podem afastar-nos, mas Zadie usa uma forma inteligente de nos aproximar de tudo e todos, o "humor sério". Não sendo eu grande apreciador de comédia tenho de dizer que ri, gargalhadas espontâneas, imensas vezes ao longo da leitura, com o modo como tratando assuntos sérios e complexos, os personagens, cada um dotado das suas lógicas e crenças culturais, questionam o mundo.

Todas estas temáticas só são possíveis pelo contexto que envolve Zadie, as suas raízes. Filha de mãe negra, imigrada em 1969 da Jamaica para Inglaterra, e de pai branco britânico, em segundo casamento. Com dois meios-irmãos e dois irmãos mais novos, e uma adolescência marcada pelo divórcio dos pais, que a levou a mudar o seu nome original, de Sadie para Zadie. Este contexto parece ter servido de ebulição à criatividade que viria a demonstrar na universidade, no King's College em Cambridge, onde daria nas vistas com pequenos contos, e conseguiria então captar o interesse para um contrato de primeira obra.

Voltando ao início, o livro está carregado de símbolos. Não são necessários decifrar para se compreender a história, para se sentir prazer na leitura, mas instigam-nos a ir mais fundo, assim como separam o livro do mero historiar de aventuras familiares de raças diferentes. Elevam o sentido da leitura e explicam porque a literatura continua tão relevante enquanto arte, já que consegue não apenas fazer-nos passar bons momentos, mas ao mesmo tempo ensinar-nos, contribuindo para o edificar da nossa base civilizacional.

E assim, mesmo não sendo particularmente fã da ultrainterpretação simbólica, não quero deixar de destacar aqui o sentido do título da obra. Como disse, existe muito mais nas páginas do livro, tal como o RatoFuturo, o KEVIN, ou o Dr. Doença, que poderiam por si dar origem a páginas e páginas de reflexões, e que terão já dado múltiplas teses de mestrado. Mas porquê “Dentes Brancos”? Tenho de confessar que as ideias que passo a explorar não são originariamente minhas, surgiram de várias leituras (ligações: ab, cd, e), que me permitiram por via da confrontação de ideias, chegar uma interpretação que satisfez a minha leitura e o meu mundo.

Os “Dentes Brancos” surgem ao longo do livro várias vezes, mas sem conotações concretas, do impacto visual dos seus estragos (uma personagem não tem todos os dentes da frente), contrastando-se com o excessivo cuidado na sua limpeza (um dos personagens lava os dentes 5 a 6 vezes por dia). Como se os dentes tivessem uma relevância de classe, capaz de marcar a diferença de cultura e até de raça. Contudo, o mais significativo não surge nas páginas, temos de chegar lá por analogia, pela construção discursiva que nos une. Sendo um texto defensor do multiculturalismo, o que costumamos dizer é que a cor da pele na conta porque debaixo da mesma, corre o mesmo sangue vermelho. Ora dentro das nossas bocas estão também os mesmos dentes brancos, iguais para todos mas ao mesmo tempo diferentes, tão diferentes que são usados para identificar os restos mortais de corpos muito deteriorados. Ou seja, na igualdade podemos encontrar a diferença, e juntas contribuem para definir aquilo que somos. Não somos apenas iguais nem apenas diferentes, somos singulares, e por isso é fundamental preservar e acarinhar as raízes, as mesmas que garantem o branco dos nossos dentes.