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outubro 23, 2022

"Cadernos da Água" de João Reis

A escrita muito direta, sem floreados nem simbolismos, mas elaborada e centrada no que está a acontecer, torna a leitura de "Cadernos da Água" (2022) próxima da experiência audiovisual. O mundo apresentado é distópico. Sofrem-se os efeitos das alterações climáticas que obrigam populações a deslocarem-se para zonas onde ainda existem recursos hídricos. O tom imprimido é particular, cruza a ação americana com a frieza escandinava, colocando-nos no lugar de portugueses refugiados fugidos de um país que já não existe. A particularidade da experiência estética criada só tem par em "Station Eleven" (2014) de Emily St. John Mandel.

janeiro 21, 2022

Primeiras obras literárias

As Primeiras Coisas” (2013) do português Bruno Vieira Amaral (1978) e “Antes de Partires” (2000) da irlandesa Maggie O'Farrell (1972) são obras que parecem não ter nada em comum além do facto de serem ambas primeiras-obras. Para mim, que as li em simultâneo, posso dizer que encontrei vários outros pontos de contacto, ainda que quando aprofundados resultem mais em contraste do que em similitude. No entanto, tratando estes pontos da abordagem e das competências de escrita dos autores pareceu-me suficientemente relevante agregar os dois num mesmo texto. Saliento ainda que ambas as obras foram premiadas com prémios nacionais para primeira-obra abaixo dos 35 anos, Amaral com o Prémio José Saramago, no valor de 25 mil euros, e O’Farrell com o Betty Trask Award, no valor de 20 mil libras. 

junho 17, 2021

Jorge de Sena: sinais de génio e banalidade

Para o texto — composição e ritmo — 5 estrelas não são suficientes, tal a enormidade do virtuosismo apresentado que nos faz parar amiúde apenas para saborear as palavras cadenciadas na folha. Para o historiar, 5 estrelas dão bem conta das imensas competências de Sena na criação de mundo e personagens, assim como no enredo de ações que nos levam da primeira à última página sempre querendo saber mais, instigando a nossa curiosidade como se fosse algo perfeitamente natural. Mas, no campo das ideias, o discurso apresentado não consegue ir além de 1 estrela, é pavorosa a falta de construção de significado, a aridez do mundo conceptual em que vivem alheadas todas aquelas personagens, pensando apenas nos seus umbigos e nos prazeres imediatos.

junho 13, 2021

WiZink, e o conceito de Dívida Eterna

Tem-se discutido o problema das apostas e raspadinhas, mas vejo pouca discussão sobre um problema, importado dos EUA, e que considero mais grave pela fachada institucional e respeitada com que se apresentam, estou a falar das empresas de crédito fácil, aquelas que vão para os centros comerciais enfiar cartões de crédito pelas goelas abaixo de quem tem baixa literacia financeira, tais como a WiZink, a mesma que vai agora passar a surgir nas camisolas da equipa de futebol mais popular do país. Escrevo este artigo como alerta para quem tem familiares idosos, pela sua maior susceptibilidade à manipulação destas empresas.

dezembro 23, 2020

Comunidade (1964) Luiz Pacheco

Um pequeno livro que é do mais intenso que podemos ler em português, pelo modo como fala rente à carne, à "máquina" humana como lhe chama Luiz Pacheco. É um exercício de forma, mas consegue elevar-se e transcender a mesma para nos tocar, nos fazer sentir o que é ser-se um ser feito de carne, pele, curvas, fluídos e estar-se vivo. O calor do toque, da proximidade, da carne humana é aqui o centro da peça.

Desenho de Teresa Dias Coelho, publicado no livro "Comunidade" (1964), sexta edição (1980:31)

Se o livro nos impressiona e as ilustrações ajudam na atmosfera, ler as palavras do filho de Luiz Pacheco, em entrevista com Anabela Mota Ribeiro para o Público em 2015, faz toda a obra ganhar uma densidade ainda maior:

"Estou lá, é o meu nascimento. Aquilo é a minha terra. Tive cinco famílias de acolhimento, dezenas de casas. Não tenho nenhum sentimento de pertença a uma terra. Quando pergunta onde é a minha terra, é aquilo. Naquele texto está tudo o que é relevante."
Paulo Pacheco, in Público 2015

Vale a pena ler o resto da entrevista para compreender melhor quem era Luiz Pacheco, de onde veio, como viveu, como passou pela vida.

Excerto de "Comunidade" (1964)

Não se compreende como uma obra destas não se encontra à venda e em múltiplas edições de qualidade, ou não é mais discutido na cena nacional. Ainda que se perceba que o sentimento ali plasmado possa não agradar a uma certa elite, o texto tem um enorme alcance e merecia maior apreciação da nossa parte.

junho 20, 2019

“Pão de Açúcar” (2018)

Não posso dizer que tenha ficado desiludido, um segundo romance, depois de uma obra de excelência e premiada, representa sempre um enorme peso e responsabilidade para alguém que ainda neste segundo romance se mantém bastante novo para o tipo de mundos que a literatura a este nível exige. “Pão de Açúcar” não chega a ser Romance, é um exercício de escrita, bem conseguido tecnicamente, capaz de agarrar o leitor e levá-lo ao longo das 200 páginas encurtadas pelas largas margens e caracteres grandes. É uma história que exigiu bastante pesquisa ao autor, mas ainda assim todo o enquadramento estava definido à partida, diga-se mesmo já amplamente esboçado pelo extensíssimo artigo (20 páginas) de Catarina Marques Rodrigues, “Gisberta, 10 anos depois”, para o Observador.


Cabral cumpre, em parte, com o que se tinha comprometido, dar vida às vidas dos jovens envolvidos naqueles derradeiros dias. Lendo os jornais o que temos é apenas a ideia de miúdos sem nada na cabeça, dispostos a tudo para magoar os outros, sem empatia nem sentimentos, na falta de mais dados especulamos a partir dos efeitos, e vemos na nossa cabeça um bando de energúmenos. A obra de Cabral refaz esta ideia, não desculpando, mas racionalizando sustentando com emoção e realidade vivida alguns dos jovens envolvidos. Posso dizer que consegui chegar bastante perto dos jovens, dos seus mundos, das suas realidades, sentir as suas dúvidas, incertezas e medos do mundo vivido no dia-a-dia. Inevitável pensar em “Deus das Moscas” e olhar para um grupo de jovens que sem regra nem direção acaba seguindo a força do mais forte e o efeito de grupo. Cabral faz-nos sentir o lugar e os seus habitantes, onde viveram aqueles miúdos, os seus devaneios pela cidade do Porto, assim como o prédio abandonado, somos completamente transportados para lá.

Mas era necessário este livro? Senti-me a maior parte do tempo um voyeur. Existe ali uma história, sem dúvida, mas devemos questionar-nos se produzindo obras sobre estas contribuímos para algo mais além do prazer do sofrimento de outrem. Repare-se que não precisamos de um livro para chamar a atenção, o assunto foi amplamente dissecado pelos media, e o artigo referenciado acima foi feito para recordar os 10 anos. Ou seja, o que podia um livro dar-nos mais? Conhecer melhor os envolvidos? Correto, mas com que objetivo, desculpá-los, ou aceitar a normalidade do acontecido? Repare-se que não é um assunto ficcionado para testar temperamentos ou efeitos da fraca educação (que é parcamente definida no livro), trata-se de um caso real, com pessoas que existem e sobre as quais devemos ter uma posição enquanto sociedade. Humanizar é preciso, mas enquanto sociedade precisamos de balizas concretas sobre o que podemos aceitar e o que não podemos de forma alguma. Um livro destes coloca tudo em questão, faz-nos questionar, faz-nos sentir impotentes porque co-culpados pela falta de apoio que aqueles jovens tiveram nas suas infâncias, ou da aparente falta de apoio que Gisberta teve. Mas tudo isto não o sabíamos já antes de ler este livro? Onde está o rasgo da arte para nos despertar do sentimento cliché, para nos transformar? Tenho de dizer que não me preencheu enquanto obra, enquanto Romance, longe disso.

Falando da escrita, é boa apesar de não ser excecional. Cabral consegue algo difícil, encaixar um pensar e diálogos que tinham de ser bastante incompetentes e até incongruentes, num texto de grande elegância, sem que duvidemos todo o tempo da sua veracidade. O mesmo se pode dizer da crueza e calão que vão surgindo, mas muito longe daquilo que é a realidade destes universos. Nota-se um esforço de aproximação aos contextos e à potencial escrita, mas ainda assim muito longe do que seria verdadeiramente um texto escrito por alguém saído daquelas condições. Muito do que se lê percebe-se impossível de germinar ali, mas não deixa de parecer provir daquele mundo, daquele universo, por isso algo foi bastante bem feito por Afonso Cabral para nos fazer sentir deste modo.

junho 12, 2019

Algo em que acreditar? A educação, sempre

Não querendo entrar na discussão que já vai grande sobre o João Miguel Tavares (JMT) e o 10 de junho, nem para laurear nem para desfazer, porque o seu discurso no geral parece-me bastante interessante, mas tendo-o lido depois de ouvir tantos comentários, quero apenas frisar um ponto do discurso, que apesar de bem trabalhado nas palavras e como clara intenção de defesa pessoal acaba por se contradizer.

Melhorámos muito, mas estamos ainda longe, falta outro tanto pelo menos...


Começa JMT por dizer:
"Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso."
E termina a dizer:
"E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros."

Ousar pôr numa balança dois elementos tão díspares — os que estudaram e os que fazem ciência — com — os que tomam conta dos filhos e dos outros — é um paradoxo no discurso de JMT, porque é ele mesmo quem defende a Educação como Elevador Social, é ele quem descreve como os nossos pais tiveram um projeto de vida: Estudar os seus filhos. Os pais não investiram tudo o que tinham para os filhos apenas tomarem conta dos seus próprios filhos, isso é aquilo que já lhes compete enquanto cidadãos, os nossos pais quiseram que estudássemos para que fossemos mais, tivéssemos uma profissão e conseguíssemos ir além deles.


Percebo que JMT pretendia dar uma estocada em todos aqueles que questionaram o seu currículo para presidir ao 10 de junho, mas ao fazê-lo desta forma atirou o bebé junto com a água. JMT acaba por dizer que agora que já somos todos "doutores", porque a geração anterior se esfalfou para isso, isso já não é assim tão importante. Chegados a "doutores" encontrámos o desencanto, perdemos a esperança, não valeu a pena, e pior, ficámos sem sonhos para vender aos nossos filhos! Por isso, o melhor será voltar ao antes e sonhar outra vez. Talvez sem querer, acabou caindo no discurso populista do "não precisamos de especialistas" ou "temos licenciados e doutores a mais" que nos tem sido vendido por todos os líderes populistas bem conhecidos.

No ensino superior melhorámos mais rápido, mas porque a fasquia a atingir é menor. Mas não é razão para desencantar, sem esta subida o que digo abaixo não existiria.

Julgo que JMT em vez de se ter focado em pedir, "Dêem-nos alguma coisa em que acreditar", devia ter-se focado em dizer o que precisamos para continuar a acreditar, seguindo Kennedy em vez de Trump. Sei que JMT terá pensado que dar sonhos exteriores — mais riqueza, mais conquistas, mais isto e aquilo — seria sempre fraco, por isso focou-se nas pessoas, no seu interior, na entre-ajuda. Sim, esse deve ser o bem maior, mas é apena a rede funcional sem a qual não existiríamos como país, sobre esta precisamos de algo mais, precisamos de objetivos maiores do que aqueles já anteriormente alcançados. Porque a entre-ajuda estava lá antes quando conquistámos o 25 de Abril, entrámos na CEE, entrámos no Euro, e estava lá também quando organizámos a Expo 98, o Euro 2004, quando ganhámos o Euro 2016 e a Eurovisão 2017. Mas tudo isto só foi possível porque os níveis de Educação do país se elevaram tremendamente, se criaram ordens, sociedades, associações e academias de ciência e artes, assim como de turismo, de futebol, de música, de moda ou videojogos e tal só foi possível porque antes se criaram muitos cursos profissionais e superiores, com professores muito mais formados, em dezenas de profissões antigas que o país nunca tinha conseguido sequer formar, entre outras tantas novas que antes nem sequer existiam, e tudo isto depois tornou possível o surgimento de  pessoas com conhecimento e condições para garantir um país muito mais qualificado — capaz de criar empresas, festivais, concursos, eventos, obras e produtos não apenas nacionais mas internacionais — para que alguns de nós pudessem brilhar e ganhar, mas ao ganhar fossem além, elevassem a fasquia e dissessem que era possível fazer ainda mais.

abril 23, 2019

Às pessoas do Drama falta Ciência

"As Pessoas do Drama" (2017) pode ser lido como continuação de "Impunidade" (2014) ou remake, a continuidade não é perfeita, existem vários elementos narrativos que não oferecem suporte à continuidade, ainda assim pode tentar-se a aproximação. Dizendo isto apenas, já sabem o que vos espera, ainda que sendo um trabalho muito menos violento, mais focado, mas também talvez por isso mais repetitivo, fez-me sentir falta de mundo. O mundo que habitamos é vasto, denso e complexo e no entanto para Cancela, dois romances resumem tudo a meia-dúzia de personagens alienados, sofrendo todos das mesmas patologias do foro mental. Eu tentei, li vários textos sobre o livro, muitos deles pareciam escritos por quem nem sequer o tinha lido, mas chegado ao final, a convicção de que não é um bom livro é grande, embora admita que possa ter falhado na leitura, mas é o que sinto agora.


A obra recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela 2018, segundo o júri "pela leitura crítica da História e da Cultura europeia na sua relação com a cultura árabe, através de uma temática poderosa (a culpa, a impunidade, o drama, o olhar, o incesto, a tensão e a violência familiares), e de uma revisitação de personagens e de mitos do nosso património cultural ocidental"." Bem, devem ter lido um livro que eu não li. Sim a Cultura Europeia está em destaque, temos Antiga Grécia (Antígona), temos Itália (Roma), Espanha (Badajoz e Cordoba) e Portugal (Alentejo, Elvas e Lisboa). Mas Cultura Árabe, a sério? Porque existe um personagem secundário marroquino, que passa por espanhol, mas porque é mudo, não fala uma língua, todos lhe dizem que é de parte nenhuma?

Quando terminei de ler "Impunidade" senti-me defraudado. Mais de metade do livro tinha sido passado a tentar interpretar algo, quando apenas a 1/3 do final Cancela resolve tirar o tapete. Desta vez Cancela termina o livro, e só na nota final que define os personagens, tal como nas peças de teatro, é que percebemos quem é quem. É um jogo vil. Das duas vezes optou por manipular o leitor, não disse ao que vinha, quis jogá-los para o meio da tragédia, obrigá-los a sentir, para depois revelar o que se passava. A isto chamamos manipulação. Hitchcock foi um dos seus maiores mestres, mas Hitchcock não brincava com temas destes, e menos ainda se repetia. Chegar ao final de "As Pessoas do Drama" e reencontrar o incesto como o segredo que tudo explica, é como ir ao cinema ver o último filme de M. Night Shyamalan, e chegar ao final e descobrir que afinal o personagem estava morto desde o início.

Por outro lado, escrever quase 300 páginas sem nunca revelar quem é quem é obra, um verdadeiro tour-de-force, ainda que conseguido à custa de muita redundância, e paciência do leitor, que perto do final já em desespero deixa sequer de querer saber quem são todos aqueles personagens que na frente dele se movem. Mas chegar ao fim e ver a mesma resposta dada no romance anterior, é anti-climático, desolador. Se existe algo que o autor quer dizer sobre o tema que escreva um ensaio, agora usar o romance para rodear, tornear a questão parece-me de mau gosto. Porque o texto não é inocente. Cancela não está propriamente a escrever um livro para chocar e vender, ele usa a escrita para afirmar um ponto de vista, tal como diz:
"É algo a que me proponho enquanto projecto de escrita e de literatura: cada livro tem de merecer a atenção do leitor. Deve dar-lhe algo em troca daquilo que exige. E deve dar-lhe tanto mais quanto maior é o que exige. Não tem de ser fácil ou imediato, mas deve ser intelectual e esteticamente gratificante. Deve acrescentar algo à experiência do leitor."  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Cancela quer ampliar a nossa experiência da realidade, e a melhor forma que encontrou para fazer foi escrever dois livros seguidos sobre o incesto? Muito sinceramente, a mim parece-me mais sentido de missão:
“Se há alguma coisa que possa ser a função das artes na actualidade é a capacidade de experimentar os valores. Aquilo que não é legítimo no plano político ou no plano social é desejável no plano artístico. Se a arte não é um espaço de experimentação, de encostar o mundo aos seus próprios limites, então não sei para que serve a arte.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Não sendo legítimo, é desejável na arte. Concordo. Mas a arte não é mera experimentação do que é ilegítimo, a função da arte é exatamente a de quebrar os tabus da sociedade, de a fazer abrir-se e aceitar o que moralmente vai sendo questionado. Repare-se no que diz ainda:
"a literatura é um extraordinário organizador de experiência e um espaço de construção da nossa própria identidade. O autor constrói-se através do processo de escrever, é a escrita que suporta a construção da sua identidade.”  Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
Ou seja, o texto não é mera ficção, existe algo no seu interior que move Cancela. Não me move realizar aqui qualquer psicologia, menos ainda psicanálise. Interessa-me antes compreender o que livro tem para dizer, e faço-o também porque é o próprio autor que questiona o silêncio de quem o lê, o que me leva a falar, já que confesso que chegado ao final, senti mais vontade de atirar o livro para o monte e esquecê-lo, juntamente com o livro anterior e o seu autor.
"Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.” Cancela in Público, 29 de Julho de 2017
E afinal o que se retira desta leitura? Como é que a minha experiência do real se altera ao ler esta obra? Na verdade alterou-se apenas no meu respeito por quem escreve bem, e tem um enorme talento na construção de texto e trama narrativa, que deixou de acreditar que essas condições são suficientes para alguém criar obras relevantes. Algo que me custa ainda mais num autor nacional. Não é apenas a questão do incesto, foram vários os momentos ao longo da leitura em que estaquei a questionar o suporte científico do que se apresenta. Temos um filha que renuncia aos pais adoptivos, para se tornar uma alma vagante apenas porque é adoptada? Que potencialmente se tornaria um ser alienado porque é fruto da consanguinidade, apesar de ter vivido toda uma vida normal até descobrir que era adoptada? Como se os pais biológicos fossem a razão de tudo, e 16 anos de educação, desde o dia em que se nasceu, tivesse tido impacto nulo naquele ser? Esta é toda uma visão retrógrada sem suporte no que sabemos hoje sobre o modo como se edifica o ser-humano. A biologia define muito do que somos, mas não é uma cruz que se carrega desde que se nasce até que se morre.

março 06, 2019

Uriel da Costa (1585-1640)

Uriel da Costa nasceu no Porto, em 1585, sob o nome Gabriel da Costa Fiuza, enquanto cristão-novo. Depois de anos de estudo, incluindo passagem pela Universidade de Coimbra, o desalento com a religião cristã faz com que se converta ao judaísmo e emigre para a Holanda. Se a religião cristã o tinha afastado, o judaísmo de pouco lhe iria valer. Uriel ficaria na história internacional pela luta que empreendeu contra o obscurantismo religioso, tanto cristão como judaico. Na Holanda o impacto com o seguidismo dos escritos enquanto verdade absoluta, faz com que inicie todo um processo de ataque ao status quo, tendo escrito dois livros sobre o tema — "Propostas contra a Tradição" (1616) e "Exame das Tradições Farisaicas" (1623) —, pelo que seria excomungado, e o seu segundo livro queimado publicamente, e condenado a pagar uma multa avultada. Anos depois de viver em isolamento, decidiu volver à congregação, não com verdadeira crença, mas pela insustentabilidade da sua situação. A sua readmissão foi realizada por meio de 39 vergastadas públicas e ainda pelo pisoteamento das pessoas da sinagoga portuguesa de Amsterdão. Tudo isto pode ler-se no seu testemunho final "Exemplar Humanae Vitae" (1640).

Desenho ficcionado de Uriel da Costa ensinando o jovem Espinosa. Espinosa tinha apenas 8 anos quando Uriel morreu, é provável que a revolução que provocou tenha tido influência no pensar Espinosa, de resto não se encontrou qualquer outra ligação entre ambos.
"Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente à verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force à compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel." Último parágrafo de "Exemplar Humanae Vitae", na tradução do latim de A. Epiphanio da Silva Dias
Cerimónia de Inauguração da Grande Sinagoga Portuguesa em Amsterdão, Holanda, 2 de Agosto,  1675

O livro "Um Bicho da Terra" (1984), de Agustina Bessa-Luís, procura ser uma biografia romanceada da vida de Uriel da Costa, mas apresenta enorme densidade de factos, dando conta de maior preocupação em não se desviar da realidade, do que em dar a conhecer a pessoa por detrás do mito. Agustina realiza um trabalho agarrado à cronologia, esquecendo que as pessoas são feitas de ideias e não de espaços ou datas. Falta uma ideia ou núcleo de suporte à intenção do livro, o que faz com que o relato faça tudo parecer mero sucedâneo de eventos. O romancear não funciona não apenas pela torrente de factos, mas também porque Agustina está mais centrada no detalhar do contexto do que em dar vida às ações dos seus personagens, por outro lado a biografia perde-se porque o relato sofre do tom da inverosimilidade própria do romance.

O título da obra de Agustina é a tradução de um pseudónimo usado por Uriel, Adam Romez (bicho da terra).

Quanto à veracidade do que é dito, dizer que Agustina fez um grande trabalho de investigação, contudo esse trabalho acabou sendo ultrapassado pela investigação posterior. Desde logo a capa do livro e o texto, fazem referência à proximidade entre Uriel e Rembrandt, lançando da suposição de que a pessoa no quadro "Philosopher in Meditation" (1632) poderia ser Uriel. Ora os mais recentes estudos em volta do quadro dizem-nos que a pessoa nele não deverá ser sequer um filósofo, mas apenas um homem idoso sentado à janela, tanto que o título é hoje bastante contestado, não sendo sequer o original da obra.

A obra de Agustina não é a primeira sobre Uriel, nem a última, já que data de 2012 o livro "A Figura de Uriel da Costa na Obra de Karl Gutzkow" (632 pp.) de Rogério Paulo Madeira. No ano anterior, 1983, o académico francês Jean-Pierre Osier publicava "D'Uriel da Costa à Spinoza" (299 pp.), e bastante antes, em 1922, Carolina Michaëlis dedicava todo o estudo académico, "Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras" (180 pp.). Anteriormente a estes trabalhos académicos, podemos encontrar, em 1847, uma peça de teatro "Uriel Acosta: a tragedy in five acts" por Karl Gutzkow, e em 1880, uma ópera, "Uriel Akosta" de Valentina Serova.


Mais alguma informação online:
Ushi Derman, Uriel da Costa: the Story of a Nonbeliever, December 19, 2018
Arlindo Correia, Uriel da Costa, 12.9.2006
Wikipedia inglesa e portuguesa

Romance ou ensaio?

"Jerusalém" (2004), de Gonçalo M. Tavares, situa-se num espaço de ação restrito, delimitado por um círculo de personagens que se organizam numa estrutura detetivesca, baseada na formula de mistério (que oferece informação a conta-gotas, para nos agarrar pela ânsia por respostas a quem?, quando?, como? e porquê?), e fá-lo imensamente bem, já que se sente dificuldade em pousar o livro depois de o começar. A particularidade da obra decorre do modo como sobre esta narração tipo é injectado um conjunto de conceitos complexos — o mal, a racionalidade, a loucura e a religião — que nunca chegam propriamente a ser detalhados. O autor opta por trabalhar as ideias de modo simbólico por forma a alargar o seu significado, mas também para poder fugir ao registo de ensaio e manter-se na circunscrição do romance.


Assim, temos um livro com capacidade para chegar a um público alargado, já que a leitura é facilitada pela enorme capacidade de retenção da nossa atenção, embora muito desse público chegue ao final sem saber muito bem o que fazer com todas as respostas que entretanto o autor lhes parece oferecer. Primeiro porque as respostas são-no apenas no que à trama diz respeito, já o simbólico é deixado completamente em aberto, criando um conflito no leitor,  entre o recorte perfeito da trama e a indefinição do seu significado. Para quem ouse ler nesse simbolismo, encontrará as suas próprias respostas aos problemas enunciados, e é isso que o autor espera, quem não o ousar ficará à porta do livro.

Como em todo o artefacto simbólico, as leituras que se fazem do significado da obra dependem mais da experiência e mundo do leitor do que daquilo que o autor coloca no artefacto. As pistas espalhadas ao longo das 250 páginas levantam em nós associações de ideias, fazem-nos trabalhar para a compreensão do que estamos a ler. Cada personagem é uma peça do puzzle de Tavares, mas este nunca a coloca no seu lugar, cria-as e fá-las dançar na nossa frente, instiga-nos a colocá-las no tabuleiro por nós imaginado. Todas as peças estão interligadas, o que nos diz que fazem todas parte de um mesmo quadro, mas aquilo que as liga são meras ações de causa-efeito, o que importa é o que cada um representa nesse quadro — o médico visionário e o médico carrasco, a mulher louca e o amante louco, o filho que não é filho e o assassino. Todos são meros humanos, dotados de imperfeição, comportando significado, ainda que simbólico, sobre o modo como o mal acontece, de onde surge e como se sustenta.
“Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem saudável, e ele — como qualquer criança – procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação de roubo: alguém ou algo me levou uma parte — parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual — então o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, diz Theodor Busbeck de modo mais directo." in "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares
No final, percebemos que é uma obra talhada em busca da perfeição, que tudo está como está, da primeira à última página, com um objetivo concreto. Nada é dito ao acaso, tudo é perfeitamente racionalizado, ainda que tudo pareça nascido da loucura (repare-se no discurso exacerbado pela repetição), e só esta dicotomia granjearia nota máxima. Mas na verdade o artefacto falha em elevar-se acima da aparência de perfeição, pela falta de robustez nos conceitos que defende, já que não são suficientemente aprofundados. Fica tudo demasiado à superfície, com as leituras a surgir completamente divergentes. É um livro de 250 páginas, mas com mais espaços em branco do que de texto, de modo que na verdade não chega a passar das 100 páginas. Os livros não se medem em número de palavras, mas os temas também não são todos iguais, e tratar assuntos desta complexidade em tão breves resenhas de ideias, serve apenas no abrir de portas. Como o livro faz parte uma série — "O Reino", composto de 4 livros incluindo este — é provável que a leitura da série completa dê acesso a algo que só este livro não consegue dar. Vi entretanto que os 4 livros que compõem a série O Reino — "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser", "Jerusalém", "Aprender a Rezar na Era da Técnica" — foram editados, em 2017, num único livro (800 pp.), o que deverá fazer pleno sentido.

fevereiro 10, 2019

A particularidade de Agustina Bessa-Luís

As primeiras páginas, de "A Sibila" (1954), desanimam a leitura, não parece um livro escrito em pleno século XX, recorda a escrita entrelaçada do início do século XIX que colada à ruralidade nacional apela inevitavelmente a Almeida Garrett. Cada frase surge trabalhada num detalhe e labor minuciosos, que provocam uma quebra na leitura, não apenas porque exigem foco e atenção, mas porque clamam sobre si importância e isolamento do todo. Eduardo Lourenço falou em neo-romantismo [1], tendi a concordar, já que se socorre da forma romântica de sobrecarregar as descrições com detalhe, impedindo o acesso imediato ao que se conta, mas fá-lo numa dimensão de atualidade, ainda que sobre uma realidade rural. Por isso senti que existia aqui algo distinto, não se tratava de mero romantismo, nem neo-romantismo, daí a dificuldade que a crítica tem tido no rotular da obra [2]. Repare-se como em oposição, Vitorino Nemésio com “Mau tempo no Canal” (1944), apenas uma década antes e também colado ao romantismo do século anterior, não se consegue desprender dos seus “tiques”, deslumbrando-se com a sua poética, da qual Agustina claramente se afasta. Não que me surpreenda, Nemésio foi um académico que escreveu um único romance, experimentou o modelo que tanto estudou, já Agustina é uma escritora que escreveria mais de cinquenta, em busca do definir da sua própria voz.


Agustina quebra propositadamente a fluidez do contar de histórias, obrigando a uma leitura racional em vez de emocional. Agustina nunca embeleza o texto, nem o ritmo, nunca procura a emoção do leitor, que é aquilo que Nemésio tanto objetiva, a marca impressiva de todo o Romantismo, no entanto tendo em conta o virtuosismo da escrita da autora, isso estava claramente ao seu alcance. Por outro lado, essa quebra criada não almeja à mera subversão narrativa, Agustina não destrói sentido, não fragmenta o fio narrativo nem nodifica os seus personagens, apesar de buscar a racionalidade tão cara ao modernismo. No entanto, os seus personagens são psicologicamente povoados, o realismo está presente com todo o seu savoir faire. Ou seja, Agustina constrói uma mescla entre romantismo, usando os largos caudais de detalhe, o modernismo, afastando o sentimento de cena, e o realismo, por via da ciência do sentir humano.
Sinopse:“No norte de Portugal, em finais do século xix, na propriedade da Vessada, há já muito tempo que são as mulheres que, perante a indolência e os sonhos de evasão que os homens alimentam, asseguram como podem a gestão da propriedade. Quina era uma adolescente franzina e inculta, que desde cedo participava nos trabalhos do campo ao lado dos trabalhadores. Com a morte do pai, com a propriedade quase em abandono, Quina passa a ter que ter uma ainda maior responsabilidade na administração da mesma. Graças ao seu esforço a todos os níveis, começa a acumular de novo a riqueza que seu pai desperdiçara, o que lhe vale a admiração da sociedade. Quina era uma pessoa lúcida, astuta e sempre em demandas, o que faz com que esta se torne conhecida por Sibila…”
 Temos então uma obra distinta, não admira o reconhecimento imediato por parte da comunidade de escritores e críticos portugueses. Contudo, nada disto torna o texto mais fácil. É uma leitura que requer atenção e dedicação. Sendo um livro pequeno, 250 páginas, acaba consumindo-nos tanto como um livro com o dobro das páginas. Acredito que se avisado, o leitor consiga dele extrair tudo o que tem para dar. Nesse sentido, é um excelente livro para trabalhar na escola, ainda que apenas nos anos finais do liceu, ou primeiros anos universitários, dada a exigência. Para os que defendem que a leitura deve ser apenas prazerosa, e que estes livros afastam os alunos da escola e da leitura, recordo que no caso de quem segue ciências — foi o meu caso — "ninguém" defende que o cálculo da derivada de uma função matemática ou da energia cinética na Física, devam ser prazerosas. A escrita é um processo, é um labor, e como tal deve ser estudada e compreendida nas suas diversas possibilidades, nomeadamente naquelas que o estudante sozinho tenderia a desconsiderar.


Para os mais impacientes, posso dizer que a primeira parte é mais descritiva, típica do início do realismo, quase naturalismo, com Agustina a contextualizar todo o porvir da protagonista, Quina, o seu ecossistema — espacial, familiar e condições psicológicas. Muitas personagens são introduzidas, cada uma com os seus detalhes, o que provoca algum desespero, e quase me fez desistir do livro, por o considerar arcaico. No entanto, a meio do livro Quina, a Sibilia de Agustina, assume o centro da narrativa e o grande conflito apresenta-se, conduzindo daí em diante o enredo até à moral final da obra. Se na primeira parte o arcaísmo era mais aparente, na segunda parte compreendemos que esta não é uma obra qualquer, a densidade do que se apresenta é fruto da forma de escrever única [3]. O que se conta não é extraordinário, mas o modo como se conta é singular, e por isso Agustina Bessa-Luís será sempre uma das grandes vozes das letras nacionais.


Referências
[1] Eduardo Lourenço (1963) “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo”, Colóquio. Revista de Artes e Letras , nº 26, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1963, pp. 43-52 (CS), http://coloquio.gulbenkian.pt/al/sirius.exe/artigo?740
[2] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in PasseiWeb, https://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_sibila
[3] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in RTP Ensina, http://ensina.rtp.pt/artigo/a-sibila-de-agustina-bessa-luis/

fevereiro 07, 2019

A Criação do Mundo de Torga

Confesso que por vezes me custava largar as páginas de "A Criação do Mundo" (1937-1981), abandonar as descrições dos espaços e histórias, porque dava por mim transportado para uma realidade alternativa, feita de paisagens de Torga mescladas com as nostalgias de um mundo vivido e já esquecido por mim. Elevava-se uma melancolia interior, um sentir de realidade passada, plasmada, estanque e inalterável e por isso mais saborosa do que a que se vai vivendo dia após dia, na incerteza do amanhã. Queria dizer apenas estas palavras e calar-me, mas não posso, Torga merece que nos detenhamos, que sobre ele falemos, que não deixemos calar o seu legado, porque é uma das melhores ilustrações escritas do Portugal do século XX.


Torga era médico e poeta, mas o sentido da sua vida foram as letras, sempre o seu primeiro amor, desde que na escola entrou até que no túmulo nos disse adeus. Dedicou-se de corpo e alma à poesia, mas o seu maior legado é diarista, tendo publicado entre 1941 e 1993 nada menos que 16 volumes, à média de um por cada três anos. São milhares de páginas com registos sobre tudo o que lhe ia na alma, o seu modo de ver que sofregamente passava para o papel. A este juntam-se algumas novelas em prosa, muitos contos e centenas de poemas publicados em revistas e livros que foi editando.


Torga foi sempre o seu próprio editor, criou várias revistas de poesia e editou praticamente todos os seus livros como "Edições de Autor", o que nos diz muito sobre a pessoa e o seu círculo próximo. A honra e a dignidade acima de tudo, valores provindos da força telúrica de se seu pai, mas que elevou a pontos de total obstinação que o foram afastando de tudo e todos enquanto viveu. Passou 4 meses na prisão, metade dos quais em isolamento por não ceder nunca à ideologia política, incapaz do agachamento intelectual a que praticamente todo o país se votou, incluindo a Universidade portuguesa. Lendo Torga, senti por várias vezes que se em Portugal alguém lançasse mãos à obra para construir uma Auschwitz, teria acontecido cá como lá (a verdade é que tínhamos já expulso praticamente toda a comunidade judia em 1496 sob as ordens de Dom Manuel I e Isabel de Espanha).

Ler XVI volumes de um diário não é tarefa que me atraia. Gosto de conhecer autores e criadores por dentro, mas não considero necessário perscrutar todo o seu mundo para deles me aproximar, respeitar e até amar. Por isso considero este livro, "A Criação do Mundo", tão importante, porque em certa medida funciona como síntese de todos esses diários. O registo aqui não é diarista nem sequer confessional, ainda que o texto transpire autenticidade, mas mais pela personalidade e ser do autor. O que temos nestas páginas é romance puro, com laivos de realidade, mas contado a partir de um olhar com sentido idealizante do mundo. Nomes e lugares são por vezes alterados, mas o sentido está lá, como histórias que se contam, e produzem em nós o efeito esperado. É o próprio Torga que define o sentido da obra, no modo como vivemos, dia após dia, o modo como criamos o nosso real, e criamos o nosso mundo, um mundo que é diferente de indivíduo para indivíduo, e daí a enorme riqueza da espécie humana.
Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos Longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor.” In Prefácio "A Criação do Mundo"
Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”. in "Diário I", Data de entrada: 3.12.1935
Ler esta obra é entrar por Portugal adentro, um Portugal rural, telúrico, pleno de sentimento, ligação à terra e à natureza, um Portugal pequeno mas ligado ao mundo, pela lusofonia, pela arte e filosofia, posicionado ideologicamente nos acontecimentos ocorridos ao longo da maior parte do século XX, sempre em total ligação com a História de uma nação mas com o povo e as gentes como principais atores. Claro que tudo isto se torna apenas tão interessante, e verdadeiramente absorvente, por graça da majestosa fluidez lírica de Torga, que por vezes parece querer puxar os nossos olhos a ler mais rápido do que a mente consegue absorver. Não que não tenha momentos menos conseguidos, sentindo-se pequenas faltas — excesso de embelezamento ou abstração excessiva — que uma edição feita a partir de um olhar de fora teria, com certeza, ajudado. Ajuda à leitura conhecer a história de Portugal, conhecer o país do século XX, nomeadamente Trás-os-Montes e a região centro — Coimbra —, assim como conhecer um pouco sobre as principais datas da vida de Torga, e claro sobre os acontecimentos políticos a acontecer em Portugal, no Brasil, mas também em Espanha e Itália, e claro Alemanha, assim como Angola, Cabo Verde, e Moçambique. Mas talvez ajude mais o gosto pela poética, o gosto pela literatura, mas acima de tudo o amor ao conhecimento de si e da espécie humana.
“— Não os prendam. Só quando de todo não puder deixar de ser... Façam-lhes a vida difícil... Façam-lhes a vida difícil... E faziam. Quem não acertava o passo pelo chouto do rebanho, ou apodrecia num calabouço ou morria de fome. A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia. Nos campos, nas fábricas, nas escolas e nas repartições, o perfil duro do ditador [Salazar] parecia escutar a voz das próprias consciências. E as consciências calavam-se no mais fundo das funduras, temerosas de qualquer expressão reveladora. Nenhum lugar, do mais alto ao mais rasteiro, era preenchido sem o aval da polícia política. Cada ministro, cada funcionário, cada varredor, tinha de ter a sua ficha em dia, limpa de qualquer mácula discordante. Se um caso ou outro passava pelas malhas apertadas dessa vigilância aturada, que não deixava recanto de cada vida por vasculhar, no dia seguinte, como acontecera agora comigo, o lapso era corrigido.", in “A Criação do Mundo (O Sexto Dia)", 1981
A obra está dividida em seis grandes capítulos que representam os volumes que foram sendo publicados no tempo. O livro a que hoje temos acesso é uma coletânea de todos esses volumes. Ou seja, esta não é uma obra escrita com sentido retrospectivo, mas antes escrita em quase-tempo-real, entre 1937 e 1981 (1ª edição conjunta de 1991). Os sentires são-no dos momentos em que foram acontecendo, e por isso talvez, se sintam com tanta mais força, realidade e autenticidade.

Capítulo 1º Dia - Publicado em 1937
Escola primária até aos 13 anos. Natureza e inocência.

Capítulo 2º Dia - Publicado em 1937
Dos 13 aos 17 anos. Ida para o Brasil e o choque com a realidade.

Capítulo 3º Dia - Publicado em 1938
Dos 17 aos 30 anos. Vinda para Coimbra, onde completa os três ciclos do liceu em três anos, estuda medicina para ser formar em 1933.

Capítulo 4º Dia - Publicado em 1939.
Dezembro de 1937 a Janeiro de 1938. Viagem pela Europa, sendo preso pela PIDE no regresso por causa do livro que sobre essa viagem escreve, e o livro apreendido.

Capítulo 5º Dia - Publicado em 1974
Só se publica em 1974, porque tal como o 4º, foi censurado. Fala-nos da prisão, em 1939, e do Portugal sob regime ditatorial.

Capítulo 6º Dia - Publicado em 1981
É o derradeiro capítulo, com vários momentos de reflexão sobre si, os seus e o mundo, e o que resta ou restará de si: “Nada há de permanente debaixo do sol..."


Miguel Torga morreu a 17 Janeiro 1995, com 87 anos, um ano antes tinha escrito:


REQUIEM POR MIM


Aproxima-se o fim. 
E tenho pena de acabar assim, 
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana. 
Inválido de corpo 
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos. 
Longo foi o caminho e desmedidos 
Os sonhos que nele tive. 
Mas ninguém vive 
Contra as leis do destino. 
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio. 
Rio feliz a ir de encontro ao mar 
Desaguar, 
E, em largo oceano, eternizar 
O seu esplendor torrencial de rio.
 
Coimbra, 10 de Dezembro de 1993


Sinto-me agradecido por ter lido esta Criação do Mundo.

setembro 30, 2018

Mais um Dia de Vida

É uma ótima leitura para quem como eu conhece pouco sobre a guerra em Angola, porque funciona como espécie de relato documental do período que mediou entre a saída dos portugueses de Angola e o início da República de Angola (1974-1975). Não é um livro de digestão fácil, coloca o dedo sobre muitas feridas, com culpas de todos os quadrantes.

Aquilo que talvez mais me impressionou, ou não, foi o facto de um país tão distante e num tempo ainda tão pouco global, estar a mercê de tantos interesses internacionais e ideológicos, tudo apenas e só porque sob o seu solo existia ouro negro. É muito triste verificar que uma das regiões mais ricas do planeta não se consegue erguer, não apenas por falta de edificação de quem lá vive, mas também porque a quem está do lado de fora isso é o que menos interessa.

"E aí vi montanhas impressionantes de caixotes, empilhados até alturas perigosas, sem qualquer sinal de movimento, abandonados, como se não pertencessem a ninguém." p.37

Para nós, portugueses, o livro tem particular interesse, porque escrito por um jornalista polaco sem interesses diretos no território, oferecendo-nos uma leitura dos impactos da nossa presença no país, e que nos obriga a refletir sobre aquilo que fomos e somos enquanto nação. Deixo algumas linhas:

“Este país está em guerra há quinhentos anos, desde que os portugueses chegaram. Eles precisavam de escravos para o tráfico, para exportar para o Brasil, para as Caraíbas e para o outro lado do mar em geral. De toda a África, Angola foi a região que maior número de escravos forneceu para esses países. Por isso é que chamam ao nosso país a Mãe Negra do Novo Mundo. Metade dos camponeses brasileiros, cubanos e dominicanos descende de angolanos. Esta terra foi em tempos um país populoso, estabelecido, e depois esvaziou-se, como se tivesse havido uma praga. Angola continua deserta até aos dias de hoje. Centenas de quilómetros e nem uma única pessoa, como no Sara. As guerras de escravos continuaram durante trezentos anos ou mais. Era um bom negócio para os nossos chefes. As tribos mais fortes atacavam as mais fracas, faziam prisioneiros e punham-nos à venda. Por vezes, tinham de o fazer, para pagar os impostos aos portugueses. O preço de um escravo era determinado de acordo com a qualidade dos seus dentes. Eles arrancavam os dentes ou limavam-nos com pedras, para terem um valor de mercado inferior. Tanto sofrimento para serem livres. De geração em geração, as tribos viviam no receio umas das outras, viviam no ódio. As campanhas militares realizavam-se na época seca, porque as movimentações eram mais fáceis. Quando as chuvas terminavam, toda gente sabia que começariam os tempos da desgraça e de caça às pessoas. Na época das chuvas, quando o país se afogava em água e lamas, as hostilidades cessavam. Mas os chefes ocupavam o tempo a magicar novas campanhas e a arrebanhar novas forças. Tudo isto é recordado por toda a gente até aos dias de hoje, porque, no nosso modo de pensar, o passado ocupa mais espaço do que o futuro.", Kapuściński, “Mais um Dia de Vida - Angola 1975”, Tinta-da-China, Lisboa, p.54
Fotografia da escultura "Nkyinkim" de Kwame Akoto-Bamfo, instalada no The National Memorial for Peace and Justice, inaugurado em Abril 2018 em Montgomery, Alabama, EUA.

junho 21, 2018

Quando a excelência da forma não chega

“Impunidade” recomenda-se pela excelência da escrita e da narrativa, mas com caução aos mais sensíveis. Já sobre o tema, tenho de dizer que surge bastante mal tratado, e no meu caso questiono mesmo se valeu a pena a leitura. Não posso desvelar muito já que a narrativa foi desenhada num modo minimal, requerendo o maior desconhecimento sobre os contornos da história. Como incentivo ou desincentivo, direi que é um livro sobre situações familiares limite, muito duro, violento e direi mesmo manipulador.


O melhor de “Impunidade” assenta na sua forma e estrutura. A escrita de Cancela é económica, direta e muito centrada na ação, permitindo aqui e ali pequenos devaneios filosóficos mas quase sempre marcada por um ritmo regulado a metrónomo. O vocabulário é rico e o texto flui de forma bastante poética. No campo da estrutura, senti um bocadinho menos admiração pelo autor, não que não apresente uma enorme mestria no controlo da narrativa, mas talvez por isso mesmo, acabou soando excessivo, mecânico, com alguma falta de naturalidade. Ou seja, inicia-se o relato in media res, e agarra-se o leitor pela ausência de contextualizações e explicações sobre o que vai sendo descrito, manipulando-o por meio da libertação de informação aos bochechos, mantendo ainda assim o grosso para ser revelado apenas no último quarto do livro. Assim, se a estrutura nos mantém agarrados quase incapazes de pousar o livro, à la thriller, acaba por roubar protagonismo ao tema, uma vez que granjeia muita da nossa atenção por nos conduzir numa constante busca por informação, em vez de nos atrair para o tema e nos oferecer tempo e espaço reflexivo sobre o mesmo.


*** A partir daqui a trama é desvelada e discutida abertamente ***

Por outro lado, esta estrutura e modo de escrita, produziu em mim um efeito bastante interessante, capaz de questionar o modo como vemos a realidade sempre dentro de moldes tão predefinidos, acabando por esquecer ou tender a ignorar quaisquer outras possibilidades. Neste livro fui por várias vezes chamado a atenção para aquilo que ligava os personagens centrais, e no entanto só a 3/4 vi o que era, daí que o impacto que senti tenha sido talvez grotescamente superior àquele que o autor terá pensado criar. Quando, e apenas à terceira menção, compreendo que estamos perante um casal incestuoso, tive de pousar o livro e requestionar tudo o que tinha lido, pensado e imaginado. Se até esta altura imaginava Cancela como um cruzamento entre Elena Ferrante e Michael Haneke, tudo isso se desmoronou. Tinha sido manipulado, não deixava de admirar o controlo narrativo de Cancela, mas as peças estavam longe de apresentar uma visão, ou de querer dizer mais do que aquilo que simplesmente diziam.

Assim, se o meu problema tivesse sido apenas para com a estrutura, provavelmente teria atribuído uma nota ao livro, e máxima, porque fiquei admirador do autor. O meu verdadeiro problema com “Impunidade” surge no tratamento dado ao tema, que era complexo e de difícil abordagem, não apenas por ser tabu, mas também pela quase ausência de tratamento na ficção, faltando bases comparativas. Ou seja, não está em causa a minha intransigência para com o incesto, consentido entre adultos ou não, mas antes o modo escolhido para apresentar essa aparente defesa, se é que se pode chamar tal a este livro.

Em "Impunidade" temos um casal de irmãos que inicia o incesto na idade adulta, descobertos pelos pais que tudo fazem para terminar tal relacionamento, mas que contra todos e tudo reatam e da qual acabam nascendo duas crianças, um filho e uma filha, que no momento em que a narrativa se inicia possuem respetivamente, 9 e 4 anos. Cancela parece querer defender a liberdade de amor entre irmãos, mas se o queria fazer talvez devesse ter escolhido irmãos mais saudáveis do ponto de vista social, cognitivo e afetivo. Tanto o homem como a mulher, são não só completamente anti-sociais, como parecem incapazes de ir além do desejo sexual entre eles. Não me parece que defender um modelo de relações humanas apenas assente no desejo físico seja suficiente. Não me parece que defender um modelo de relação a partir de um casal que é completamente incapaz de amar os próprios filhos seja algo minimamente defensável.

Cancela pode até dizer que o estado destes irmãos é originado pela pressão cultural, pela perseguição moral, ainda que a lei portuguesa nem sequer proíba tal, e por isso Cancela situa a ação em Espanha, onde é ainda proibido. Mas se era isso que queria dizer, foi bastante inábil a fazê-lo, pois em vez de filosofar sobre as perseguições aos judeus podia ter debatido-se mais com o mundo em que estes tinham crescido, já que desse ficamos sem nada saber além do momento em que o pai descobre e perde a cabeça. Para Cancela parece que a brutalidade do que o pai faz com a filha quando descobre é razão suficientemente traumática para justificar o comportamento anémico da filha para com o mundo. Se aceito, parece-me no mínimo estranho que tal evento apenas deteriorasse as suas capacidades para com o resto do mundo, já o sexo com o irmão parece manter-se igual até ao final, tal como as sucessivas gravidezes.

Fica a ideia de que Cancela quer vender-nos um Romeu e Julieta entre irmãos, que nada nem ninguém pode afastar, mas que a força de morais retrógradas tudo fez para destruir. E no entanto, nem a morte de uma filha, que não se pode definir por mera negligência como Cancela faz, mas é antes um claro homicídio por negligência, de ambos, irmão e irmã, parece suficiente para acender um alerta! Não se trata de consanguinidade, é algo muito mais brutal, é o desprezo total pelo outro, pelo humano, pelo inocente que de nós depende. Nada poderia nunca justificar tal. Nada. Nem as histórias das crianças enviadas para S. Tomé em Príncipe aqui valem nada, considero-as mesmo despropositadas.

Não posso contudo fechar esta crítica sem colocar o dedo na maior ferida do livro, o seu final. Completamente inaceitável. Repare-se que não está aqui em causa o incesto, o que está em causa é o autor considerar que dois adultos responsáveis pela morte de uma filha de 4 anos, acabados de abandonar um filho de 9 anos à sua mercê, já com duas tentativas de suicídio, merecem mais uma gravidez. Como se Cancela no fundo estivesse a dizer-nos que a gestação é irrelevante, porque os filhos são irrelevantes, e por isso a consanguinidade é também irrelevante. No final, ao fechar o livro, questionava-me sobre o que tinha aprendido com a sua leitura, não consegui encontrar nada de bom.

Muito honestamente, vou ainda ler o livro que Cancela publicou no ano passado, "As Pessoas do Drama" mas se as suas capacidades literárias não tiverem mais mundo para oferecer, com muita pena minha, deixarei de o seguir.

novembro 12, 2017

A Avó e a Neve Russa (2017)

O autor, João Reis, conseguiu surpreender-me com esta segunda obra, ao mudar completamente de registo, desde a escrita ao tema, ainda que mantendo alguns laivos daquilo que poderá vir a dar contornos à sua marca autoral. Claro que a isto não é alheio o facto de o livro ter nascido de uma residência artística no Canadá, o que vem dar razão a muito daquilo que sabemos, em termos criativos, sobre o contexto cultural e a mudança, e os seus impactos na mundividência e imaginário. Por outro lado ainda, este segundo livro de João Reis tem mais fôlego, dando conta da sua capacidade para gerar e gerir complexidade narrativa.


Começando pelo menos bom, a escolha de uma criança de 10 anos para protagonista foi um risco tremendo, e se foi praticamente superado, era inevitável o surgimento de deficiências. Olhar o mundo, de modo dramático, pelos olhos de alguém ainda em formação, tão distante ainda da consciência completa do drama que habita, é muito complicado. Salinger enfrenta problemas parecidos em “Uma Agulha no Palheiro”, apesar de estar a lidar já com um adolescente. O nosso protagonista aqui aproxima-se mais, em idade, de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, mas Twain foi mais inteligente fugindo às complexidades do drama, desenhando tudo sobre um novelo de aventuras, recorrendo a personagens secundárias para introduzir níveis mais complexos de análise da realidade.

No campo narrativo surgem também alguns problemas que me parecem motivados pela necessidade de cumprir com a encomenda da residência artística, ou seja, a construção  de um cenário cosmopolita. Mas se a multiplicidade de proveniências dos nossos personagens é totalmente credível num país reconhecido pela sua construção a partir de todas essas identidades, o facto de Reis se servir das várias grandes tragédias ocorridas nos países de cada um dos provenientes torna o cenário narrativo menos orgânico e insuflado de premeditação na escolha dessas origens. O ponto que mais negativamente me marcou foi a aproximação entre o Holocausto e Chernobyl, em que se sente o recurso ao elemento emocional, indo depois mais longe, até ao simbólico (manequins). Este último ponto, do simbólico, metáforas figuradas, já vem de trás em Reis, parecendo ser uma marca que procura instituir nos seus textos, mas que é algo que não abona em favor da explicitude dos mesmos.

Dito tudo isto, o livro é mais, e se tem problemas tem tanto ou mais virtudes. Desde logo o personagem, que sofrendo ocasionalmente de alguma inverosimilidade, acaba por funcionar como uma âncora a que nos agarramos e não mais largamos até à última página do livro. A sua inocência e ingenuidade são absolutamente impressionantes, capazes de nos arrastar para o interior das nossas memórias de criança, e ver o mundo pelos olhos dele e nossos, porque Reis conseguiu encontrar o tom perfeito para potenciar a nossa empatia. Existe todo um desenhar de esperança frágil que concorre para nos dar a ver um mundo difícil sob tons menos hostis e que garante o nosso interesse e colagem contínua aos pensamentos da criança.

A narrativa está dividida em duas partes, uma primeira mais de contextualização em que nos é dado a conhecer o mundo daquela criança e os conflitos que a rodeiam, e uma segunda parte em que se enceta a aventura, que acaba por fazer valer todas as virtudes daquela criança. A sua inocência e esperança alimentam e propulsionam o sentido narrativo, muito alimentado pelo companheiro de viagem e pelas diferentes peripécias que vão tendo de enfrentar. Neste sentido, Twain tinha razão, as aventuras com amigos e os encontros fortuitos permitem dar a ver muito mais do interior das crianças, do que uma abordagem dostoyevskiana de entrar pela psicologia dos personagens adentro. O companheiro que segue com a criança, e os diferentes conflitos encontrados, funcionam literalmente como espelhos externos do interior da criança, e por isso vamos sentido que a conhecemos cada vez melhor com o progresso de toda essa segunda parte.

Tudo isto é servido por uma história que não tendo nada de muito original, nem muito particular, acaba por dar uma volta completa, fechando o círculo de sentidos, preenchendo por completo a nossa necessidade de significados. A criança cresce com o passar de páginas, e nós crescemos com ela, o mundo que era mais distante e alimentado pela ingenuidade, vai-se tornando mais real e consequente. Nada é fácil nesta nossa realidade, e se em criança a ausência de compreensão parece facilitar o atravessar e aceitar das dificuldades, nada nos garante que em adultos tenhamos atingido a plenitude da compreensão dessa realidade. Talvez o fundo da questão não assente na não compreensão, talvez o nosso problema em adultos seja antes o foco circunscrito aos problemas e conflitos, esquecendo tudo o que de bom existe em nosso redor, permitindo que o lado negativo acabe por toldar todo o lado positivo que a vida também contém.

novembro 11, 2017

Animação portuguesa no i9

A animação "Macabre" de Jerónimo Rocha e João Miguel Real realizada em 2015, chegou à rede há quinze dias através do canal Dust, especializado em curtas de ficção-científica, tendo sido ontem objeto de destaque no i9, um dos sites de referência sobre tecnologias, inovação e ficção-científica. Se não fosse por mais nada, já mereceria o destaque aqui pelo modo como foi recebido na rede, apesar de que pela informação que consegui obter, o filme não ter tido grande sorte nos festivais. Estas duas abordagens, ou recepções são interessantes já que dão conta da ambivalência que senti ao ver o filme.




Começando pelos festivais, e pela estética da obra, podemos dizer que o filme atinge pontos bastante altos em termos de cenário, ambiente e atmosfera, muito à custa da ilustração e design de som, assim como da composição e enquadramentos. No campo da animação, estando longe da perfeição, oferece não raras vezes momentos bem conseguidos, que nos prendem e tornam credível toda atmosfera. Contudo o filme peca em duas componentes demasiado evidentes, a duração (19 minutos) e a estrutura narrativa. Poderia entender a vontade de estender a duração para ajudar à criação da emocionalidade de suspense, mas é claramente excessiva, acabando por obrigar os criadores a recorrer não apenas a redundâncias como a clichês, o que ainda a meio do filme já começa a fazer perder o interesse da audiência. A duração acaba por ter impacto na narrativa, nomeadamente porque por via da necessidade de enchimento do tempo acabam surgindo ideias gastas, imensamente vistas, sem ponta de originalidade e que mereciam ter ficado de fora. Porque se a elipse narrativa que segura a síntese da obra é muito boa, uma boa parte do trabalho criado para preencher o interior da elipse é, muito honestamente, mediano.

Ou seja, se o i9 e o Dust têm interesse no filme é pela elipse narrativa desenvolvida, que acaba por dar todo um sabor instigatório ao texto da obra, fazendo-nos refletir e voltar atrás no filme mentalmente para recuperar o que vimos, e voltar a sentir o todo mais intensamente. Mas diga-se, não era necessário o recurso a Escher para tal, ainda que pudesse ter surgido como homenagem, assim como não eram necessárias as quantidades de redundâncias que vão surgindo, parecendo os realizadores ter receio que o público não compreenda o que se vai passando. A premissa que segura a elipse é per se imensamente forte, e acredito que se o filme tivesse menos de metade da sua duração, tendo em conta a qualidade apresentada nas diversas componentes artísticas, teria conseguido chegar bastante mais longe em termos de reconhecimento.

"Macabre" (2015) por Jerónimo Rocha e João Miguel Real

outubro 06, 2017

O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

Este foi o oitavo livro de Saramago que li, comparativamente é talvez a sua melhor obra literária, não fazendo isso deste o seu melhor livro. A escrita, a investigação, a estrutura e a intertextualidade fazem deste trabalho uma obra de grande valor no domínio da arte das letras, contudo à história falta enredo e essencialmente conflito, o que torna a sua leitura um tanto espessa, por vezes penosa até, para o leitor.


“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é apenas o quinto romance do autor, sendo precedido em dois anos pelo não menos relevante “Memorial do Convento” (1982), e claro suportado por toda uma experiência acumulada por Saramago nos seus, até à publicação do texto, 62 anos. Visto deste modo, espanta menos a complexidade apresentada, ainda que o que aqui temos não esteja ao alcance de qualquer escritor. Neste sentido, para se poder verdadeiramente apreciar a obra é necessário realizar algum esforço de análise e estudo, para o que tentarei apontar aqui algumas linhas que facilitem essa análise e entrada no texto.

Primeiramente, e talvez o mais sobejamente conhecido, cabe identificar quem é, ou foi, Ricardo Reis. Um dos quatro mais reconhecidos heterónimos de Fernando Pessoa, com uma faceta marcada pela poesia clássica da Roma Antiga, nomeadamente Horácio (65 a.c. - 8 a.c.), daí que o estilo de Reis seguisse de perto as estruturas das Odes, com uma queda para os temas amorosos. Saramago escolheu-o por gosto pessoal, mas em especial por ter verificado que Reis era o único dos quatro que Pessoa não tinha morto, tendo resolvido-se a terminar o trabalho iniciado por Pessoa.

Como nenhum dos heterónimos de Pessoa era totalmente autónomo de si, Saramago opta por construir uma escrita que apesar de suportada em alguns temas de Reis, segue mais de perto o estilo geral de Pessoa. Basta ler algumas passagens da obra, para se perceber que sendo Saramago quem escreve, parece ser Pessoa quem dita, e é desde logo aqui que a obra começa a ganhar a sua relevância, dando conta da capacidade de Saramago para incorporar e elaborar diferentes estilísticas. Ao mesmo tempo que esta fusão entre Saramago e Pessoa é, talvez, do ponto de vista do prazer da leitura, o que de melhor a obra tem para nos dar.
“Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. ”
“Estás só, ninguém o sabe, cale e finge, murmurou estas palavras em outro tempo escritas, e desprezou-as por não exprimirem a solidão, só o dizê-la, também ao silêncio e fingimento, por não serem capazes de mais que dizer, porque elas não são, as palavras, aquilo que declaram, estar só, caro senhor, é muito mais que conseguir dizê-lo e tê-lo dito.”
“Não é Ricardo Reis quem pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que dentro de si moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um fio que o leva por caminhos e corredores ignotos (..)”  
Saramago, José. “O Ano da Morte de Ricardo Reis.” 1984
Em termos da narração, apesar de termos apenas um narrador, Reis, ele não é apenas ele, ou seja não temos poesia na forma de odes, como nunca o poderia ser sendo heterónimo de Pessoa, que enquanto tal nos vai tocando com as suas preocupações mais profundas sobre o devir, mas também não é apenas Pessoa, sendo Saramago quem romanceia, desde logo por toda a acidez política que se vai desvelando ao longo da obra, assim como pela sexualidade que emerge, estranha a Reis e Pessoa. Ou seja, ler este romance é viver o mundo simultaneamente pela experiência de três distintas personalidades.

Refletindo agora, não sei até que ponto a complexidade implícita neste narrador não terá servido de motivação a Saramago para aplanar o enredo, e assim garantir tempo, mas acima de tudo espaço para o acesso a cada uma das três experiências nele presentes. O que ajuda a compreender toda a relevância, detalhe e investigação sobre a geografia de Lisboa apresentada na obra por Saramago, nomeadamente quando se representa uma Lisboa de 1935, a partir de linhas escritas quase 50 anos depois. Este trabalho é tão minucioso e relevante, que a Porto Editora se prepara, pelas mãos de Ricardo Cruz, para lançar um livro sobre os espaços do livro em 2017, contrastados com os dos anos 1930.

Rua do Alecrim, Lisboa, por volta dos anos 1930

O ano de 1935 não é fruto do acaso, é o ano da morte de Pessoa, como tal é aí que Saramago resolve voltar na sua viagem no tempo. E se Reis estava no Brasil exilado, é a Lisboa que resolve voltar para saber mais sobre a morte de Pessoa. E se Saramago apresenta uma Lisboa de 1935 tão detalhada, não faz menos pela História, tanto nacional como internacional. Relembrar que o livro foi escrito apenas dez anos após a nossa revolução de 1974, vive-se ainda com o sentir muito colado a um ditador que marcou a História do país por mais de 40 anos, e chegou ao poder apenas três anos antes de Pessoa se despedir. Por outro lado a Europa vive tempos muito atribulados com Mussolini em Itália, Hitler na Alemanha, e Espanha em plena guerra civil.

Mais uma vez refletindo, não deixa de ser algo excêntrico a contundente crítica de Saramago ao nacionalismo do Estado Novo, à sua ânsia por estimular os valores nacionais, relembrando o prémio de Ferro a Pessoa pelo poema “Mensagem” ou a referência ao “Dia da Raça”, e no entanto todo este “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ser um autêntico hino às letras nacionais. Se o espaço é Lisboa, Saramago usa-o para nos conduzir, pela mão de Reis, até à estátua de Camões, mantendo o poeta presente ao longo de quase toda a narrativa, não se ficando por aí, levando-nos também até Eça e ao Adamastor. Assim se Saramago nos obriga a respirar as letras nacionais, ler esta obra hoje, depois de tudo o que alcançou como escritor, leva-me a interrogar sobre o que mais se poderia pedir a uma obra de enaltecimento do nosso país? Teria Saramago consciência de tal? Mesmo no campo da intertextualidade parece haver uma certa fixação, já que se a grande extensão das citações e referências se fazem para com Reis, Pessoa e Camões, ou ainda Eça, o facto de se ir buscar Jorge Luís Borges para autor do livro que acompanha Reis durante a sua estadia em Portugal, não é inocente. Borges foi uma das várias mentes brilhantes que proveio de famílias judias expulsas de Portugal no século XVIII.

No campo das personagens, Saramago junta a Reis duas mulheres, Lídia e Marcenda. Lídia assume o primeiro plano, apesar de sempre atirada para um papel secundário, mas o que é ainda mais interessante é o facto de Lídia ser o principal amor das Odes de Ricardo Reis, tendo Pessoa ido buscá-la às Odes de Horácio, e não foi o único. Contudo como diz António Manuel Ferreira, ao contrário de outras personagens históricas ou ficcionais — como “Adriano, Efigénia, Antígona, Cassandra, Ganimedes, Antínoo, ou Ofélia” — Lídia é alguém não só praticamente desconhecida, como não detém especificidade, e assim talvez se perceba melhor o modo como Saramago a trata, secundarizando-a. Em certa medida, Lídia lembra Ofélia Queiroz, a única namorada conhecida de Pessoa, que tendo-o sido, foi-o quase sem o ser, e talvez seja mesmo este ponto que justifica a opção de Saramago.
“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).”
 
Pessoa, Fernando. “Poesia Completa de Ricardo Reis.” 12-6-1914
O enredo acaba sendo o parente mais pobre de toda a obra. Saramago parte com uma excelente premissa, “como teria morrido Reis se Pessoa tivesse tido tempo para o matar?”. Contudo, e apesar de apimentado com um triângulo amoroso, apesar da presença fantástica de Pessoa fantasma, que visita Reis nos nove meses após a sua morte, o enredo é quase inexistente. Reis limita-se a chegar a Lisboa e a nela deixar-se viver, segue um dia para Fátima, que Saramago aproveita para dissertar sobre a religião, mas de resto não arreda pé, nem do espaço, nem da pessoa que é. É certo que o niilismo de Reis e Pessoa nunca se dariam muito facilmente aos artifícios romanescos, em especial o conflito, que serve de alavanca à progressão, evolução e transformação, mas Saramago soube dar a volta a tantas outras componentes, não ficando claro porque aqui não o fez. Não é uma incapacidade de Saramago, basta atentar na obra anterior — “Memorial…” —, no entanto temos de admitir que é uma forma de enredo que apesar de funcionar em pequenos poemas, perde em fluidez no modo romance, tornando a leitura bastante lenta e difícil.
"Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
          Da húmida terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
        Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada"
Pessoa, Fernando. “Poesia Completa de Ricardo Reis.” 28-9-1932
Tendo em conta a dificuldade de leitura, sou obrigado a questionar as razões que levaram o Ministério da Educação a tornar obrigatória a leitura desta obra no 12º ano nos anos lectivos de 2017/18 e 2018/19, sendo depois destes permitida a opcionalidade com “Memorial do Convento”. Como fica claro deste texto, considero as duas obras do melhor que Saramago nos deu, mas tendo em conta a dificuldade de leitura apresentada por “Ricardo Reis…” não consigo compreender a obrigatoriedade tendo em conta a idade dos leitores. Não é assim que garantimos motivação para a leitura nas camadas jovens.

Para fechar, deixo-vos com a máxima de Saramago, em entrevista, a propósito deste livro: "Neste livro nada é verdade e nada é mentira".

agosto 14, 2017

Pensar em ditadura com Herta Muller

O Nobel atrai, naturalmente, mas o que me interessava no livro de Herta Muller, “A Terra das Ameixas Verdes” (1994), era o seu contexto, a vida sob o regime comunista da Roménia pré-Revolução. Em 1989 assisti àquilo que foi a primeira Revolução emitida em direto pelo meio de televisão, em desacordo com o título do poema de Gil Scott-Heron, “The Revolution Will Not Be Televised” (1970), ainda que não com o conteúdo da sua mensagem.
A Revolução foi televisionada.

Era adolescente, nascido um par de meses após a Revolução portuguesa (1974), tendo passado toda a minha vida a ouvir falar da Revolução que tinha permitido aos meus pais voltarem ao seu país, e libertado todo um povo. Na minha cabeça tudo se construía numa mancha de abstrações, a vida vivida na Europa e em Portugal desde então era calma, a cultura pop dos anos 1980 tomava conta dos nossos imaginários e a Revolução parecia um passado distante, em certa medida e dada a ingenuidade da infância, chegava a parecer insignificante.

Quando em 1989 estava a passar as férias escolares de Natal no Luxemburgo, por ocasião de um regresso temporário dos meus pais ao país para onde tinham fugido da nossa ditadura nos anos 1960, fui surpreendido pelos eventos que eclodiam em Timisoara. No mês anterior, o Muro de Berlim tinha caído, e com ele o comunismo europeu tinha chegado ao fim, mas o líder romeno, Ceausescu então com 71 anos, não conseguindo lidar com a ideia de fim, recusou a demissão, mantendo-se no pedestal ilusório que tinha criado ao longo de 24 anos de ditadura.
A bandeira romena com o rasgo circular em que estava o brasão comunista.

Foram duas semanas em que de quase mais nada se falou, ou viveu, os romenos éramos nós, passados 15 anos. A televisão, à custa do regime, usava todas as estratégias narrativas para nos manter colados ao ecrã — mistério, suspense, vilões, heróis, maldade, ganância e muitos inocentes — até a labirintos subterrâneos e passagens secretas tivemos direito. É impossível esquecer as bandeiras romenas tricolores com rasgos circulares ao centro, marcando a purga do brasão comunista da bandeira nacional. Mas para quem era ainda apenas um adolescente, o mais marcante estaria ainda para vir, chegando no próprio dia de Natal com as imagens do julgamento do casal Ceausescu, tendo as imagens do seu fuzilamento sido apenas reveladas mais tarde. Era o fim, mas ao contrário, porque era o nascimento de um novo país. Por muito que tivesse sido ensinado a olhar a morte como algo profundamente contra-natura, não pude deixar de a ver como a catarse última daquela Revolução, por representar a permissão para todo um país poder finalmente acreditar que podia falar livremente.
Imagem do último discurso de Ceausescu, em direto na televisão nacional romena, marcada pela expressão de incompreensão originada pela multidão que ousa, pela primeira vez em 24 anos, desobedecer e assobiar o seu líder. O seu discurso não duraria mais de 2 minutos, e o impacto das imagens transmitidas em direto para todo o país colocariam em marcha a Revolução.

A Roménia, tal como Portugal, tinha uma polícia secreta, a nossa era a PIDE, a deles era a Securitate. Salazar era nacionalista, de inspiração fascista, Ceaucescu era comunista, na aparência separados por polos políticos opostos mas em essência juntos, ambos ditadores. As suas polícias serviam a manutenção das suas ditaduras, através da constante vigilância que se socorria de legiões de bufos, impondo-se pelo desrespeito de quaisquer direitos que fossem contrários aos supostos interesses dos estados. A tortura era a punição mais comum, mas servia essencialmente a produção de medo, sustentando os regimes no terror.

E é exatamente sobre este último ponto que Herta Mueller nos fala em “A Terra das Ameixas Verdes”, principalmente a opressão e repressão operadas pelo regime de Ceausescu. Mas fá-lo de um modo completamente particular, não seguindo princípios romanescos melodramáticos, esquivando-se às formulas de lágrima fácil. O trabalho de Mueller assenta numa espécie de escalpelização dos efeitos psicológicos do regime, mas acima de tudo numa tentativa formalista de dar a experienciar esses efeitos a quem lê.


Para o efeito, Mueller produziu um texto completamente único, em que as pequenas histórias vão sendo apresentadas como que aos soluços, com pausas, intermitências, recuos e avanços no tempo, cortes abruptos da linearidade discursiva, tudo polvilhado por uma camada de elementos simbólicos muitas vezes indecifráveis. O resultado é um texto difícil, mas acima de tudo uma incapacidade de descortinar sentidos completos do que se vai lendo, que acabam por se assemelhar ao que vai sentindo cada um dos personagens que habitam sob aquele regime. Um desespero por querer compreender, dar sentido, explicar, atribuir uma lógica, ‘porque fazem o que fazem?’. Este sentimento é ainda mais enfatizado pela exploração da escrita de cartas entre os personagens, que por terem de passar os crivos da polícia, não podiam nunca ser explícitas, e que de algum modo a obra pela sua estética nos vai fazendo sentir para compreender a psicologia de quem as escrevia.

No fim deste livro podemos sentir de perto os efeitos de um estado policial, a autora conseguiu criar através da arte escrita um pequeno acesso ao horror de quem vive soterrado mentalmente por uma Thinkpol, a polícia do pensamento de Orwell (1947). Choca e dói porque o que aqui se relata não é ficção, não surge da imaginação de quem escreveu, mas da experiência de quem viveu. Pensar que todo um povo pode a tal ser submetido, pensar que 22 milhões de romenos, 9 milhões de portugueses, mas também muitos milhares de milhões ao longo da história das várias civilizações tiveram de por aqui passar, dói. Como diz Muller, já perto do final, “transfinito é uma janela que não desaparece quando alguém caiu dela”.